10. DO ESTADO DE NATUREZA EM HOBBES E
DO DELINQUENTE, CONDENADO-PRESO
A concepção do estado de natureza hobbesiana, ao nosso entendimento, se adequa perfeitamente ao estado do delinqüente, do marginal, do condenado, do preso, do criminoso habitual e/ou daquele que cometeu um delito considerado grave(roubo, seqüestro através de extorsão etc. ), os quais são pessoas que possuem um certo grau de freqüência e tendência para o envolvimento com o mundo do crime, ou seja, vivem ou almejam viver do crime.
Segundo HOBBES, o Homem no estado de natureza é movido exclusivamente pelas suas paixões, sendo portanto, egoísta, individualista, agressivo e constante ameaça aos outros homens. Como a vida é o bem que possibilita ao Homem realizar suas paixões, quando for ameaçado pela desordem e anarquia generalizada do estado natural, no qual todos indiscriminadamente exercem suas paixões, o Homem é obrigado a passar para o estado civil através do contrato social e do pacto-promessa de cumprimento do contrato.
O estado natural hobbesiano é um estado hipotético, diferente do estado natural de ROUSSEAU, que de fato teria existido em algum tempo, sendo, portanto, histórico. Para HOBBES, o estado natural universal, total, nunca existiu, mas o parcial sim. Este se resumiria aos seguintes casos:
i)O estado de natureza entre sociedades independentes, em particular, na época em que viveu Hobbes, com relação aos Estados soberanos;
ii)O estado entre os indivíduos numa guerra civil, quando a sociedade política é dissolvida. Recentemente tivemos notícias das guerras na Iugoslávia, na qual combatem diversas nações, e que, quando fazem prisioneiros, estes são torturados, as mulheres estupradas e toda sorte de atrocidades inimagináveis de ocorrerem em um estado civil.
iii)O estado em que se encontram as sociedades primitivas, tais como, os índios - enquanto - os bárbaros da Antigüidade, agora civilizados.
O criminoso que vive do crime, o que faz do crime um meio de vida, ainda que não exclusivo, mas habitual, o qual, quando condenado provavelmente cumprirá sua pena em regime inicialmente fechado, é o objeto de enfoque no nosso presente trabalho.
Este criminoso possui um alto grau de agressividade, de egoísmo, de individualismo, tal qual, o Homem no esta do natural de HOBBES, que age movido exclusivamente por suas paixões.
O criminoso habitual no Brasil, consoante demonstram as estatísticas, é originário da classe pobre, de raça negra. Possui baixo ou nenhum nível de escolaridade e de qualificação profissional. Embora, não cheguemos ao ponto de considerarmos que a criminalidade no Brasil forme"um Estado dentro do Estado Legal", certamente, é nítido que esta criminalidade possui uma gama de poder considerável que, em determinados casos, rivaliza e supera o poder do Estado Legal. Basta verificarmos o poder exercido pelos traficantes nas favelas e circunvizinhança- onde reina a lei do silêncio - sem dúvida, um poder, pelo menos, em intensidade e funcionalmente semelhante ao poder estatal.
Dessa forma, é que entendemos que o criminoso no Brasil vive em uma espécie de estado de natureza parcial, consoante concebera HOBBES. Esse criminoso, especialmente no Brasil, teve um baixíssimo nível de sociabilidade, ou seja, de efetiva integração na sociedade, baixo nível de cidadania, de informação, de condições de vida, de susbsistência, etc. São marginalizados socialmente, mesmo quando ainda não tinham cometido delito, mas pelo fato de pertencerem em sua grande maioria a uma classe pobre já estigmatizada e sub-valorizada pela sociedade. Isto resulta que o delinqüente tem um histórico de efetiva reduzida participação política, ou seja, uma ínfima experiência efetiva no estado político, o qual se caracteriza pela existência de direitos e deveres recíprocos e de respeito aos direitos fundamentais da pessoa. Assim, o delinqüente desde a sua infância, acumula uma experiência de ver pessoas participarem do estado civil-classe alta e média- e ele e sua família ficam praticamente à margem deste estado, como diz a música popular, "vendo a banda passar" e, quando muito, coadjuvando a atuação principal de algum membro da classe privilegiada, quase que em um outro Estado, em um estado natural, regido primordial e cotidianamente pelas paixões dos Homens, por aqueles que, pela força, impõem suas paixões àqueles que obedecem e se submetem.
