1 INTRODUÇÃO
A teoria geral do delito é estruturada em torno de uma dupla perspectiva, consistente em um juízo de desvalor que recai sobre um fato ou ato humano e como um juízo de desvalor que se faz sobre o autor desse fato. Ao primeiro juízo de desaprovação, chamamos antijuridicidade ou injusto penal. Ao segundo, chamamos culpabilidade.
Culpabilidade é, pois, a reprovabilidade de um ato humano, considerando determinadas condições psicológicas e volitivas de seu autor, no momento em que atua. É a censura da conduta da pessoa humana que, ante suas faculdades psíquicas, tenha podido adotar uma resolução de comportamento diversa.
Vale dizer, que referida desaprovação ou culpabilidade, tem como pressuposto ou condição, a maturidade e sanidade mental que confira ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se segundo esse entendimento. Assim, é culpável por ter praticado um fato típico e antijurídico, o agente que disponha de faculdades psíquicas mínimas que lhe possibilitem estruturar seu agir de acordo com a norma jurídica.
Essa disposição de entendimento da ilicitude do ato e de autodeterminação da conduta é o que a ciência penal denomina imputabilidade, ou seja, capacidade de culpabilidade.
Imputabilidade é aptidão para ser culpável, é um juízo que fazemos de fato futuro, previsto como meramente possível; a imputação é juízo de fato ocorrido. A primeira é contemplação de uma ideia; a segunda é o exame de um fato concreto.
Nessa linha de ideias, é forçoso concluir que o conceito é elementar para o entendimento da própria ideia de culpabilidade, posto que imputabilidade se nos apresenta como pressuposto e não elemento daquela como propugnam alguns. No entanto, objetivando investigar o tema com maior rigor cientifico, pautando os conceitos aqui tratados sob uma perspectiva histórica de seu desenvolvimento, façamos uma breve digressão sobre as teorias que cunharam o conceito de culpabilidade, e o respectivo desenvolvimento da ideia de imputabilidade, nosso tema central nesse estudo.
2 TEORIAS DA CULPABILIDADE
O Direito Penal evolui através dos tempos, na proporção direta da evolução da ideia de culpabilidade. O problema da culpabilidade é o problema do destino do Direito Penal. Podemos dizer que o Direito Penal se aperfeiçoa e enriquece com o conceito de culpabilidade[1].
Culpabilidade é conceito ligado a reprovabilidade que se faz incidir sobre o autor de um fato típico e antijurídico, quando podia, diante das circunstancias reais, agir de modo diverso. No entanto, essa ideia de reprovabilidade é resultado de uma rica construção cientifica pautada na responsabilização subjetiva do indivíduo. Ou seja, desenvolvida em sentido oposto à chamada responsabilidade objetiva pelo dano causado, sem se perquirir aspectos internos do atuar humano, via esta adotada por regimes totalitários de poder.
Nesse sentido, a primeira formulação técnica da culpabilidade funda-se num aspecto subjetivo da conduta delituosa, compondo a força moral ou nexo psicológico que liga o agente ao fato[2].
Dolo e culpa, são vislumbrados como espécies ou tipos desse aspecto subjetivo do delito, onde a vontade é elemento essencial. Estamos diante da chamada Teoria psicológica da culpabilidade. Por esse prisma, a culpabilidade encontra-se, na cabeça do delinqüente, considerando sua subjetividade, seu querer. O conceito é de cunho naturalístico, desprovido de valor, esgotado em dolo e culpa stricto sensu[3].
Num segundo momento, descobertas as deficiências dessa teoria, mormente quando confrontada com certos crimes de esquecimento (culpa inconsciente), são realizados estudos sobre o tema e novas formulações tentam superar as insuficiências apontadas. É, no entanto, em 1907 que, sob uma perspectiva dogmática jurídico-penal em voga desde o início daquele século - se passa a substituir conceitos naturalísticos puros por outros de ordem normativa, valorativa[4]. Dolo e culpa deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a constituir seus elementos. Por outro lado, são acrescentados elementos de natureza valorativa ao conceito de culpabilidade, cotejando-se o agir humano, ante certos atributos e condições pessoais do sujeito.
Passa-se a atribuir censurabilidade ou reprovabilidade à conduta praticada por alguém que, tendo capacidade de conhecer a norma, age contrariamente a esta. A culpabilidade, portanto, é fundada essencialmente na reprovação do agente por sua motivação contrária ao dever[5]. O conceito de culpabilidade evolui no sentido de excluírem-se elementos de ordem psicológica de seu conceito, e por outro lado preenchê-la com elementos de ordem normativa. A culpabilidade sai da cabeça do delinquente e passa para a do julgador.
Não se diga, com isso, que culpa em sentido amplo seja puro juízo de valor. É que, como se pode constatar, compreendem-na certos componentes de natureza fática como consciência (potencial) da ilicitude ou mesmo a capacidade de entender o injusto, e autodeterminar-se segundo essa capacidade (imputabilidade).
Por sua vez, o desenvolvimento do Finalismo, com a obra de Hans Welzel[6], trouxe a chamada teoria normativa pura ou teoria da culpabilidade cuja tônica consiste em averiguar se o autor pôde adotar uma resolução de vontade antijurídica de modo mais correto, ou seja, conforme a norma, e isso não no sentido abstrato de um homem qualquer no lugar do autor, mas no sentido concreto de que esse homem, nessa situação, teria podido adotar uma resolução de vontade de acordo com a norma.
