Introdução
No presente artigo, apresentaremos abordagens doutrinárias sobre o tema da existência de limites à Liberdade de Expressão em relação ao discurso humorístico, diante de uma reflexão sobre os chamados Direitos da Personalidade.
Há alguns anos, este debate esteve bastante aceso devido à condenação penal do humorista Danilo Gentili por crime de injúria, por ser entendido que o humorista, no caso a que a ação penal se referia, teve animus injuriandi contra a deputada Maria do Rosário, que entrou com a ação contra ele após ser ofendida em tuítes de sua autoria e no programa de TV apresentado por ele[1]. Entretanto, tal caso correspondeu a uma ação penal, e no presente artigo enfocamos a dimensão da tutela civil no que se refere à relação entre Liberdade de Expressão e Humor.
I. A reflexão de Chiara de Teffé
Chiara de Teffé, pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio), em seu artigo Humor e Liberdade de Expressão: vale tudo?[2], se refere à questão, levantando ainda uma discussão sobre o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451, em que o STF compreendeu que “programas humorísticos, charges e o modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos integrariam as atividades de imprensa (…) devendo gozar da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa (art. 220, §1º)” (TEFFÉ, 2017).
Entretanto, a própria autora ressalva o quanto o exercício de tal liberdade não é ilimitado e que ao se ofender terceiros, um indivíduo poderá responder penal e civilmente por seus abusos, discutindo ainda no artigo outros aspectos respeitantes ao tema, como o caso ocorrido em janeiro de 2015 com o jornal francês Charlie Hebdo e o vídeo com esquetes satíricos em relação ao Cristianismo, lançado em 2013, de autoria do grupo humorístico brasileiro Porta dos Fundos, entre outros casos em que a questão se colocou: quais os limites para a Liberdade de Expressão diante do Humor?
II. A reflexão de Melino & Freitas
Por sua vez, Heloisa Melino & Lúcia Freitas (2014), em Humor em Stand Up: limites entre liberdade de expressão, discurso de ódio e violência simbólica, apresentado em um encontro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI), trazem novos pontos de vista para nossa análise, ao tratarem da liberdade de expressão no gênero chamado de stand up e identificarem neste gênero características de discurso de ódio (hate speech) além de um exercício do que o sociólogo francês Pierre Bourdieu denominou como sendo uma violência simbólica[3]. Para tanto, as autoras selecionaram algumas piadas contadas em stand up, que consideraram tão preconceituosas a ponto de representarem uma violação aos Direitos Humanos.
As autoras ainda discutem de que forma discursos aparentemente inofensivos levam a efeitos, se ancorando em reflexões de Daniel Sarmento e de John Austin, através dos quais apresentam de que modo a linguagem pode ser compreendida como violência. Para Melino & Freitas (2014), devem haver limites à liberdade de expressão para a garantia de princípios constitucionais como a dignidade, a igualdade, a privacidade, a honra e o devido processo legal e o stand up deve estar dentro dos limites de respeito a esses princípios, que se referem também, conforme vimos no curso, aos Direitos da Personalidade, para garantia inclusive da Democracia, de acordo com as autoras, que ainda chegam a apresentar alguns casos concretos de limitação à Liberdade de Expressão – como os casos do HC 82424/RS, em que houve a condenação pelo TJRS, pelo crime de racismo, de um editor que publicara livros considerados como apologia de ideias discriminatórias contra a comunidade judaica, e o caso do Habeas Corpus 109676/RJ, em que o ministro Fux defendeu a qualificação de injúria cometida pelo réu, denegando o Habeas Corpus, repudiando o que considerou um discurso de ódio.
III. A reflexão de Antonialli, Santos & Oliva
No artigo Censura Judicial ao humor, uma análise sobra a postura dos tribunais em casos envolvendo liberdade de expressão na Internet de Antonialli, Santos & Oliva (2017), os autores apontam o quanto a internet abriu novos caminhos para a utilização do humor como forma de questionamento, tendo havido uma multiplicação de conteúdos de humor produzidos, divulgados e acessados pela internet. Diante desse cenário, os autores apresentam que, diante de ações judiciais que possam questionar conteúdos potencialmente ofensivos, o Poder Judiciário se torna central, ao poder traçar os limites da Liberdade de Expressão do discurso humorístico. Os autores ainda identificaram, em pesquisa empírica, que nos casos da justiça cível, os argumentos mais recorrentes estiveram ligados aos Direitos da Personalidade, como a proteção da honra e da imagem.
