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Princípios penais constitucionais de sanção:

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Agenda 06/10/2024 às 23:33

Ao mesmo tempo em que dizemos ter superado as penas desumanas, cruéis, degradantes, perpétuas etc., ainda alimentamos um cenário de permanente descaso, omissão e descumprimento absoluto da Lei de Execução Penal.

1. INTRODUÇÃO

O cumprimento da pena pressupõe, obviamente, uma sanção penal imposta, in concreto. E a sua aplicação pressupõe, certamente, um processo penal, através do qual, assim que apurada a existência do fato delituoso e a sua autoria, aplicar-se-á a pena cominada in abstrato para o crime perpetrado pelo seu agente. Com isso, espera-se que todos os envolvidos neste episódio recebam sua parte: a sociedade, o exemplo; o condenado, a pena; a vítima, o ressarcimento.

Logo, a sociedade é virtualmente vingada. A ordem, restabelecida. A clama e o esquecimento assumem o lugar da inquietude, da irritação e do desejo de vingança causados nos cidadãos honestos quando do cometimento do crime. A repressão é, portanto, virtualmente perfeita com o pronunciamento da pena. Depois da condenação, o silêncio sucede ao rumor dos salões judiciários e o esquecimento à atenção geral. A população se desinteressa pela sorte dos condenados. A prisão é uma tumba onde se enterram os vivos, e nenhum epitáfio recorda aos passantes o nome daqueles que estão por detrás das grandes muralhas de pedra1.

Nesse passo, à execução penal não se tem dado a devida importância. Em nível legislativo, esquecemo-nos de vigiar o legislador no momento da elaboração de uma medida executiva, que se esquece, no mais das vezes, de anos de conquistas em caminhos de uma execução mais humana de pena. Já em nível doutrinário, os juristas parecem sucumbir diante do sensacionalismo, envergonhando-se de defender posições favoráveis a uma execução penal com fulcro na dignidade humana.

A pena de prisão, indubitavelmente o alicerce da maioria dos sistemas penais conhecidos, a principal sanção, não de hoje, demonstra seus reconhecidos males insanáveis, que se agregam àqueles devidos à rotina da execução desse tipo de sanção. A prisão, para quem a conhece, não é apta a reformar o homem, podendo apenas servir como meio de segregá-lo2.

Entretanto, deve fazê-lo com a devida atenção aos princípios penais constitucionais, que pautam a atividade punitiva estatal, limitando e dirigindo a aplicação da pena no Estado democrático de Direito, que há de ser, impreterivelmente pessoal, individualizada e humanamente aplicada em face do delito cometido pelo agente. Dito de outro modo, com o mero cumprimento da Constituição Federal e da Lei de Execução Penal, uma vez que, a inadequação da aplicação da pena vulnera toda a efetividade do sistema de persecução penal.

Assim, realizar-se-á uma análise crítica dos princípios penais constitucionais de sanção à luz do Estado democrático de Direito, desde a superação da pena capital - com a abertura humanitária proporcionada pelo Direito Canônico às penas - até os dias atuais em que, pressionados pela opinião pública e pela escassez de recursos, o Estado-execução penal se mostra incapaz de efetivamente cumprir o seu papel.

Empregar-se-á, para tanto, os métodos lógico-dedutivo e indutivo-argumentativo, através de análises fundamentais e qualitativas, tendo como recursos bibliografia nacional, estrangeira e periódicos.


2. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS LIMITES À INTERVENÇÃO PENAL

Tendo em vista a incansável busca por um Estado ideal, promotor de significativas alterações no seio social, poder-se-ia falar, então, em três momentos evolutivos de Estado de Direito, os quais correspondem, igualmente, a três dimensões de direitos fundamentais3. Assim, no Estado liberal de Direito, são principalmente garantidas as liberdades individuais (direitos fundamentais de primeira dimensão), alcançados com o intuito de libertar os indivíduos do absolutismo estatal4. Nesse passo, exige-se do ente dominante uma prestação negativa, uma abstenção estatal em respeito ao surgimento dos direitos civis e políticos dos cidadãos.