Dolo e culpa, antes tidos como elementos naturalísticos da culpabilidade, migram para o tipo penal e são inseridos no espectro da conduta. Esvazia-se o conteúdo da culpabilidade, que passa a ser apenas censurabilidade, cujos requisitos são a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Na verdade, cresce em nossos dias a ideia de que do conceito de culpabilidade não se pode excluir definitivamente o dolo e a culpa. Como se tem afirmado, o dolo ocupa dupla posição: em primeiro lugar, como realização consciente e volitiva das circunstancias objetivas (do fato típico), e, em segundo, como portador do desvalor da atitude interna que o fato expressa.
3 A IMPUTABILIDADE PENAL COMO CAPACIDADE DE SER CULPÁVEL
Já vimos que o pressuposto fundamental da ideia de culpabilidade tem seu substrato elementar na imputabilidade, ou seja, funda-se em condições pessoais do agente, que demonstrem sanidade mental ou psicológica suficientes a entender o caráter ilícito do fato e de conduzir-se segundo esse entendimento[7]. Com efeito, pode-se observar que historicamente, o conceito de imputabilidade surgiu como uma limitação da responsabilidade penal das pessoas que tinham faculdades psíquicas mínimas para participar integralmente da vida de relação social[8].
Pessoas desprovidas de sanidade mental ou maturidade psicológica suficientes ao entendimento pleno do agir ético, têm diminuída ou eliminada sua responsabilidade ante os fatos sociais. A falta de atributos dessa natureza, prejudica a capacidade de consciência e vontade do ser humano, o que torna injusta a responsabilização penal. Até porque, nestes casos, a pena se nos apresenta como instituição inútil, considerando dentre suas finalidades a função ressocializadora daquele que delinquiu.
Mas o fato é que, a noção livre-arbítrio, de capacidade de autodeterminação, de um agente que possa ser motivado pelo mundo ético do Direito, nos conduz inexoravelmente a ideia de imputabilidade, como capacidade de ser culpável. Para Mayer o pressuposto fundamental da imputação é a capacidade do autor para ser imputado. De acordo com a definição nominal, é a capacidade para atuar culpavelmente. Como tal, é a diferença da capacidade de ação e da capacidade penal. A capacidade penal é, tal como a capacidade de contratar, um conceito mais rico, contendo também a capacidade de ação. Portanto, ao capaz de atuar não atribuímos as capacidades entender e de querer. Podem, contudo, em decorrência de uma situação transitória (ex.: embriaguez) restar excluídas tanto a capacidade de ação como também a coincidência dos efeitos diferentes[9].
Assim, infere-se que imputabilidade nada mais é do que o conjunto de requisitos que conferem ao indivíduo capacidade, para que, juridicamente, lhe possa ser atribuído um fato delituoso[10].
A legislação anterior à reforma de 1984 tratava o tema sob a epígrafe, Da responsabilidade penal, o que de rigor é uma impropriedade do ponto de vista científico.
Responsabilidade é a obrigação que alguém tem de arcar com as consequências jurídicas de um crime. Imputabilidade, no entanto, é a capacidade de ter contra si a imputação do mesmo crime.
Em suma, imputabilidade é capacidade genérica de entender e querer, ou seja, de entendimento do comportamento injusto e de autogoverno[11]. Assim, para que se considere um indivíduo imputável, faz-se imprescindível a presença concomitante das capacidades de compreensão do caráter ilícito do fato e de autodeterminação conforme esse entendimento. Porém, basta a ausência de uma delas para que a capacidade de culpabilidade seja excluída, configurando a inimputabilidade penal do agente. Podemos exemplificar com o sujeito dependente químico que, apesar de entender o caráter ilícito do furto e do roubo, o faz porque precisa de dinheiro para comprar drogas, pois não é capaz de determinar-se conforme esse entendimento, já que a dependência dessas substâncias prevalece sobre seu querer, tornando-o, em tese, inimputável.
Conforme nos esclarece Francisco Muñoz Conde, no processo de interação social, que supõe a convivência, o indivíduo, obrigado por seus próprios condicionamentos ao intercâmbio e à comunicação com os demais, desenvolve uma série de faculdades que lhe permite conhecer normas que regem a convivência no grupo a que pertence e dirigir seus atos de acordo com essas normas. Assim se estabelece um complexo processo de interação e comunicação que corresponde ao que na psicologia moderna se chama motivação. À capacidade de motivação da pessoa, ante preceitos normativos considerando sua individualidade chamamos imputabilidade[12]. O conceito de imputabilidade, no entanto, não é fornecido pela legislação penal brasileira. Extraímo-la das normas contidas nos artigos 26 e seguintes do Código Penal.
E essa imputabilidade pressupõe a presença das faculdades psíquicas do agente, para que se motive diante dos preceitos normativos que fluem no meio social. A ideia de livre-arbítrio, é estruturada a partir da capacidade de vontade do sujeito. Vale dizer que num plano intelectivo e volitivo pode-se vislumbrar as faculdade humanas.
Todavia, tal tese é criticada por parte da doutrina, uma vez que se baseia em algo indemonstrável, como a liberdade de querer, e reduz as faculdades psíquicas àqueles dois planos intelectivo e volitivo sem considerar uma série de outros fatores também determinantes na capacidade de culpabilidade (fatores socioculturais, intercâmbio comunicacional etc)[13].
Os critérios utilizados são o biológico (etiológico), onde se presume uma falta de capacidade de imputabilidade considerando a maturação do agente, e o biopsicológico normativo, que se observa de um lado, certos estados mentais do indivíduo (doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado) e, de outro, que deles resulte completa incapacidade de entendimento da ilicitude ou autodeterminação[14]. Critérios estes que serão analisados juntamente com as causas de exclusão ou atenuação da imputabilidade penal.