11. DO PACTO SOCIAL ATRAVÉS DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS (LEP)
Como já mencionado, o Homem, dentro da concepção hobbesiana, é naturalmente mau(selvagemente nocivo) e, sendo assim, é imprescindível o estabelecimento do pacto social a fim de controlar e canalizar esta sua natureza para reverter em benefício da sociedade.
O preso, aquele que praticou um delito, um ato anti-social, parece se encaixar claramente dentro do perfil do Homem natural hobbesiano consoante já referimos. Assim, dentro da visão da sociedade, o preso, o condenado por prática de delito, em regra, é um ser individualista, egoísta e que pratica um ato nocivo à sociedade, um ato que rompe o pacto social firmado pela sociedade para a preservação dos direitos dos seus membros. O preso - condenado, então é aquele que rompe o pacto social, por isso a sociedade o exclui do ambiente social, para confiná-lo num espécie de hospital, as cadeias, onde o preso, uma espécie de doente social, será tratado para que desenvolva valores benéficos à sociedade ou, se não for possível, que pelo menos não retorne ao convívio social.
O principal fim destes hospitais de doentes sociais, como chamamos as cadeias, é sem dúvida o de tornar o Homem novamente um ser capaz de conviver pacificamente na sociedade, de acordo com as regras do jogo estabelecidas através do pacto. Somente em último caso é que essa recuperação é descartada, nos casos de prisão perpétua e de pena de morte, as quais não existem no estado brasileiro em tempo de paz. Assim, no Brasil parece evidente que,, ao menos dentro de uma concepção formal do sistema jurídico vigente, cadeia é para ressocializar o condenado.
Para ressocializar o condenado pressupõe-se que este condenado possua um mínimo de capacidade de condições de assimilar o processo de ressocialização, é necessário então que o condenado, embora, preso e sob custódia do Estado, exerça uma parcela ainda que mínima, mas fundamental de sua liberdade, de sua personalidade, pois são estes caracteres que distinguem o Homem dos demais animais, ou seja, é necessário que o cercear a liberdade do preso, não se lhe retire a sua qualidade humana. Se o condenado mantém ainda sua qualidade humana, ele é ainda detentor de poder e, consequentemente, fonte de direitos a serem respeitados, portanto ele ainda pode exercer direitos e em contrapartida tem uma série de deveres a obedecer. Entretanto, como já demonstrado, os direitos do condenado, mesmo os fundamentais, não são os mesmos e ou na mesma extensão daqueles dos chamado "homens livres".
A norma que regula os direitos e deveres do preso para com o Estado e para com a sociedade é a LEP.
A LEP é que estabelece as normas fundamentais que regerão as relações dos presos-condenados, com o Estado e com a sociedade no cotidiano da execução da pena. Assim, é que a Carta Magna dos presos passa a ser a LEP, a qual prescreve em que nível o condenado poderá exercer sua liberdade, enquanto estiver na condição de preso condenado em cumprimento de pena, ou seja, enquanto não recuperar totalmente, como a maioria das pessoas possuem, o exercício da liberdade. A LEP serve, portanto, como uma espécie de pacto ou de preparação para a retomada do pacto que o condenado violou ao cometer o delito.
É através da LEP que o condenado preso pode saber que conduta pode realizar no âmbito da cadeia. Que horas terá de dormir - ou quem determinará o horário em que deve dormir -, a quem e como deve obedecer, etc. Através da LEP é que toma conhecimento dos comportamentos que pode exigir dos demais internos, agentes do Estado, da sociedade, já que a função principal das cadeias é a ressocialização - de acordo com a Lei - e que esta só é possível se o Homem mantiver sua qualidade humana, o que implica o exercício de direitos. A LEP, possibilita, formalmente, um exercício de uma série de experiências, de relação social, de pacto social, todas fundamentais para que o condenado recupere um nível mínimo de valores benéficos à sociedade. É somente através da experiência que os valores são modificados, é através da prática cotidiana desses valores que estes vão sendo sedimentados, a experiência é que permite a superação das limitações naturais, genéticas, físicas do Ser Humano, através do hábito.