O anseio pela liberdade face ao intervencionismo do Estado monarca restou demonstrado já em 1215, quando da conquista da Magna Carta, pelos ingleses junto ao Rei João Sem Terra, momento em que desejavam que lhes fosse permitido construir livremente suas vidas, legalizando e limitando o totalitarismo do Leviatã 5.

Já em, em 1789, com a Revolução Francesa e a consequente criação do Estado moderno, alimenta-se, com as ideias iluministas, os ideais de liberdade, cunhados inicialmente nos aspectos econômicos - consagrados na expressão laissez-faire, laissez-passer - irradiam seus efeitos para outras dimensões da vida humana6, quando se passa a renunciar o absolutismo romano em favor da liberdade,

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Após a construção liberal, novas necessidades brotaram no seio social, dando ensejo à busca por uma igualdade, não à meramente formal, mas a substancial, capaz de mitigar as discrepâncias resultantes do liberalismo do Estado de distância, nascendo então a concepção de Estado social de Direitos, onde objetiva-se resguardar, também, os direitos sociais, culturais e econômicos, uma vez que a desigualdade social que resultou do movimento libertador passou a desconfortar a harmonia e a paz social7, e o homem seria tido como lobo dos seus pares, como o grande vilão perante os demais membros da sociedade, também em decorrência da competitividade que ascendeu com a nova concepção de mercado8.

Emerge então, um modelo de Estado intervencionista, o Estado providência, prestacionista, que atende aos anseios sociais e reduz as desigualdades com mecanismos compensatórios, positivos, com um facere. A adjetivação pelo social pretende a correção do individualismo liberal por intermédio de garantias coletivas. Corrige-se o liberalismo clássico pela reunião do capitalismo com a busca do bem-estar social, fórmula geradora do welfare state no pós-Segunda Guerra Mundial, projetando-se um modelo onde o bem-estar e o desenvolvimento social pautam as ações do ente público9.

Evoluindo, o Estado social segue em busca da constitucionalização, atendendo aos preceitos kelsenianos no sentido de se adotar como núcleo axiológico-legal de todo o Direito10. Fala-se, então, em nível normativo, em um Estado constitucional de Direito, em que se manifestam os direitos fundamentais de terceira dimensão, tais como a qualidade de vida, o meio ambiente, a liberdade de informática, a biotecnologia, a paz, a assistência e a organização familiar, entre outros metaindividuais11.

Almeja-se, outrossim, contrabalancear os excessos de permissividade do liberalismo face ao totalitarismo interventivo do Estado Social, dando ensejo aos direitos de solidariedade, de fraternidade, resultando-se, desta forma, no Estado constitucional de Direito, ou ainda, mais precisamente, Estado social e democrático de Direito, que representa uma concepção sintética fruto da união dos princípios próprios do Estado liberal e do Estado social, pressupondo uma superação dos componentes básicos de ambos, enquanto isoladamente considerados, o que permite acrescentar a terceira característica da forma constitucional: a democracia12.

O Estado democrático de Direito é, pois, um Estado constitucionalmente conformado e por isso, pressupõe a existência de uma Constituição e a afirmação inequívoca do princípio da constitucionalidade. E é na Constituição ordenação normativa fundamental e suprema que o primado do Direito do Estado democrático de Direito encontra sua primeira e decisiva expressão13. Constituição essa que garante a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais do homem, na sua complexa qualidade de pessoa, cidadão e trabalhador. Nesse sentido, o Estado de Direito é um Estado de distância, pois os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos; de outra banda, o Estado de Direito é um Estado antropologicamente amigo, ao respeitar a dignidade da pessoa humana e ao empenhar-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade14.

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E o Direito Penal, como subsistema do controle social formal de um Estado democrático e social de Direito, não pode ser desenfreado, arbitrário e sem limites. É evidente que esse controle deve estar submetido, no plano formal, ao princípio da legalidade15 leia-se: à subordinação as leis gerais e abstratas que disciplinem as formas de seu exercício - e, deve servir, no plano material, à garantia dos direitos fundamentais do cidadão16.