4 A CULPABILIDADE, SUAS CAUSAS EXCLUDENTES E A INIMPUTABILIDADE PENAL
A culpabilidade, portanto, conta com três requisitos: a capacidade de querer e entender (imputabilidade), a consciência da ilicitude (consciência real ou potencial da ilicitude) e a normalidade das circunstâncias (exigibilidade de conduta diversa). Desta forma, as causas excludentes da culpabilidade afetam cada um desses requisitos. Existem, portanto, três grupos distintos que excluem a culpabilidade, sendo um que exclui a imputabilidade, outro que exclui a potencial consciência da ilicitude (ou conhecimento do injusto) e um último que afeta a exigibilidade de conduta diversa (ou normalidade da situação de ação). Logo, se a culpabilidade conta com três requisitos, qualquer causa que afaste um deles, consequentemente, elimina a própria culpabilidade.
E as causas excludentes de culpabilidade denominam-se exculpantes, dirimentes ou eximentes. Não devem ser confundidas com as causas justificantes (excludentes de antijuridicidade ou de ilicitude), tampouco, com as causas atipificantes (excluem a tipicidade penal), e são distintas, ademais, das causas de exclusão da punibilidade (excluem a punibilidade abstrata)[15], assim como das causas que excluem a própria conduta (ex: coação física irresistível, sonambulismo, hipnose, ato reflexo etc).
Saliente-se, inicialmente, que o estudo da imputabilidade importa, ademais, no esclarecimento das situações de inimputabilidade, de imputabilidade reduzida, bem como dos problemas político-criminais da emoção, da paixão e da actio libera in causa. Neste sentido, a imputabilidade pode ser excluída em determinados casos, denominadas causas excludentes de imputabilidade ou causas legais de exclusão da imputabilidade.
Em nosso ordenamento jurídico, haverá a exclusão da imputabilidade nas seguintes hipóteses:
1 Doença mental (art. 26, CP)
2 Desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, CP);
3 Embriaguez acidental (involuntária) completa (art. 28, II, §1º, CP);
4 Dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas (art. 45, caput, Lei nº. 11.343/06);
5 Menoridade (art. 27, CP e art. 228, CF).
Destaca-se, em princípio, que todas as hipóteses de exclusão da imputabilidade penal mencionadas devem se fazer presentes no exato momento da ação ou omissão do agente (requisito temporal), ou seja, as capacidades de entendimento e compreensão sobre a ilicitude do ato, bem como a de autodeterminação, serão analisadas no momento da conduta delitiva. Posto que, é perfeitamente possível que o sujeito seja absolutamente capaz ao tempo da ação criminosa, porém sobrevenha-lhe doença mental suprimindo suas capacidades de entender e querer, o que não excluirá sua capacidade de culpabilidade, devendo este responder normalmente pelo crime.
Neste passo, são causas que excluem a imputabilidade penal:
a) Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, CP): A doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, se aliados à falta de capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, produzem a inimputabilidade[16].
A capacidade mental de entendimento é aquela que nos permite distinguir o certo do errado, o permitido do proibido, ou seja, entender o caráter ilícito do fato. Uma criança de 3 anos de idade, por exemplo, não possui tal capacidade. Já a capacidade de autodeterminação refere-se ao autocontrole, a capacidade do indivíduo de direcionar seus atos de acordo com suas convicções e, principalmente, com o ordenamento jurídico, determinando-se conforme esta compreensão.
Apesar de tratadas no mesmo tipo penal, doença mental, desenvolvimento mental incompleto e desenvolvimento mental retardado distinguem-se, na medida que:
Doença mental: é uma alteração da saúde mental, independentemente de sua origem, compreendendo as patologias constitucionais ou adquiridas do aparelho psíquico, definidas como psicoses exógenas e endógenas. As psicoses exógenas compreendem: as psicoses produzidas por traumas (lesões) e por tumores ou inflamações do órgão cerebral, a epilepsia grave, a desagregação da personalidade por arteriosclerose ou atrofia cerebral (ex.: paralisia cerebral progressiva, demência senil); as psicoses endógenas compreendem, fundamentalmente, a esquizofrenia[17] e a paranoia[18].
Desenvolvimento mental incompleto ou retardado[19]: desenvolvimento mental incompleto é aquele cujo desenvolvimento ainda não foi concluído devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional. O desenvolvimento mental retardado, por sua vez, mostra-se incompatível com o estágio de vida em que se encontra a pessoa, estando, portanto, abaixo do desenvolvimento normal para a idade cronológica. Logo, ao contrário do desenvolvimento incompleto, onde não há maturidade psíquica em razão da ainda precoce fase da vida do agente ou da falta de conhecimento empírico, no desenvolvimento retardado a capacidade não corresponde às expectativas para aquele momento da vida, o que significa que a plena potencialidade jamais será atingida.
Compreendem-se aqui todas as hipóteses de oligofrenias[20] (reduz o coeficiente intelectual), como defeitos constitucionais do órgão cerebral; as debilidades mentais, que admitem frequência a escolas especiais, ou realização de atividades práticas, mas não o exercício de profissões; as imbecilidades, com exigência de cuidados especiais da família ou de instituições, mas sem possibilidade de vida independente; as idiotias,[21] marcadas pela necessidade de custódia e, frequentemente, pela incapacidade de falar[22]. Podemos enquadrar dentro desta modalidade de causas de incapacidade de culpabilidade, além dos já explicitados, os seguintes exemplos: os portadores de debilidade mental, de psicopatias, os surdos-mudos não educados, os silvícolas não integrados etc.