Além disso, os autores analisaram decisões proferidas em segunda instância em ações de natureza cível se utilizando de bancos de dados disponibilizados por tribunais na internet, concluindo que “a restrição à liberdade de expressão para atutela, sobretudo, dos direitos à honra e à imagem constitui a regra, e não a exceção, na aplicação do direito por parte dos tribunais brasileiros” (ANTONALLI, SANTOS & OLIVA, 2017: 18-19), havendo alto índice de deferimento de pedidos de indenização (71% no caso de pessoas comuns e 50% no caso de políticos), evidenciando, nas palavras dos autores, riscos relativamente elevados de se fazer humor no Brasil, havendo um efeito inibidor (chilling effect)sobre a atuação dos produtores de conteúdo humorístico, uma vez que a liberdade de expressão seria constantemente relativizada para tutela da honra e da imagem, sendo tal efeito prejudicial para o interesse público e a democracia.
É interessante, portanto, notarmos o quanto os trabalhos de Melino & Freitas (2014) e de Antonalli, Santos & Oliva (2017) parecem divergir, embora a leitura de ambos tenham sido enriquecedoras.
IV. A reflexão de Rigamonte & Silveira
Por fim, alcançamos o livro Liberdade de Expressão e Humor: o exercício livre da comédia e a escalada judicial de processos na visão do STF, de Rigamonte & Silveira (2018), em que os autores discutem a Liberdade de Pensamento como um direito e, a partir daí, o conceito de Liberdade de Expressão, bem como seus fundamentos – como garantia da autossatisfação individual (self-fulfilment), como meio de conceber a verdade, como garantidora da Democracia e como ferramenta de manutenção da atividade governamental –, além de discutirem a Liberdade de Expressão como direito fundamental na Constituição de 1988.
Contudo, Rigamonte & Silveira (2018) apresentam os Direitos da Personalidade como “demarcações constitucionais do direito à liberdade de expressão” (RIGAMONTE & SILVEIRA, 2018: 36) e o problema dos discursos de ódio (hate speech) em relação à Liberdade de Expressão, que possui formas de controle judicial, seja na tutela penal ou na tutela civil[4].
Por fim, após tratarem o humorismo como forma de manifestação da Liberdade de Expressão, os autores discutem o humorismo no contexto da jurisprudência do STF, enfocando a ADPF 130 e a ADI 4.451, a que já nos referimos acima, cujas ementas apresentam. Os autores discutem os argumentos nos votos da ADPF 130 e da Medida Cautelas da ADI 4.451, bem como a Ratio decidendi dos respectivos acórdãos, ressalvando que são os casos da jurisprudência do STF que mais se referem ao tema dos limites da Liberdade de Expressão no caso do ciscurso humorístico, havendo o que chamam de “escassez jurisprudencial” no STF sobre o tema, concluindo que
Por ser tema frágil, ainda, e que denota margem de regulamentação infraconstitucional, certamente será a novidade, sobre o tema, dos próximos anos, devendo merecer nossa atenção para os contornos que a sociedade democrática brasileira desenhará, a partir desse contexto, para a atividade humorística em nosso país. (RIGAMONTE & SILVEIRA, 2018: 102)
Conclusão
Apresentadas tais reflexões, podemos responder a uma questão: “Liberdade de Expressão e discurso humorístico: tem limites?” podemos responder que sim, tem limites, que se referem à tutela da honra, da imagem e da privacidade, na medida em que o discurso humorístico passe a expressar discursos de ódio (hate speech) e a violar princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana. Tais limites são legais, pois estão previstos na legislação, e são fáticos, uma vez que vimos que os tribunais têm decidido de acordo com este entendimento (ANTONIALLI, SANTOS & OLIVA, 2017), além de ser o entendimento do próprio STF nas decisões em que já pôde se manifestar nesse sentido (RIGAMONTE & SILVEIRA, 2018).