Assim é que não basta a existência do pacto, a sua idealização, é necessário, para que as relações tenham um mínimo de estabilidade necessária para a existência e desenvolvimento do Estado, que de fato, no dia a dia, o pacto exista, ou seja, que efetivamente os direitos e deveres recíprocos nele estabelecidos tenham aplicação efetiva.
Da mesma forma, a LEP, sendo uma preparação, ou uma simulação do pacto social, deve não apenas consistir numa carta de princípios formal, mas é imprescindível que tenha aplicabilidade prática, ou seja, que efetivamente no dia a dia, os condenados possuam direitos e deveres consoante estabelecidos na LEP.
Conforme observou ROUSSEAU, da força não advém nenhum direito, não podendo resultar nenhuma moralidade, obedecer à força é mais um ato de necessidade do que de vontade. Assim, é que se apenas uma das partes do pacto, no caso o Estado, exerce direitos efetivamente, e o condenado exerce um "quase nada" de direito, podemos concluir que o Estado, em realidade, exerce sua força, pretendendo que seja aceita na forma de subserviência, não como direito. Se a ressocialização pretende modificar os valores do condenado preso, ou seja, modificar sua moralidade, como atingir este fim através da força? Simplesmente não é possível. ROUSSEAU(p. 28 e 29) demonstra isso com clareza, dizendo que:
"O mais forte nunca o é bastante para ser sempre amo, senão transformar sua força em direito e a obediência em dever. Daí, o direito do mais forte, direito tomado ironicamente em aparência, e realmente estabelecido em princípio, entre tanto, jamais se nos explicará esta palavra ?A força é um poder físico; não vejo que moralidade pode resultar dos seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade, é entretanto, um ato de prudência". . . "Convenhamos pois que a força não constitui um direito e que não somos obrigados a obedecer senão aos poderes legítimos".
Ao condenado-preso nada mais resta praticamente. Suas esperanças de liberdade voltam-se para a Lei de Execuções Penais, a qual é aplicada, citada, comentada, discutida freqüentemente no dia a dia da unidade prisional.
Para o preso-condenado, a Lei de Execuções Penais é praticamente o único elo com a sociedade livre em termos de obrigação e dever, de compromisso. O condenado preso, embora possa não ter consciência analítica da complexidade do fenômeno da ressocialização já exposto, tem consciência clara de que foi condenado porque a sociedade assim determinou, porque ele descumpriu uma regra e aqueles que descumprem uma regra estabelecida pela sociedade são punidos. Assim, ele sabe que a norma é para ser cumprida, que aqueles que a descumprem são punidos e que ele foi punido por descumprir a norma. É essa experiência que o preso-condenado adquire gradativamente ao longo do processo. A relevância do respeito ao compromisso com a sociedade.
