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Consegue segurar seu “like”?

Agenda 05/01/2023 às 15:20

Leandro Sarai[1]

Enquanto os céticos da Antiguidade pregavam a suspensão do julgamento (εποχή), a filósofa contemporânea Elke Wiss entende que deixar de julgar é impossível, pois seria algo natural como comer, beber e respirar. Porém, segundo ela, seria possível suspender a conclusão desse julgamento, ou seja, deixar de aprovar ou condenar, deixar de interpretar, e apenas observar. Ela narra, a propósito, a parábola de um camponês e seu filho, que viviam em um vilarejo rural da China, e só possuíam, além de suas terras e sua moradia, um único cavalo. Certa vez esse cavalo escapou. Diante desse fato, as pessoas do vilarejo disseram que isso era uma tragédia, algo terrível. Mas o camponês apenas respondia algo como: Bom ou mau, quem sabe dizer? Só sei que meu cavalo fugiu. Dias depois, o cavalo retornou e trouxe junto consigo sete outros cavalos selvagens. As pessoas então disseram: Nossa! Que sorte. Mas o camponês novamente respondia: Bom ou mau, quem sabe dizer? Só sei que ganhei novos cavalos. Alguns dias passaram e o filho do camponês tentou montar em um dos novos cavalos e acabou caindo e quebrando as duas pernas. As pessoas, diante disso, exclamaram: Que horror! Pobre menino! Que azar! O camponês mantinha-se calmo e apenas dizia: Bom ou mau, quem sabe dizer? Só sei que meu filho quebrou as duas pernas. No dia seguinte, o exército chegou no vilarejo para recrutar todos os homens em condições de lutar na guerra que havia acabado de ser declarada. Como o filho do camponês estava com as pernas quebradas, ele não foi recrutado. Novamente, diante do espanto com a sorte do camponês e de seu filho, o camponês replicava: Bom ou mau, quem sabe dizer?... [2].

Vamos deixar de lado a distinção entre julgar e concluir o julgamento. Natural ou não, é incrível o afã de julgar. Essa tendência supostamente natural parece ter sido aproveitada há muito tempo pela mídia tradicional e atualmente pelas mídias sociais, que transformaram a sociedade num grande banco de jurados. Do conforto de nossas casas, condenamos e absolvemos, elogiamos e recriminamos. Podemos considerar uma gentileza curtir a postagem de um amigo ou podemos considerar um dever manifestarmos nossa discordância em relação a algum fato que desaprovamos. Tudo sem contar o efeito viciante das notificações de que alguma postagem nossa foi curtida ou comentada.

Ao clicar em curtir (like) ou não curtir (dislike) algo, o algoritmo por trás dos programas detecta a interação e o interesse do público e repete conteúdo semelhante, buscando manter a atenção do usuário[3]. Se houver um comentário, o algoritmo detecta interesse ainda maior, pois para comentar é exigido esforço maior do que para simplesmente clicar na mãozinha fechada com o dedo polegar erguido, com o sinal de positivo.

O interesse das mídias sociais em detectar e satisfazer o interesse dos usuários está em que, quanto mais visualizações houver, mais conseguirão vender espaço para anúncios e com valor maior.

Não importa se o conteúdo é bom ou não. As mídias buscam veicular aquilo que proporciona lucro maior. Somente irão parar se houver algo que possa causar prejuízo, como uma lei ou uma violação dos costumes que possa afetar sua reputação. Discute-se o papel das mídias, sobre se seriam meras intermediárias e se seriam ou não responsáveis pelos conteúdos veiculados, bem como se poderiam exercer algum controle. Essa discussão afeta os bônus e os ônus de seu negócio.

É controvertido o controle de conteúdo, pois não é claro o limite da liberdade de expressão, ainda que haja situações em que fique claro o abuso. Envolve ainda o fenômeno do capitalismo de vigilância e da proteção dos dados pessoais.

De todo modo, o que importa para elas é manter o usuário o máximo de tempo possível de olho na tela e, se possível, fazer com que clique nos anúncios e compre algo.

Se por trás do algoritmo algo é capaz de influenciar o comportamento, começa-se a questionar até onde vai o livre arbítrio e qual o poder efetivo da manipulação.

Os vieses algorítmicos, que direcionam o conteúdo conforme o interesse, podem eventualmente reforçar crenças. Ao mostrar apenas conteúdos semelhantes, visões de mundo diferentes são abandonadas e o usuário cria uma bolha de realidade. Qualquer fato estranho a essa bolha passa a ser alvo de incredulidade e de desconfiança, pois gera desconforto e esforço para compreensão[4].