No entanto, podemos refletir: será que este limite está inibindo a plenitude da Liberdade de Expressão de humoristas, prevalecendo outros direitos da personalidade diante de tal liberdade? Trata-se de uma questão também para parte dos autores consultados, e que merecerá sempre reflexão – e ponderações em relação à tutela jurisdicional – a seu respeito.
Referências Bibliográficas
ANTONIALLI, Denys; SANTOS, Maike & OLIVA, Thiago. Censura judicial ao humor: uma análise sobre a postura dos tribunais em casos envolvendo liberdade de expressão na internet. Dissenso, 2017. Disponível em <http://dissenso.org/wp-content/uploads/2017/03/Censura-judicial-ao-humor-uma-an%C3%A1lise-sobre-a-postura-dos-tribunais-em-casos-envolvendo-
liberdade-de-express%C3%A3o-na-internet.pdf> Acesso em 30 de maio de 2019
MELINO, Heloísa e FREITAS, Lúcia. Humor em Stand up: limites entre liberdade de expressão, discurso de ódio e violência simbólica. Teoria crítica do direito: XXIII Encontro Nacional do Conpedi. João Pessoa: Compedi/UFPB, 2014. p. 393–410.
RIGAMONTE, Paulo Arthur Germano & SILVEIRA, Daniel Barile. Liberdade de Expressão e Humor: o exercício livre da comédia e a escalada judicial de processos na visão do STF. Curitiba: Juruá, 2018.
TEFFÉ, Chiara. Humor e liberdade de expressão: vale tudo? ITS Rio, 05 de janeiro de 2017. Disponível em < https://feed.itsrio.org/humor-e-liberdade-de-express%C3%A3o-vale-tudo-3f3e2177b0cc?gi=8be32022f888> Acesso em 30 de maio de 2019
WOLTON, Dominique. A liberdade de expressão e o Charlie Hebdo. Líbero, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 9-16, jan./jun. De 2015.
[1] Para melhor exposição a respeito, pode ser lido o artigo 11 trechos da condenação de Danilo Gentili que você precisa conhecer de Carlos Affonso, publicado em 12 de abril de 2019, disponível no link <https://tecfront.blogosfera.uol.com.br/2019/04/12/11-trechos-da-condenacao-de-danilo-gentili-que-voce-precisa-conhecer/ > Acesso em 30 de maio de 2019.
[2] Disponível em <https://feed.itsrio.org/humor-e-liberdade-de-express%C3%A3o-vale-tudo-3f3e2177b0cc?gi=8be32022f888 > Acesso em 30 de maio de 2019.
[3] Nas palavras de Melino & Freitas, Bourdieu “define a violência simbólica como um tipo de violência que é, ao mesmo tempo, sutil e poderosos e que se exerce sobre os indivíduos sem nenhuma violência física, de forma dissimulada, de modo que as pessoas agredidas a sofrem sem se dar conta que estão sendo violentadas” (MELINO & FREITAS, 2014: 12).
[4] Os autores apresentam exemplos de tutela jurisdicional da Liberdade de Expressão em seu livro, apresentando alguns casos, como o (i) caso do programa humorístico que constrangia uma atriz e cuja empresa televisiva foi condenada por danos à imagem da atriz; o (ii) caso do humorista que disse que “comeria” o bebê de uma cantora que se encontrava grávida, quando foi considerado que o humorista superara os limites do humor; (iii) o caso do HC 82.424-2/RS denegado pelo STF, cuja parte era um autor que negava a existência do holocausto, sob o pretexto de utilizar sua Liberdade de Expressão, e que fora acusado de racismo e, por fim, o (iv) caso da ADPF 187 proposta pela Procuradoria Geral da República, para que não fossem impedidas manifestações públicas em defesa da legalização de drogas, como a chamada “marcha da maconha”, votando o STF para que ficasse estabelecido que o direito de reunião e o direito à liberdade de expressão do pensamento seriam corolários para legitimação de assembleias, reuniões, marchas, etc, com o objetivo de obter apoio para projetos de lei, de criticar modelos normativos em vigor, de exercer direito de petição e de promover atos de proselitismo em favor das posições dos manifestantes. (RIGAMONTE & SILVEIRA, 2018: 48-53).