Verifica-se, portanto, a necessidade da presença simultânea de três requisitos: biológico (a causa, a doença mental), psicológico (o efeito, a supressão das capacidades de entendimento ou autodeterminação) e temporal (a ocorrência dos requisitos anteriores no exato momento da conduta). Configurada tal situação, o causador da conduta criminosa, em tese, será absolvido, sendo esta uma absolvição imprópria, pois a ele dever-se-á ser imputada uma medida de segurança[23].
A constatação, no agente, de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado necessita da realização de exame pericial, de modo que, suspeitando-se da saúde mental do indivíduo, deverá o juiz, ex ofício ou mediante requerimento, determinar que seja instaurado incidente de insanidade mental, através do qual realizar-se-á a perícia psiquiátrica, cabendo ao expert apurar se o agente é portador de moléstia ou retardo mental (vide artigos 149 a 152 do CPP). Insta salientar, ademais que, a conclusão pericial não vinculará a decisão judicial, conservando o magistrado no tocante às provas, como sempre, a faculdade de livre convencimento (art. 155, caput e 182 do CPP)[24].
b) Embriaguez acidental (involuntária) e completa (art. 28, II, §1º, CP): Embriaguez é a causa capaz de excluir a capacidade de entendimento e a vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (ex.: morfina, ópio, etc), estimulantes (ex.: cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)[25]. A embriaguez completa por caso fortuito ou força maior, pelo álcool ou substâncias análogas, também constitui estado psíquico patológico excludente da capacidade de culpabilidade. Logo, somente a embriaguez (intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool) completa e involuntária exclui a culpabilidade. Neste sentido, o Código Penal prevê que:
Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. § 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (grifou-se)
Observa-se, portanto, que a ebriedade voluntária e culposa não exclui a imputabilidade penal, mas, como dito, somente o faz, a embriaguez completa e involuntária. E o estado inebriante subdivide-se em três estágios: excitação (estado eufórico provocado pela inibição dos mecanismos de autocensura), depressão (após a excitação, advém a confusão mental em conjunto com uma irritabilidade, deixando o sujeito mais agressivo) e sono (estado de dormência profunda, letargia) sendo completa nestas duas últimas, pois retira completamente a capacidade de discernimento do agente.
É possível que o sujeito se embriague voluntariamente (quando tem a intenção de fazê-lo) ou de forma culposa (excesso imprudente no consumo de bebida alcoólica). Em tais casos, não há que falar em inimputabilidade, que pressupõe a embriaguez involuntária, isto é, oriunda de caso fortuito (quando se ingere substância cujo efeito inebriante era desconhecido) ou força maior (no caso de ser fisicamente compelido a consumir bebida alcoólica ou substância de efeitos análogos). Aos casos de embriaguez voluntária, dolosa ou culposa, aplica-se a teoria da actio libera in causa.
Ainda neste ensejo, destaca-se que, juridicamente, a embriaguez acidental e completa, quando do cometimento do delito, resulta em absolvição própria do agente por exclusão da culpabilidade. Porém, se o comprometimento da capacidade de compreensão ou autodeterminação for apenas parcial, incidirá uma causa de diminuição de pena de um a dois terços[26]. A embriaguez poderá ainda, ter como efeitos: a imposição de medida de segurança quando patológica[27] (alcoolismo equiparado à doença mental - art. 26, CP) ou imposição de agravante genérica do art. 61, II, l, do CP[28], caso a ela tenha sido preordenada (agente se embriaga propositadamente para cometer o crime).
c) Dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas (art. 45, caput, Lei nº. 11.343/06): A antiga legislação de entorpecentes (Lei nº. 6.368/76) já considerava, em seu art. 19, o efeito fortuito ou de força maior de droga sobre o aparelho psíquico, e a dependência de droga (estados psíquicos de angústia pela privação da droga, com profundas mudanças da personalidade) como situações patológicas agudas ou crônicas excludentes da imputabilidade penal (e da culpabilidade)[29]. Com o advento da nova Lei Antidrogas (Lei nº. 11.343/06), tal previsão passou a compor, com idêntica redação, o art. 45 desta, com os seguintes dizeres:
Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de drogas, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (grifou-se)
Importante assinalar que a referida legislação adotou sistemática semelhante àquela destacada no art. 28 do CP[30], quando trata da inimputabilidade penal por embriaguez completa e involuntária. Refere-se ao sistema biopsicológico ou misto[31], exigindo-se para sua configuração a causa, como sendo a dependência ou o consumo involuntário de drogas; o efeito, qual seja, a supressão das capacidades de entendimento ou de autodeterminação; e por fim, o momento, requisito temporal, que deve estar presente em todas as causas excludentes da imputabilidade penal, posto que a supressão das aptidões mentais deve ter ocorrido ao tempo da ação ou omissão (qualquer que seja a infração penal cometida).
Merecem destaque, no contexto do art. 45 da Lei Antidrogas, duas situações:
1ª) Quando a causa da intoxicação e consequente supressão das qualidades mentais for o consumo acidental (leia-se, involuntário) da drogas, não sofrerá o agente a inflição de qualquer sanção penal, sendo o caso de absolvição própria. Posto que, quando se tratar de drogadição ou intoxicação fortuita, é insustentável a aplicação de qualquer medida contra o agente. Se a embriaguez fortuita completa não gera nenhuma consequência penal ao agente, não podemos tratar de forma diferente a intoxicação fortuita em razão de drogas;
2ª) Já se a causa for dependência a drogas, ter-se-á absolvição imprópria, devendo-lhe ser imposta medida de segurança nos termos do parágrafo único[32] do art. 45, cabendo ao magistrado, nesse caso, quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial que este apresentava, à época dos fatos, dependente de drogas (e, portanto, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento), determinar, na sentença, seu encaminhamento para o tratamento médico adequado[33].