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Criam-se assim grupos com visões de mundo compartilhadas. O perigo da criação de grupos é a segregação social em relação a outros grupos e a tendência natural a haver conflitos entre grupos e, como dito, até mesmo violência[5]. Poderia o simples ato de clicar no joinha para curtir uma postagem contribuir para uma manifestação violenta? Pode parecer inofensivo o entretenimento das redes sociais, mas já foram documentadas manifestações violentas de multidões que teriam se organizado por meio delas[6].

Deixando de lado essa questão dos julgamentos envolvendo gosto e desgosto, aprovação e condenação, se tomarmos um pouco de consciência de nossa conduta, talvez tenhamos um espírito um pouco mais crítico e perguntaremos se algo que se nos mostra é plausível ou não ou se é verdadeiro ou não.

Saber se gostamos ou não de algo é automático. Buscarmos o motivo do gosto ou desgosto é um pouco mais complicado. Julgarmos se algo é verdadeiro ou não é ainda mais complexo. A depender do ponto de vista ou da perspectiva, pode-se dizer que há mais de um conceito de verdade e mesmo que a verdade seria inalcançável[7].

Se a verdade é inalcançável ou de difícil acesso, como conciliar esse fato com aquelas situações em que o julgamento é necessário?

Tomemos, por exemplo, o julgamento realizado pelo Poder Judiciário. Se filosoficamente a verdade pode estar inatingível, juridicamente o processo e os conflitos precisam terminar, afinal, a vida é finita e curta. A partir do momento em que o Estado monopoliza o uso da força para solucionar os conflitos em caráter definitivo, a decisão torna-se necessária, indispensável e premente. As pessoas não podem passar a vida aguardando a solução de seus conflitos nem temendo decisões arbitrárias que lhes subtrairiam a segurança.

Montesquieu, no início do livro vigésimo nono do Espírito das Leis resgata uma ideia de Aristóteles sobre a importância da moderação e da busca do meio termo. No caso, após trazer um histórico do Direito na França no livro anterior, inicia o livro vigésimo nono ressaltando que o legislador deve alcançar o bem moral e o bem político em algum ponto entre dois extremos. Com foco principalmente no processo judicial, lembra que, na busca por garantir liberdade e segurança aos cidadãos, a dose de formalidades pode violar um ou outro desses objetivos, seja, por um lado, por tornar processos intermináveis, seja, por outro, por levar a decisões temerárias sem as necessárias cautelas[8].

Essa preocupação está intimamente ligada com a necessidade de buscar justiça na solução dos conflitos, justiça que demanda a busca da verdade, que por sua vez depende das provas. Provar tem relação com os sentidos, com a verificação empírica, com as sensações. É nesse sentido que se diz que provamos os alimentos, ou seja, que os experimentamos.

Transpondo essa ideia para os fatos, encontramos um problema. O alimento a ser provado normalmente está presente diante da pessoa que irá prová-lo. Por outro lado, quando se diz num processo que fatos precisam ser provados, normalmente há necessidade de prova de um fato que já ocorreu. O sujeito destinatário da prova, na maioria das vezes, estará em outro tempo e em outro local em relação aos fatos.

O objetivo da prova seria fazer o juiz experimentar indiretamente, levá-lo o mais próximo possível de vivenciar os fatos ocorridos. A partir daí, uma vez convencido do que supostamente ocorrera, o magistrado teria condições de formar seu juízo quanto à verdade ou procedência da alegação das partes e estaria apto a se pronunciar sobre quem teria razão no processo.

Como a verdade poderia ser em alguns casos (ou talvez em todos) inalcançável, a lei estabeleceu critérios de julgamento para situações em que o magistrado estivesse em dúvida. Daí, por exemplo, o brocardo in dubio pro reo do Direito Penal e mesmo a regra geral de que quem alega deve provar.

A sociedade concluiu que assim deveria ser o processo judicial e há situações em nossa vida cotidiana em que também necessitamos chegar a alguma conclusão sobre a verdade de uma proposição (ou algo próximo disso) para podermos decidir. Se há exigências mínimas para se chegar a uma conclusão no processo judicial e mesmo assim ainda há chances de falha, por que deveria ser diferente na vida cotidiana?

O caminho recomendável nesses casos parece ser seguir as conclusões da ciência. A ciência não é tudo, mas é o melhor que temos até prova em sentido diverso. Ela nos fornece um meio termo entre, de um lado, a abertura para novas ideias e para reavaliar o conhecimento consolidado, e, de outro, o espírito crítico e cético para avaliar as proposições novas e mesmo antigas[9].

Mas se não estamos diante de um processo judicial e se o exame crítico acima pode parecer um pouco trabalhoso, ainda há algo bem simples que pode resolver a maioria das situações que se põem diante de nós como que a pedirem um julgamento: basta darmos um passo atrás e questionarmos: Precisamos efetivamente expressar nosso julgamento?

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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