Como já foi exposto, a liberdade é imprescindível à existência humana e a Lei visa a proteger essas liberdades através da concessão de direitos. A LEP confere um série de direitos aos condenados, visando, possibilitar ao preso não somente a obediência, com o quando o condenado cumpre seus deveres, mas lhe possibilita exercitar sua face ativa da liberdade que foi tolhida por ser nociva à sociedade, para um sentido benéfico através da ressocialização. Através dos direitos previstos na LEP, seriam canalizadas parcela significativa das insatisfações e esperanças do preso, seria preservada mesmo uma parcela mínima da dignidade da personalidade do condenado, que é a possibilidade de exercitar um direito, de ter a experiência de dizer a outra pessoa que ela deve ceder em face do que a sociedade considera como concreto e verdade. Os condenados presos sabidamente, em sua maioria são pessoas indisciplinadas, que têm sérias dificuldades em lidar com a norma estabelecida. Devido a esta dificuldade é que o delinqüente infringe a norma. O exercício de troca de papéis, proporcionado pelo direito de exigir de alguém o cumprimento de um compromisso pactuado através da norma estatal, coloca o condenado na outra ponta da relação, no papel que lhe permite acompanhar o esforço de uma outra pessoa, como ele, para cumprir a norma, superando suas vicissitudes, fraquezas, idiossincrasias e dificuldades em lidar com a norma, para finalmente, no clímax desta peça, presenciar o cumprimento da norma por outrem. Essa experiência de cumpri mento da norma vai aos poucos, desmistificando a dificuldade que o condenado tinha com o cumprimento da norma. Entretanto, é imprescindível, como se verifica, que aquele que deve cumprir a norma, efetivamente, a cumpra, pois caso contrário, o condenado experimentará uma experiência negativa de reforço dos seus vícios, maus hábitos, excessivo individualismo egoísmo, os quais ele conhece desde a sua infância e que o levaram à prisão.
A LEP e o instrumento através do qual o condena do preso reelabora o pacto social quebrado.
Todavia, como já demonstrado e como é de conheci mento geral, a LEP não é cumprida, principalmente, no que tange aos direitos do preso.
Assim, é que a experiência de completa ausência de direitos, por três anos, por exemplo, sedimenta no conde nado uma gama de valores e prática nocivas à sociedade, experiência, o hábito são certamente muito mais poderosos do que qualquer discursos moral ou retórico. A experiência prisional do condenado sugere-lhe que a única forma de expressar sua personalidade, de gozar sua liberdade é violando a lei, já que não possui direitos efetivamente a exercitar.
12. CONCLUSÃO
O preso-condenado, no Brasil, principalmente, é originário das classes menos favorecidas da sociedade. São pessoas que desde a tenra infância são pressionados, oprimidos pela sociedade civil, pelos chamados poderosos. Desde a sua infância, nas favelas, nos morros, nas regiões mais pobres o delinqüente convive com uma precária condição de vida, em meio ao esgoto, à discriminação social, à completa ausência de informações de formação educacional, escolar. Sem o background social de uma mínima formação educacional e social, o preso-condenado, mesmo antes de se tornar um delinqüente já ocupa uma posição inferior na relação do pacto social, do contrato social. Seus familiares, por certo também tiveram a mesma sina e a sua será possivelmente pior, pois que a crise social, a cada dia, é mais grave.
Assim, o membro da classe menos favorecida comete um delito, num impulso, numa força de auto-preservação, e rompe o pacto tirânico, autoritário, no qual não tinha praticamente nenhum direito, mas um mundo de obrigações a se rem cumpridas.
Ao longo do processo, o preso aprende os valores da sociedade e que deve adequar sua conduta a esses valores, para que não sofra um mal maior, a prisão.
Preso e condenado, o preso, segundo a Lei de Execuções Penais, teria direito a uma série de bens, os quais na prática não lhe são concedidos.
A única relação do preso-condenado com a norma, ou pelo menos a mais forte relação do preso com a norma, se dá através da Lei de Execuções Penais, pois que ali está previsto como poderá obter sua liberdade, como deve se comportar, enquanto estiver cumprindo sua pena.
A Lei de Execuções Penais, no entanto, não é cumprida e causa assim a revolta do preso, o qual mais uma vez tem uma relação negativa com a norma estatal.
Assim, é que podemos concluir que um dos principais elementos no aumento da criminalidade é o não cumprimento da Lei de Execuções Penais pelo Estado e pela sociedade. Não pretendemos, com esta assertiva, ressaltar a qualidade da Lei de execuções Penais, mas o fato de que enquanto acordo, compromisso, integração Estado-preso não foi cumprida pelo Estado; assim é que pretendemos ressaltar o aspecto do pacto não cumprido pelo Estado e legitimizador do rompimento do pacto e do estado de guerra entre o Estado e os delinqüentes existentes nos nossos dias.
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