Relevante apontar, por derradeiro, que, em se tratando de intoxicação voluntária, aplicar-se-á também a teoria da actio libera in causa (infra) tal como ocorre nos casos de embriaguez voluntária, dolosa ou culposa.
d) Menoridade (art. 27, CP e art. 228, CF): A responsabilidade penal dos menores de 18 (dezoito) anos sempre foi tema objeto de grande controvérsia e árdua solução. Não obstante, a opção por incriminá-los ou não constitui decisão política do legislador e, seja qual for a saída encontrada, não se eximirá de críticas. Historicamente, cite-se o art. 10 do Código Criminal do Império (1830), ao tempo do qual atingia-se a maioridade penal aos 14 (quatorze) anos de idade[34]. Neste mesmo diploma legal, consideravam-se absolutamente irresponsáveis os menores de 9 (nove) anos (critério biológico), enquanto que os maiores de 9 e menores de 14 anos eram relativamente responsáveis, puníveis sempre que obrassem com discernimento (critério biopsicológico)[35].
Tais faixas etárias podem hoje, ser tidas como absurdas ou ultrapassadas, mas não se pode ignorar que se trata de uma época em que as pessoas casavam-se aos 14 anos e morriam aos 50. O Código Penal de 1890 modificou o tratamento dado ao assunto, fixando assim a maioridade penal em 14 (quatorze) anos, adotando unicamente o critério biológico. Em 1940, com a promulgação do Código Penal atual, o parâmetro passou a ser o da inimputabilidade penal dos menores de 18 (dezoito) anos, os quais sujeitam-se a legislação própria, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (Lei n°. 8.069/90)[36], consagrando o princípio da inimputabilidade absoluta por presunção, com fulcro no critério biológico da idade do agente, e que, a partir da Carta de 1988 passou a ter assento constitucional[37] (art 228, CF).[38]
Neste sentido o art. 27 do Código Penal dispõe que os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90) prevê, no caso de ato infracional (crime ou contravenção penal) praticado por criança ou adolescente, medidas de proteção genéricas (art. 98) e específicas (art. 101) e, ainda, para adolescentes, medidas socioeducativas (art 112), tais como internação, semiliberdade, etc. Importante assinalar que, se o agente já tem 18 anos completos, mas ainda não atingiu os 21 anos, faz jus à atenuação da pena (art. 65, I, CP)[39] e à redução do prazo prescricional (art. 115, CP)[40].
O atual critério decorre da presunção legal de que indivíduos menores de 18 anos não possuem o desenvolvimento biopsicológico e social necessário para compreender a natureza criminosa de suas ações ou para orientar o comportamento de acordo com essa compreensão.
Observa-se, portanto, que o legislador define um critério correto de política criminal, posto que, adolescentes menores de 18 anos podem até compreender o injusto de alguns crimes graves, tais como homicídio, lesões corporais, roubo e furto. Porém, não são capazes de compreender o injusto da maioria dos crimes comuns e, praticamente, de nenhum dos crimes definidos em leis especiais (crimes contra o meio ambiente, a ordem econômica e tributária, as relações de consumo, o sistema financeiro etc), e em todas as hipóteses acima referidas, não são capazes de comportamento conforme a compreensão do injusto, por insuficiente desenvolvimento do poder de controle dos instintos, impulsos ou emoções[41].
Registre-se ainda, que a idade do agente deve ser aferida no momento da conduta, isto é, da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado. Trata-se de solução decorrente do art. 4º do CP, que adotou a teoria da atividade com relação ao tempo do crime. Acrescente-se, que a maioridade penal dá-se a partir do primeiro minuto do dia do décimo oitavo aniversário do agente, sendo de todo irrelevante avaliar o horário do fato para vincular à hora de seu nascimento, de modo que, para efeitos penais, desprezam-se as frações de dia (tais como horas e minutos).
Nesta seara, apesar da previsão do art. 5º do Código Civil de que a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil, a cessação da incapacidade para os menores pode ainda ocorrer pela emancipação se o menor tiver dezesseis anos completos; pelo casamento; pelo exercício de emprego público efetivo; pela colação de grau em curso de ensino superior; pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria (art. 5º, parágrafo único, Código Civil). Todavia, ainda que nestas hipóteses o menor seja considerado plenamente capaz para os atos da vida civil, para efeitos penais, é considerado menor, estando, por conseguinte, sujeito às disposições da legislação especial (Lei 8.069/90 ECA)[42].
5. CAUSAS QUE NÃO EXCLUEM A IMPUTABILIDADE PENAL
5.1 SEMI-IMPUTABILIDADE[43]
Tem-se aqui a denominada imputabilidade diminuída ou atenuada, que se refere à redução da capacidade de culpabilidade. Constitui área intermediária, estado limítrofe, terreno neutro, situada entre a perfeita saúde mental e a insanidade, em virtude da dificuldade existente, muitas vezes, em ser traçada uma linha precisa de demarcação[44]. A capacidade relativa de culpabilidade supõe a graduabilidade da capacidade de compreender o injusto ou de agir conforme essa compreensão[45], caracterizada pela maior ou menor dificuldade de dirigibilidade normativa, e determinada por perturbação da saúde mental[46] (art. 26, parágrafo único, CP) e pelas demais hipóteses descritas no item anterior (exceto a menoridade), quais sejam: doença mental (art. 26, CP); desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, CP); embriaguez acidental (involuntária) completa (art. 28, II, §1º, CP); dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilícitas (art. 45, caput, Lei nº. 11.343/06).