Nesta senda, o art. 1.º da Constituição Federal brasileira de 1988, constituiu juridicamente, na República Federativa do Brasil, um Estado democrático de Direito. Importa ressaltar que, apesar da ausência de menção do Estado social na denominação do modelo de Estado brasileiro, o legislador não deixou de adotá-lo17, vez que o Estado democrático é a conjugação dos modelos liberal e social, que surge na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como mera aposição de conceitos, mas como conteúdo próprio, onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo, constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo, da realidade, de modo que o seu conteúdo transcende o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de reconstrução de um projeto de sociedade, buscando solucionar o problema das condições materiais de existência18.

Ademais dessa otimização do grau de participação cívica na vida e nas decisões societárias, o Estado democrático de Direito também tem uma dimensão antropocêntrica, na medida em que se arrima, fundamentalmente, na dignidade da pessoa humana, ou seja, centra-se num ser com dignidade, um fim e não um meio, um sujeito e não um objeto19.

A explicitação das principais características do modelo jurídico pátrio mostra-se de suma relevância para a análise, compreensão e fixação dos limites do sistema global de controle social formal, de modo que cada subsistema, em especial o Direito Penal, deverá plasmar-se nos valores e princípios estruturantes da ordem jurídica, sendo a dignidade da pessoa humana o centro e o traço de ligação entre a ordem social e da ordem jurídica20, dignidade esta que vincula-se ao direitos e garantias fundamentais, responsáveis por reconhecer e formalizar os valores essenciais para um vida digna21.


3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS E PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS

O direito de punir do Estado democrático de Direito não é, e nem poderia ser, uma faculdade estatal desenfreada e arbitrária. Ao contrário, tanto a própria estrutura do modelo jurídico optado pelo Poder Constituinte leia-se: Estado democrático (e social) de Direito -, como o fundamento funcional do Direito Penal leia-se: a indispensável e amarga necessidade de pena para a tutela de bens jurídicos mediante a proteção dos valores ético-sociais mais elementares22 - contêm limitações expressas ou implícitas (art. 5.º, §2.º, CF).

Assim como os demais ramos do Direito, o Direito Penal fundamenta-se em determinados princípios - essenciais e diretores derivados dos valores ético-culturais e jurídicos vigentes em uma determinada comunidade social e numa certa época, os quais foram se impondo num processo histórico-político contínuo como sendo basilares à sociedade democrática23.

Nesse contexto, as Constituições promulgadas nos últimos decênios, sob um modelo de Estado incorporados dos valores liberais (Rechtsstaats) e sociais (Sozialstaats), as normas concernentes ao Direito Penal se traduzem em postulados que, de um lado, em defesa das garantias individuais, condicionais restritivamente a intervenção penal do Estado; e de outro, preceituam um alargamento da atuação do Direito Penal, ampliando a área de bens objeto de sua proteção, mesmo diante do vigor libertário daquelas. Dito de outra forma, apesar de as Constituições contemporâneas fixarem os limites do ius puniendi estatal, resguardando as prerrogativas individuais, elas também inserem normas propulsoras do Direito Penal para novas matérias, tornando-o um instrumento de tutela de bens metaindividuais, cujo resguardo se mostra indispensável para a consecução dos fins sociais do Estado24.

A presença de matéria penal nas Constituições contemporâneas se dá através de princípios especificamente penais, denominados princípios de natureza penal constitucional, bem como, de princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal. Enquanto aqueles são princípios penais constitucionais, estes são constitucionais penais. Tanto em um sentido como em outro, operam como fundamento e limite do exercício da atividade punitiva estatal25. Primeiramente, tratar-se-á dos princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal e, em seguida, dos princípios de natureza penal constitucional.

São princípios constitucionais gerais que versam a matéria penal, cujo conteúdo não é única ou especificamente penal, mas de caráter geral e heterogêneo26. Por não serem propriamente criminais, impõem-se tanto ao legislador penal, quanto ao civil, tributário, agrário etc, referindo-se, prevalentemente, ao aspecto de conteúdo das incriminações no sentido de fazer com que o Direito Penal se constitua em um poderoso instrumento de tutela de bens de relevância social27.

