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O registro de companhia aberta e o caso do Coritiba Futebol S.A. às vésperas de seus 20 anos

Agenda 07/12/2022 às 23:22

Neste artigo, argumentamos que ao se buscar conciliar os aspectos contábeis com os aspectos jurídicos no julgamento dos Processos CVM Nº RJ 2003/0504 e 2003/6655, a observância a um entendimento contábil terminou por negar o direito à companhia

Nos Processos CVM Nº RJ 2003/0504 e 2003/6655, que já completarão 20 anos em 2023, tratou-se de recurso do Coritiba Futebol S.A. contra decisão da Superintendência de Empresas (SEP) que indeferiu o seu registro como companhia aberta em função de irregularidades nas demonstrações financeiras da companhia, devido à reavaliação de ativos intangíveis ocorrida antes da contribuição destes ativos ao capital social da companhia. O Relator foi o Dir. Luiz Antônio de Sampaio Campos e o julgamento ocorreu em 04/08/2004. Neste artigo, trataremos deste caso em uma breve análise.

Em resumo, em 31/01/2003 foi requerido o registro de companhia aberta de Coritiba Futebol S.A. informalmente, podemos comentar que isso se deu no movimento em que clubes buscam se assemelhar a empresas (clube empresa) para ampliar o quadro social do clube e pagar dívidas, sendo pioneira a tentativa do Coritiba junto com o pedido de distribuição pública de ações em mercado de balcão não organizado. Na análise dos documentos, a SEP identificou problemas, especialmente porque o Coritiba S/A, em suas demonstrações contábeis de 23/08/2002, indicava um intangível gerado internamente avaliado economicamente, com o patrimônio total da companhia montando em R$ 51.010.013,00 na data base de 23.08.2002, sendo que só a marca do clube correspondia a R$ 51.000.000,00. Na distribuição pública de ações preferenciais, a companhia pretendia fixar o preço de emissão com base no valor patrimonial das ações, conforme o art. 170, § 1 °, inciso II da Lei das S.A..

Com esse problema envolvendo o registro e mensuração de intangível gerado internamente, houve uma consulta à SNC, que considerou que intangíveis gerados internamente não encontram respaldo nas normas contábeis brasileiras para sua contabilização e que na constituição da companhia, a integralização de seu capital com bens do imobilizado, de natureza intangível, em essência reavaliados, contraria frontalmente o Pronunciamento IBRACON anexo à Deliberação CVM n° 183/95, além de que nem as normas internacionais de contabilidade(...) admitem a figura do intangível gerado internamente (IAS 38, § 51) e são ainda bastante restritivas quanto aointangível adquirido.

Qual foi o problema principal enfrentado na decisão? Em 17/06/2003, o registro de distribuição pública de ações foi indeferido pela SER. E, em 11/07/2003, a companhia protocolizou recurso nesta autarquia em face da decisão da SEP, arguindo que (1) os direitos de propriedade industrial são bens móveis por acessão legal, (2) como bens móveis, seriam suscetíveis de valoração econômico-financeira e livre disponibilidade por parte de seus detentores, (3) a Lei n.º 6.404/76 permitiria formação do capital social com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro, (4) ao tratar da classificação das contas do ativo das companhias, a legislação acionária determina que integra a conta do ativo imobilizado todo e qualquer direito que tenha por objeto bens destinados à manutenção das atividades da companhia, ou exercidos com essa finalidade, (5) o acionista controlador integralizou suas ações mediante cessão, pelo prazo de 30 anos, dos direitos de uso da marca "CORITIBA FOOT BALL CLUB", devidamente registrada junto ao INPI, avaliada por empresa especializada, (6) o principal bem dos clubes de futebol profissionais é justamente sua marca e que (7) não haveria razão para cancelamento do registro da marca na conta do ativo imobilizado do Coritiba Futebol S/A, porque (8) além de ceder os direitos de uso da marca, o acionista controlador também cedeu pelo prazo de 30 anos, em escritura pública, os direitos de uso do Estádio Major Antonio Couto Pereira, assim como os direitos sobre os contratos de transmissão de televisão.