Nos termos do art. 26, parágrafo único, CP, A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (grifou-se).
Observa-se que o Código Penal emprega a expressão perturbação de saúde mental, ao invés de doença mental, o que constitui um minus, significando uma mera turbação na capacidade intelectiva. Assim, entre o imputável que tem capacidade de entender e de querer - e o inimputável que é inteiramente incapaz de entender e de querer -, acha-se o semi-imputável, que conta com reduzida capacidade de entender e de querer. Na verdade, trata-se de agente imputável e responsável por ter alguma noção do que faz, mas sua responsabilidade é reduzida em virtude de ter agido com culpabilidade diminuída em consequência das suas condições pessoais. Há, para este, apenas perda de parte da capacidade de entender e de querer.
Via de regra, ao semi-imputável aplica-se pena, diminuída de um a dois terços. Excepcionalmente, porém, incide a medida de segurança, sempre que verificada a necessidade de tratamento especial curativo[47]. A sentença, nesse caso, é condenatória, devendo o juiz fixar a pena e, posteriormente, fazer a redução de um a dois terços. Trata-se de direito público subjetivo do agente, o qual não pode ser subtraído pelo julgador, além de causa obrigatória de redução de pena (natureza jurídica), de modo que, demonstrado pericialmente que o réu é fronteiriço, o magistrado, na terceira fase de aplicação da pena, deve obrigatoriamente reduzi-la de um a dois terços[48].
Depois de diminuída, se for o caso, a pena transformar-se-á em medida de segurança. Acabou, como se vê, o sistema do duplo binário[49] no Direito Penal brasileiro, vigorando, atualmente, o sistema alternativo, erroneamente chamado de vicariante[50], devendo o julgador optar (alternativamente), conforme o caso, pela pena ou pela medida de segurança[51].
5.2 EMOÇÃO OU PAIXÃO
No Código Penal de 1890 a perturbação dos sentidos e da inteligência afastava a culpabilidade. Por esse motivo, comumente absolvia-se autores de crimes passionais, notadamente de homicídios, sob a alegação de legitima defesa da honra, o que ora não mais se admite. Em razão do disposto no Código Penal, art. 28, I, nem a emoção nem a paixão excluem a imputabilidade penal podendo, somente, privilegiar o tipo de injusto ou atenuar a pena. Tais institutos não se confundem. Por emoção entende-se a intensa e transitória perturbação da afetividade ou a viva excitação do sentimento, tais como: ira, medo, alegria, cólera, ansiedade, surpresa, vergonha, prazer erótico. Cuida-se de um estado momentâneo. A paixão, por sua vez, corresponde a um forte sentimento de cunho duradouro, como por exemplo, o amor, a inveja, a avareza, o ciúme, a ambição, a vingança, o ódio, o fanatismo etc[52]. Importa-nos mencionar que, se a paixão ou a emoção tiverem caráter patológico, a hipótese enquadrar-se-á no art. 26, caput, do CP, equiparando-se, portanto, à doença mental[53].
Destaque-se, ainda, neste contexto, que a violenta emoção logo após a injusta provocação da vítima funciona como causa atenuante nos crimes em geral (art. 65, III, c, CP)[54] ou mesmo como causa de diminuição de pena do homicídio (art. 121, § 1º, CP)[55]. A diferença entre elas reside no fato de que, para a atenuante basta que o agente atue sob a influência de violenta emoção, enquanto que no homicídio privilegiado (ou mesmo na lesão corporal), a lei exige atuação sob o domínio de violenta emoção.
O crime cometido por paixão, por sua vez, denomina-se passional. Homicídio passional é, portanto, aquele cometido por paixão. Não isenta o agente de pena. Em todos os crimes passionais, é imprescindível se descobrir o motivo real do delito (ciúme, ódio, motivo torpe, etc.) para fins de aplicação da pena. Ressalte-se, pois que, muitas vezes, o homicídio passional mostra-se mais reprovável do que o comum.
Resta-nos mencionar que, também é circunstancia atenuante genérica ou causa de diminuição da pena, o motivo de relevante valor social ou moral que pode estar relacionado com uma paixão social (ex.: piedade, patriotismo, etc), nos termos dos arts. 65, III, a; 121, § 1º e 129, § 4º, CP, respectivamente. Por outro lado, uma paixão antissocial, poderia configurar uma agravante genérica (ex.: cupidez, art. 62, IV, CP) ou até uma qualificadora (ex.: art. 121, § 2º, I, CP)[56].
5.3 EMBRIAGUEZ FORTUITA E INCOMPLETA
Tem-se aqui a embriaguez denominada acidental, qual seja a que decorre de caso fortuito ou de força maior. Caso fortuito ocorre quando o agente ignora a natureza tóxica do que está ingerindo, ou não tem condições de prever que determinada substancia, na quantidade ingerida, ou nas circunstancias em que o faz, poderá provocar a embriaguez. Já a força maior é algo que independe do controle ou da vontade do agente. Ele sabe o que está acontecendo, mas não consegue impedir (ex.: coação, onde o sujeito é forçado a ingerir substância tóxica de qualquer natureza)[57].
