Atualmente a agricultura familiar no Brasil vive um dos piores níveis de insegurança alimentar no país. Tal segmento sofreu impacto da crise econômica durante o período pandêmico, mas principalmente por ser a mais afetada pelo desmonte de políticas públicas voltadas para o pequeno produtor, tal como o PAA, objeto de estudo deste artigo. A retomada de iniciativas públicas e garantia do incentivo a agricultura familiar é o caminho certo para a erradicação da pobreza, a proteção ao meio ambiente e a garantia das diretrizes dos direitos humanos.
No Brasil, devido à extensão territorial nacional e à localização majoritariamente tropical, as possibilidades de cultivo e produção são imensas e extremamente diversificadas. Tais vantagens permitem que as exportações agrícolas tenham uma inegável importância. Porém, tratando-se de mercado interno é visível a importância da agricultura familiar.
A agricultura familiar é entendida como o sistema produtivo que permite a transmissão de memórias e a reprodução social e econômica de uma família no campo ou na cidade-estado. Para a FAO, a agricultura familiar é reconhecida como a forma predominante de agricultura no setor de produção de alimentos e tem importante papel socioeconômico, ambiental e cultural (COSTA & CUNHA, 2021). É isso que garante a soberania alimentar e é a forma mais rápida e segura de garantir a segurança alimentar e a sustentabilidade para todos. Como tal, garante também as condições ambientais, com menor utilização de pesticidas, herbicidas e maquinaria.
De acordo com o último censo Agropecuário de 2017, cerca de 77% dos estabelecimentos agropecuários pertencem a agricultura familiar, o que correspondem a 23% de toda a terra nacional (IBGE, 2017). São eles os responsáveis pelas culturas permanentes, o segmento responde por 48% do valor da produção do café e banana, 80% da produção de mandioca e 42% da produção do feijão.
Para se entender o atual contexto das políticas públicas na agricultura familiar, precisamos primeiramente entender seu contexto histórico.
Durante a década de 1950, o governo brasileiro começa a adotar uma estratégia de industrialização em massa, visando superar as importações e diminuir a defasagem que separava o Brasil de outras economias industrializadas. Nesse período, o Estado atuou como agente produtivo por meio de criação de infraestruturas estatais, agente financeiro, articulador de capital e privilegiando a criação de uma economia agrária industrial.
A agricultura familiar no Brasil somente começa a receber a atenção governamental após o relativo fracasso da Revolução Verde em assegurar o acesso à alimentação para toda a população, do aumento da inflação e das críticas ao padrão dependente e excludente seguido pela industrialização. Os pequenos produtores, atualmente conhecidos como agricultores familiares acabaram se endividando sem a devida ajuda do Estado, desempregados e sem-terra, o que fez com que o êxodo rural e agrícola aumentasse
Ante essa crise, duas vertentes aparecem disputando espaço na agenda pública (GRISA, 2012). A primeira, reivindicada por acadêmicos, por políticos e por movimentos sociais, uma destas opções clamava por um conjunto de reformas de base, dentre elas a reforma agrária. Contudo, a segunda vertente, suportada pela elite agrária e pelos militares, buscou-se a modernização tecnológica da agricultura, pois acreditava que somente através disso poderiam cumprir as funções no desenvolvimento economico do país.
Durante os vintes anos de ditadura militar, os representantes da sociedade civil não encontraram espaço na arena pública para discutir e construir em conjunto com os gestores públicos políticas para a categoria social.
Foi somente em 1988 que os agricultores familiares se tornaram objetos de maior intensidade das políticas públicas brasileiras. Após inúmeras frustrações com metas que deveriam ter sido alcançadas com o agronegócio, começa a haver a devida caracterização da figura do agricultor familiar, que começam a deixar de ser caracterizados como camponeses e pequenos produtores.
Com a abertura democrática e mudanças político-institucionais, teve-se a oportunidade de negociações para a definição das Leis Agrícola e Agrária. Cátia Grisa e Sergio Schneider (2012) relatam, ainda, que:
Algumas das demandas dos representantes da agricultura familiar foram incorporadas e institucionalizadas no momento de construção da Lei agrícola, a qual reconheceu a diversidade dos agricultores brasileiros e previu a construção de uma política agrícola diferenciada para os pequenos produtores. Todavia, estas conquistas ficaram aquém das reivindicações destes atores, prevalecendo as ideias e interesses do poder da agricultura patronal.
Somente com a ascensão do Governo Lula, a agricultura familiar assume um papel central na questão do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição, visando a erradicação da fome e das desigualdades sociais.
Com a decisão política tomada no início de 2003, de tornar o combate à fome uma prioridade de governo, de sintonizar a política economica e social na promoção de um novo ciclo de crescimento economico baseado no fortalecimento do mercado interno, com distribuição de renda e redução das desigualdades. Elaborou-se, então, a principal política pública para a erradicação da fome: o FOME ZERO, uma agenda integrada de ações estruturais e emergenciais, que teve na transferência de renda condicionada uma importante ferramenta de divulgação e acesso aos direitos sociais básicos.
Dentre as ações do Fome Zero, podemos destacar umas principais, que possui ligação imediata com a agricultura familiar: o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
A Lei nº 10.696/2003, em seu artigo 19, diz respeito ao Programa de Aquisição de Alimentos. Criado em 2003, constitui uma política pública desenvolvida para incentivar a agricultura familiar, além de promover a inclusão social no campo, na intenção de garantir alimento às populações em situação de insegurança alimentar através da compra da produção agrícola.