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No voto, foi considerado que nosso sistema legal requer tanto o registro da companhia emissora quanto o registro dos valores mobiliários a serem emitidos publicamente (art. 4º, par. 1º e 2º da Lei nº 6.404/76 e arts. 19 e 22 da Lei nº 6.385/76 c.c. arts. 19 e 22 da Lei n.º 6.385/76), além de a CVM ter que observar instruções sobre a matéria do registro. Assim, sobre a legalidade das demonstrações financeiras da companhia emissora, um requisito fundamental para concessão do registro, o julgador entendeu não ser necessário que se examinasse o capital social e suas repercussões nas relações internas, ad intra; mas apenas seus aspectos relativamente à relevância externa, ad extra, dentro dos princípios da fixidez, realidade, integridade e intangibilidade (conforme art. 7º e caput do art. 8º da Lei nº 6.404/76), considerando que a lei permitiu expressamente que o capital social pudesse ser integralizado não apenas com dinheiro, mas com qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro, sem restrição à espécie de bem que pode servir para a contribuição ao capital social, entendendo o julgador, à luz de tais princípios que informam a proteção do capital social, não haver razões para que operações como esta fossem proibidas, sendo necessário, outrossim, apenas laudo nos termos do artigo 8º da Lei nº 6.404/76.

Considerando, porém, os efeitos contábeis indesejados e tidos por incorretos pela área técnica, e entendendo que a operação infringia o disposto no pronunciamento IBRACON anexo à Deliberação CVM n.º 183/95, foi mantida a decisão da SEP no sentido de indeferir o pedido de registro de companhia aberta, com o entendimento da SRE, por entender o julgador que o indeferimento do pedido de registro de companhia, por si só, já acarreta no indeferimento do pedido de registro de emissão pública de valores mobiliários.

Finalmente, à guisa de considerações finais, podemos resumir, conforme Proni & Libaneo (2016), que o Coritiba, clube de futebol, tentou ingressar no mercado de capitais, tornando-se a Coritiba Futebol S.A. Mas a CVM não permitiu porque, dos R$ 51 milhões declarados como patrimônio da Coritiba S.A., mais de R$ 50 milhões eram referentes ao direito de uso da marca Coritiba FootBall Club, declarados pela companhia como patrimônio intangível gerado internamente nas demonstrações financeiras. A CVM invalidou a contabilização desse tipo de ativo intangível e barrou o negócio, alegando não haver garantias financeiras e que o clube supervalorizava sua marca, que representava quase a totalidade dos ativos (PRONI & LIBANEO, 2016).

Podemos discordar da decisão da CVM devido ao fato apontado pelo julgador! de que a transferência de obrigações, para a companhia, não seria impeditivo para o aumento de capital. Como disse o julgador, observados os requisitos legais, vigora o princípio da liberdade e a assembleia geral ou conselho de administração, no caso de regime jurídico do capital autorizado, teria autonomia para decidir a forma de integralização e os bens aceitáveis. Por fim, sobre o atendimento das demonstrações financeiras da companhia emissora às regras societárias e contábeis adotadas pela CVM, de fato 99% do patrimônio da companhia era a marca gerada internamente, entre acionista controlador e companhia, o que foi considerado infração, conforme o pronunciamento do IBRACON anexo à Deliberação CVM n.º 183/95 e às normas internacionais do IASB. Mas, como disse o julgador (!), do ponto de vista estritamente contábil, teria razão a área técnica da CVM. Mas do ponto de vista jurídico-societário, a operação realizada pelo recorrente não tinha impeditivo legal nem era inviável.

Infelizmente, ao se buscar conciliar os aspectos contábeis com os aspectos jurídicos, a nosso ver, no julgamento, a observância a entendimento contábil terminou por negar o direito à companhia!

 

Referência bibliográfica

PRONI, Marcelo & LIBANEO, João Pedro. O futebol brasileiro na bolsa de valores? Texto para Discussão. Unicamp. IE, Campinas, n. 274, jun. 2016

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

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