Por sua vez, é incompleta a embriaguez quando alcança apenas o primeiro estágio (fase de excitação). Desta forma, considera-se fortuita e incompleta, a embriaguez na qual o agente, ao tempo do crime, não tinha plena capacidade de entendimento e autodeterminação, sendo este imputável pela existência, ainda que dirimida, desta possibilidade de entender e de querer. É o que dispõe o art. 28, § 2º, CP:
A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (grifou-se)
Não há, portanto, exclusão da imputabilidade (e da culpabilidade), devendo o sujeito ser responsabilizado por sua conduta, porém, com a pena diminuída de um a dois terços. Apesar da redação do art. 28, do CP, dizer que a pena pode ser reduzida, prevalece o entendimento na doutrina de que trata-se de diminuição obrigatória da pena, até porque, o nível de censurabilidade é bem menor nesses casos[58].
5.4 EMBRIAGUEZ VOLUNTÁRIA OU CULPOSA E A TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSA
Nos termos do artigo 28 do Código Penal, não excluem a imputabilidade penal: II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos, devendo o acusado responder, normalmente, pela infração penal cometida nesta situação. A referida previsão legal deve, entretanto, compatibilizar-se com o princípio da responsabilidade subjetiva, o que se alcança com o auxílio da teoria da actio libera in causa. Recorde-se que, encontra-se vedada no moderno Direito Penal a responsabilidade objetiva, não se admitindo que alguém seja punido sem que tenha agido com dolo ou culpa, motivo pelo qual concebe-se a plena valia desta teoria em nosso Direito.
A ação livre na causa (actio libera in causa) pressupõe capacidade de culpabilidade na ação precedente, em que o autor se coloca em estado de incapacidade de culpabilidade, com intenção de realizar (dolo) ou sendo previsível a possibilidade de realizar (imprudência/culpa) fato típico posterior determinado. Assim, a actio libera in causa consiste na autoincapacitação temporária com o propósito de praticar crime determinado ou em situação de previsibilidade de praticar crime determinado (ação anterior), realmente praticado no estado subsequente de incapacitação temporária (ação posterior)[59].
A doutrina majoritária buscou resolver em nível de tipicidade, o problema daquele que se coloca em estado ou situação de inculpabilidade, e em tal estado ou situação comete um injusto. Desta forma, a conduta em que consiste este injusto não é livre no ato, mas é livre na sua causa, razão pela qual se formulou a teoria da actio libera in causa, segundo a qual, o dolo ou a culpa do injusto deve ser deslocado para a vontade do sujeito, presente no momento em que ele se colocou no estado de incapacidade de culpabilidade[60]. Para a incidência dessa teoria devemos distinguir três momentos importantes, quais sejam: a) a conduta precedente livre (ato de beber ou drogar-se, que pode ser intencional ou não; voluntário ou culposo); b) a conduta posterior do agente em estado de incapacidade e c) o resultado (lesão ou perigo concreto ao bem jurídico)[61].
Por isso diz-se que, a teoria dominante da actio libera in causa em fatos dolosos estabelece que: o elemento intelectivo do dolo deve representar as características de um tipo de crime determinado, cujo resultado deve ser produzido em estado de incapacidade de culpabilidade (embriaguez); o elemento emocional do dolo deve querer a realização (ou conformar-se com a realização) desse crime determinado no estado posterior de embriaguez, como autocolocação em estado de incapacidade temporária de culpabilidade. Desse modo, na ação precedente, o dolo tem por objeto a autocolocação em estado de incapacidade de culpabilidade e, nesse estado, a realização de fato determinado; já na ação posterior, o autor realiza, em estado de incapacidade de culpabilidade o fato determinado, objeto do dolo[62]. Outra interpretação é incompatível com o princípio da culpabilidade[63].
Logo, a actio libera in causa, como já referimos, fundamenta a punibilidade de ações praticadas em estado de embriaguez não acidental. No entanto, não abrange aquelas situações em que o agente quer ou imprudentemente se embriaga sem prever ou poder prever a ocorrência de um fato delituoso. Nelas, o que é livre na causa não é a ação criminosa, mas somente a embriaguez. Poderá o agente praticar um ilícito penal em estado de embriaguez, que era absolutamente imprevisível, no momento da embriaguez ou antes dela. Nessa hipótese, não vige o princípio da actio libera in causa, senão estaríamos diante de hipótese de imputação objetiva do resultado.
Por isso, se diz que, quando há imprevisibilidade não se pode falar em actio libera in causa, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao Direito, anterior ao estado de embriaguez, isto é, quando o agente se encontrava em perfeito estado de discernimento[64]. Desta forma, a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade penal quando o agente tenha atuado com dolo ou culpa em relação ao resultado produzido. Portanto, ele responderá pelo resultado quando, mesmo estando em estado de embriaguez, tenha atuado frente a este com dolo ou culpa. Fora disso, como já dito, seria admitir a responsabilidade objetiva, o que é abominável e inconstitucional.
No que tange a embriaguez preordenada, entende-se por aquela em que o agente deliberadamente se embriaga para praticar a conduta, liberando seus freios inibitórios e fortalecendo sua coragem. Nesta modalidade de embriaguez apresenta-se a hipótese de actio libera in causa por excelência. O sujeito tem a intenção, não apenas de embriagar-se, mas esta é movida pelo propósito criminoso; a embriaguez constitui apenas meio facilitador da execução de um ilícito desejado.
Os tribunais pátrios têm tido uma postura equivocada acerca do tema em voga, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado[65].
6. CONCLUSÃO
Como facilmente se aufere, inexiste algo mais fascinante e ao mesmo tempo misterioso que o fenômeno criminal. Não obstante, por vezes, o fato revele simplicidade, pode ele ensejar configurações que aguçam a mais excepcional das inteligências. O crime acontece no ventre social, porém, devemos considerá-lo como um fenômeno eminentemente humano, afinal, o crime nasce com a humanidade. Houve já quem considerou o crime um fato normal, oriundo da própria existência humana.