A proposta era de se realizar compras da produção familiar garantindo preços justos e renda aos agricultores e facilitando o processo de doação de alimentos. Além disso, o PAA era um instrumento e aliado da política alimentar e promoção de hábitos saudáveis, além de fazer com que a agricultura familiar assumisse um papel mais relevante no abastecimento alimentar dos equipamentos públicos e para atender à demanda das populações que vivem nas cidades medias e grandes.
Após a revitalização da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), entre 2003 e 2020 foram destinados cerca de 4,3 bilhões de reais para o PAA tendo sido adquirido mais de 500 tipos de alimentos diferentes e atendido mais de 18 mil entidades que atuavam no atendimento a pessoas em situação de insegurança alimentar (PORTO, PEREZ-CASSARINO, & DINIZ, 2021).
Vale ressaltar que, em 2014, de acordo com a FAO, o Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome, retirando mais de 32 milhoes de brasileiros que sofriam com a fome da linha extrema da pobreza.
O PAA foi desenhado com seis modalidades de aquisição de alimentos e repasse de suprimentos:
Compra com doação simultânea: promove a articulação entre a produção da agricultura familiar e as demandas locais de suplementação alimentar, além do desenvolvimento da economia local. Os produtos adquiridos dos agricultores familiares são doados às pessoas em insegurança alimentar por meio da rede socioassistencial e, em condições especiais à rede pública e filantrópica de ensino.
Compra direta da agricultura familiar: aquisição de determinados produtos definidos pelo comitê gestor para ações de abastecimento social ou venda com o objetivo de regular preços.
Apoio à formação de estoques pela agricultura familiar: apoio financeiro para a constituição de estoques de alimentos por organizações da agricultura familiar para posterior comercialização e devolução dos recursos ao poder público.
Incentivo à produção e consumo de leite: compra e processamento de leite bovino e caprino, doação aos beneficiários para suprir demandas locais de suplementação alimentar, previamente castrados nas prefeituras locais.
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Compra institucional: aquisição de alimentos operada por todos os órgãos federais (hospitais, penitenciárias, quartéis, restaurantes universitários e escolas), estaduais e municipais, com seus recursos próprios sendo dispensados de licitação.
Aquisição de sementes: sementes, mudas e outros tipos de materiais propagativos de culturas para alimentação humana ou animal destinados para doação.
Embora o PAA tenha sido comprovadamente um programa eficiente, elogiado inclusive internacionalmente, a partir de 2016, o programa entra em uma fase de redução drástica.
Os dados são muito simples de analisar. De acordo com os dados do Conab em 2015, o valor investido do PAA foi de R$ 298.119.718,27, sendo produzido no total 135.023 toneladas de alimentos, com mais de 500 tipos de produtos diferentes, sendo beneficiárias cerca de 38.794 famílias produtoras (COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO , 2016). Ainda, temos que desse total de produtores agrícolas, mais de 40% eram comandados por mulheres, garantindo sua inserção socioeconomica e diminuindo a sua invisbilidade no campo rural. No entanto, em 2019, sob o novo Governo Bolsonaro, os dados do Conab demonstram que o valor investido no programa foi R$ 41.380.857,26, produzindo somente 14 mil toneladas de alimentos, sendo beneficiárias 5.885 famílias, com 80% das famílias sendo comandas por mulheres (COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO, 2020).
No mais, em 2021, após a mudança drástica na orientação política do governo, com o desmonte agenda nacional de segurança alimentar, a Medida Provisória nº 1061/2021 extingue os programas ligados ao Fome Zero, apostando momentaneamente do programa Alimenta Brasil.
Apesar de em um primeiro momento essa Medida Provisória apresente semelhanças com o PAA no que diz respeito aos objetivos e aos métodos de aquisições, há uma série de incertezas em relação ao seu funcionamento, principalmente por não terem uma regulamentação futura garantida pelo poder executivo.
CONCLUSÃO
Com o reconhecimento da Constituição Federal de 1988 ao direito à alimentação como uma obrigação do Estado, a erradicação da pobreza e a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais progrediram no período de 2003 a 2016.
As estratégias do Fome Zero constituíram uma agenda de políticas públicas destinadas ao acesso a direitos sociais básicos principalmente buscando solucionar a desigualdade social no meio rural. Com estas ações, principalmente o PAA, buscou-se incluir agricultores familiares, sem acesso a documentação, assistência técnica, isolados do Poder Público e com grandes dificuldades de acesso aos créditos bancários.
Com o desmonte dessas políticas públicas durante o Governo Bolsonaro e com o advento da pandemia, o segmento da agricultura familiar sofreu um grande impacto da crise economica e tem vivido um dos piores níveis de insegurança familiar de acordo com o Inquérito de Segurança Alimentar.
Tal situação reforça a necessidade de políticas públicas permanentes que possibilitem o aumento dos rendimentos familiares, sejam elas de melhor distribuição da renda, bem como geração de emprego, renda e poder compra, mais acesso à educação e proteção do meio ambiente.
REFERÊNCIAS
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COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO. (2020). Agricultura Familiar Programa de Aquisição de Alimentos - PAA: Resultados das Ações da Conab em 2020. https://www.conab.gov.br/agricultura-familiar/execucao-do-paa.
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GRISA, C. (Junho de 2012). POLITICAS PÚBLICAS PARA A AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL: PRODUÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS IDEIAS. (As políticas públicas para a agricultura familiar no Brasil: um ensaio ...) Tese de Doutorado Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
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PORTO, S. I., PEREZ-CASSARINO, J., & DINIZ, P. (2021). O DHANA E O PROGRAMA ALIMENTA: RISCOS E RETROCESSOS NAS COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR. https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/02/NTecnica1_2022_FianBrasil_comAlteracoes.pdf: FIAN BRASIL.
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