Traduzem, em linhas gerais, orientações ao legislado ordinário, determinando que elabore normas incriminadoras destinadas a proteção de valores transindividuais. São exemplos destes postulados as determinações contidas na Constituição Federal no sentido de proteção ao meio ambiente (art. 225, § 3.º, CF)28, ao trabalho (art. 6.º, CF) aos direitos do consumidor (arts. 5.º XXXII e 170, CF), à cultura (arts 215 e ss, CF) etc. Para a concreção dessas indicações constitucionais o legislador ordinário deverá editar normas de caráter civil prevendo indenizações, de caráter tributário prevendo tributos especiais e multas, dentre outras29 e, também, se efetivamente necessário, normas incriminadoras penais30.

Tais princípios, em quase sua totalidade, traduzam exigências de criminalização para a proteção de bens coletivos. Assim, via de regra, caracterizam-se por ampliarem a área de abrangência da resposta penal, alargando o campo de bens penalmente tutelados, neles incluindo os de natureza transindividual, promovendo, através dessa função propulsora31, uma modernização32, ou expansão33, do Direito Penal.

Nota-se, pois, que os princípios constitucionais penais são informados pelas exigências do Estado social (Sozialstaats), e tem intuito de fazer do Direito Penal, não o único e exclusivo, mas apenas mais um instrumento integrante da gama estatal de controle social, necessário à correção das distorções causadas por um individualismo exacerbado, que favorece a homogenização social, com vistas a realização da igualdade concreta e possível entre os cidadãos, ou seja, com a finalidade de contribuir para que se realize uma sociedade dotada de justiça material34.

São princípios de natureza penal constitucional aqueles, exclusiva e tipicamente penais, que se referem aos dados embasadores da ordem jurídico-penal, imprimindo-lhe determinada fisionomia35. Integram o Direito positivo em razão do próprio conteúdo, possuindo características materialmente constitucionais. Também descrevem os limites do ius puniendi, situando a posição da pessoa humana no âmago do sistema penal e estabelecendo os termos essenciais da relação entre indivíduo e Estado na seara penal36. Em sua maioria, se não em sua totalidade, os princípios penais constitucionais são garantidores das liberdades positivas e negativas37, limitando o poder estatal em face do indivíduo, assinalando normativas de conteúdo característico do Estado liberal de Direito (Rechtsstaats).

Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito suas categorias teoréticas -, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese, servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal38.

Nota-se que, tais postulados embasam a ordem jurídico-penal e o direito de punir do Estado (fundamento), indicando, não apenas seus fins e seu alcance, mas também as fontes e as exigências de seus enunciados e, principalmente, fixando suas infranqueáveis barreiras (limites)39. Os princípios penais constitucionais podem ser explícitos e implícitos. Os explícitos estão enunciados de forma expressa e inequívoca no texto da Constituição (v. g. princípios o da legalidade dos delitos e das penas - art. 5.º, XXXIX, CF -, o da personalidade da pena - art. 5.º XLV, CF-, o da individualização da sanção penal - art. 5.º, XLVI, CF- e o da humanidade das penas - art. 5.º, XLI, XLVII e XLIX, CF), ao passo que os implícitos se deduzem das normas constitucionais por nelas estarem contidos (v.g. princípios da culpabilidade, da intervenção mínima e da fragmentariedade)40.

Sobre o autor
Gerson Faustino Rosa

Doutor em Direito. Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo-SP. Mestre em Ciências Jurídicas. Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Ciências Penais. Universidade Estadual de Maringá-PR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado em Direito. Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente-SP. Professor de Direito Penal e Coordenador dos cursos da área jurídico-penal da Uniasselvi. Professor de Direito Penal nos cursos de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá, da Escola Superior da Advocacia, da Escola Superior da Polícia Civil e da Escola Superior em Direitos Humanos do Estado do Paraná, da Unoeste, do Cesumar, da Univel-FGV, da Fadisp, da Unipar, do Integrado e da Faculdade Maringá. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação da Universidade Estadual de Maringá-PR (2014-2019). Professor de Direito Penal e coordenador da pós-graduação em Ciências Penais da Universidade do Oeste Paulista (2016-2019). Professor de Direito Penal na Uniesp de Presidente Prudente-SP (2013-2016). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Penal e Segurança Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Direito Penal Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Gerson Faustino. Princípios penais constitucionais de sanção:: os limites da retribuição à luz da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7767, 6 out. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101705. Acesso em: 22 nov. 2024.

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