Afirma-se que o ser humano tem livre-arbítrio sobre seus atos, podendo posicionar-se ou não, de acordo com a lei. Porém, uma infinidade de fatores criminogenéticos, vindos da própria constituição do delinquente ou do meio social em que vive, podem mirar a sua resistência interna, rompendo seu elemento repressor de manifestações delitivas, tornando o livre-arbítrio não tão livre como se supõe. É cediço que, tanto na gênese da lei, ou seja, quando esta nasce, como na sua aplicação prática, faz-se mister conhecer e compreender o ser humano, uma vez que a ciência jurídica se propõe a espelhá-lo e assim modelar suas condutas. Para tanto, o Direito não se basta sozinho, deve socorrer-se à ajuda de outras ciências, que podem exercer papéis fundamentais no seu desenvolvimento, tal como ocorre entre com o Direito Penal e a Psicopatologia Forense, a Medicina Legal e a Criminologia.
Cada dia essa necessidade mostra-se mais desnuda, posto que vivemos em um mundo de concorrências, de competições, onde a angústia e a ansiedade podem dominar aqueles que menos resistem a elas. Ademais, o conceito atual de um profissional competente é aquele que tem conhecimento abrangente e diversificado sobre o campo em que atua. Por isso, cada vez mais, ciências, como a Criminologia, devem ser, não só consideradas, mas aplicadas de forma complementar ao Direito.
Entrementes, para conhecer o ser humano é necessário penetrar os esconderijos de sua psique, adentrando-lhe a identidade. Nesse sentido, quanto maior for a profundidade, melhor será o resultado. Diante disso, aquele que se propõe a julgar a conduta alheia tem de ser, primordialmente, um cientista do comportamento humano, devendo a lei ser aplicada e elaborada exatamente com esta finalidade. Contudo, não se pode admitir que o operador do Direito se limite a aplicá-la impensadamente, tratando a Ciência Penal como se exata fosse, reduzindo-se ao resultado frio e inalterável da soma entre o fato e a lei. Os delinquentes são tão diversos e complexos entre si quanto os delitos que praticam. A Justiça deve, portanto, conhecer primeiro o homem, esperando-se, da mesma forma, que o homem também a conheça.
Isso acontece também, especialmente quando o assunto refere-se ao polêmico tema da imputabilidade penal, onde se discute sobre a punibilidade do doente mental, do dependente de álcool ou de psicotrópicos, sobre a redução da menoridade penal, sobre a culpabilidade do delinquente fronteiriço, entre outros assuntos de relevância penal e criminológica. Posto que, é exatamente na imputabilidade penal que a criminologia mostra-se imprescindível ao Direito Penal, ocorrendo aqui o casamento, a união de duas ciências distintas e autônomas, sendo que esta (Direito Penal) é complementada por aquela (Criminologia). Apesar de alguns autores entenderem ser este um grande absurdo, como o fez o saudoso Nelson Hungria, que referiu-se à criminologia como teia de Penélope, dizendo não haver entre ela e o Direito Penal nenhuma afinidade ou relação necessária.
Conclui-se, dessa forma que, considerar como imputável alguém sem capacidade de culpabilidade, ainda que a tivesse no momento da conduta, configura mais que uma grande incoerência jurídica, mas um ato de imprudência para com a sociedade, visto que problemas como a doença mental e a dependência excluem as capacidades de entender e de querer do agente. Seria garantir a concretização de um normativismo obsoleto e ineficaz e contrariar os princípios do próprio Direito Penal, que puniria um indivíduo cuja personalidade é doentia e cujo pensamento é delirante, condenado a viver para sempre à espera do próximo surto, já que a linha que separa seu estado normal do anormal é tênue.
O Direito Penal, então, não terá atingindo nenhuma de suas funções sociais. Da mesma forma, a pena não poderá retribuir o mal causado, posto que, se o delinquente não pode entender sequer a ilicitude de sua conduta, o que dirá do motivo de estar preso. Tampouco, poderemos falar em ressocialização, ao passo que o cárcere atual possui altíssimos índices de reincidências para os que são imputáveis, como haverá então de recuperar os inimputáveis. Sendo que estarão sucumbidos junto à oca literalidade da lei confeccionada por legisladores, cujos conhecimentos em psicopatologia forense eram deploráveis, nem a sociedade, que terá criado, nas suas entranhas, e por sua culpa direta, um delinquente que sairá da prisão ainda mais perigoso.
Por oportuno, cabe ainda ressalvar que, também para a população carcerária é prejudicial à presença de um doente mental em sua constituição, não sendo saudável tal situação nem para o doente, nem para os outros presos. Desta forma, o Direito Penal tem por função primeira, a exclusiva proteção dos bens jurídicos de todos, resguardados com o intuito de garantir a harmonia e a paz social, o bem-estar da sociedade como um todo. E posto isso, a proteção não deveria se restringir e não alcançar esses indivíduos tão carentes de proteção e tratamento.
A imputabilidade penal atua, desse modo, como pressuposto da culpabilidade, e não como seu requisito, uma vez que a análise da incapacidade de entender o caráter ilícito do fato, antecede e exclui a possibilidade de responsabilidade penal do agente, inimputável. Dito de outra forma, a inexistência do elemento intelectivo equivale a uma incompreensão absoluta daquele que atua sem saber o que faz, e sem portanto, se autodeterminar. Assim, não há como falar em capacidade de culpa daquele que, sequer consegue compreender a ilicitude de sua conduta, atuando a imputabilidade, nesta hipótese, como um impedimento lógico a análise da culpabilidade, que passará a ser feita sob a ótica da inimputabilidade.
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