Essa não é a primeira vez que utilizo, analogicamente, do título do livro do italiano Piero Calamandrei “elogio dei giudici scritto da um avvocato”, traduzido no Brasil como “eles, os juízes, vistos pós nós, os advogados”1.
Em 2019, por exemplo, foi publicado o texto “Ele, o juiz imparcial, visto por um advogado”, onde teci algumas singelas reflexões sobre o dever de “imparcialidade” do juiz em tempos de “polarização ideológica” e da chamada “Operação Lava Jato”2.
Recentemente, participando do I Encontro dos Juízes do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), pude novamente retomar as reflexões sobre a atuação de um julgador, mas agora sob o enfoque administrativo, especificamente nos procedimentos ético-disciplinares.
Para tanto, me despi da “beca” (veste talar do advogado) para cobrir-me, novamente, com a veste da “toga” (traje utilizado pelo juiz).
E o fiz por ter sido juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-GO (TED) pelo período de 6 anos (2010/2015), atuante, portanto, no 1º Grau de Jurisdição; posteriormente, por mais 6 anos (2016/2021), com atuação no 2º Grau de Jurisdição, como Diretor Tesoureiro, e, por fim, como Conselheiro Federal da OAB, na Instância Especial, para um mandato de 3 anos (2022/2024).
Por isso, deixo claro que esse texto é escrito por um juiz e seu conflito decisório; afinal, punir o infrator das normas ético-disciplinares, que prejudica o seu cliente e, ainda, acaba por denegrir a imagem da advocacia, é civilizatório e necessário. Mas a ambição aqui é procurar demonstrar, minimamente, como tem ocorrido a luta interna no momento da aplicação do direito, e como se espera que isso aconteça.
Feito esse breve introito, parto da seguinte indagação: para que serve o processo ético-disciplinar?
Apesar da complexidade da pergunta, entendo, sinteticamente, que o processo ético-disciplinar visa apurar a conduta de um advogado ou estagiário inscrito na OAB que violou as determinações éticas e disciplinares previstas na legislação.
Com esse propósito, o processo deverá ser concebido não somente como um instrumento necessário para a verificação da imputação administrativa, de legitimação do exercício do poder de punir, mas também de efetivação das garantias constitucionais, isto é, existe uma necessária simultaneidade e coexistência entre repressão às infrações ético-disciplinares e o respeito às garantias constitucionais, onde o processo desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido3.
Esse questionamento é essencial, na medida em que os juízes do TED se defrontam com preceitos constitucionais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a presunção da inocência, a produção de provas, os poderes instrutórios, o dever de fundamentar as decisões, dentre outros.
No momento, me aterei à relação umbilical do exercício do poder de punir com a chamada “presunção da inocência”.
Antes, porém, não posso deixar de concordar com Piero Calamandrei, quando ressalta que “sem independência dos juízes não é possível justiça”4, e que a qualidade mais respeitada nos magistrados é a “imparcialidade, a resistência a todas as seduções do sentimento”5.
De fato, os juízes do TED devem se manter sempre fieis e atentos aos postulados que regem a ordem democrática, julgando os casos que lhes forem submetidos de modo independente, imparcial e imune às indevidas pressões externas.
Mas sob o enfoque cognitivo, a título de ilustração, não é incomum encontrarmos julgadores que antes mesmo de analisar o fato ou a conduta objeto do procedimento ético-disciplinar, se arvoram em analisar os antecedentes do processado, subvertendo o estado de inocência como norma de tratamento, para acabar formando um verdadeiro juízo prévio de culpa. Em alguns casos concretos, inclusive, já tive a oportunidade de manifestar em sentido contrário, conforme revelam os trechos de ementas adiante colacionados:
“...Os (maus) antecedentes ou a reincidência do Representado não devem compor a formação prévia do juízo de culpabilidade, pois, diante da principiologia constitucional democrática, a responsabilização ético-disciplinar ocorre pelo fato não pelo autor...” (TED/OAB-GO, Proc. 2011/04815, Rel. Juiz Roberto Serra da Silva Maia, julgado em 25.11.2014).
“PROCEDIMENTO. ÉTICO-DISCIPLINAR. ANTECEDENTES OU REINCIDÊNCIA. ETIQUETAMENTO. JUÍZO DE CONDENAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA. ABSOLVIÇÃO.1. em face da concepção analógica oriunda do Direito Penal que refuta o chamado ‘Direito Penal do Inimigo’, o julgador deverá ser plenamente capaz de ignorar os (maus) antecedentes e a reincidência do Representado, sem etiqueta-lo, para a formação do juízo de condenação, pois, diante da principiologia constitucional democrática, a responsabilização ético-disciplinar ocorre pelo fato e não pelo fato e não pelo autor, devendo eventuais antecedentes ou reincidência ser levados em conta tão somente no momento da aplicação da sanção. 2. Diante da precariedade das provas produzidas e a luz dos princípios constitucionais que animam o procedimento ético-disciplinar, meros indícios ou suposições não bastam para impor um decreto condenatório, uma vez que a probabilidade não se traduz em certeza, devendo o Representado ser absolvido em homenagem ao princípio in dubio pro reo. 3. Representação improcedente” (TED/OAB-GO, Proc. 2011/03097, Red. Juiz Roberto Serra da Silva Maia, julgado em 10.2.2015).
Também é possível acompanhar alguns pronunciamentos no sentido de se inverter o ônus da prova, tendo o representado a necessidade de demonstrar a sua inocência.
No entanto, mesmo cientes da necessidade de punir uma conduta ético-infracional, é nosso dever, enquanto julgadores nos respectivos processos, ingressarmos no feito convencidos da inocência do representado. Por consequência, a condenação somente poderá ocorrer quando impossível absolver6, ou para além de qualquer dúvida razoável.
Esse entendimento decorre da interpretação do art. 8, item 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)7, e também do art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que estabelece a chamada “presunção de inocência” ou de “não culpabilidade”, ao dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”8.
Ressalte-se, nesse contexto, que o conceito de “presunção de inocência”, notadamente quando examinado na perspectiva do ordenamento constitucional brasileiro, deve ser considerado nas múltiplas dimensões em que se projeta, valendo destacar, por expressivas, as seguintes abordagens que esse postulado constitucional enseja: (a) a “presunção de inocência” como norma de tratamento9, (b) a “presunção de inocência” como norma probatória10, e (c) a “presunção de inocência” como norma de juízo (julgamento)11.
A “presunção da inocência” afasta o dogma segundo o qual não haverá culpa por presunção nem responsabilidade ético-disciplinar por mera suspeita, e se liga à própria finalidade do processo ético-disciplinar. A “presunção da inocência” garante que, para a prolação de uma decisão condenatória, será necessário provar a culpa do representado. Se houver dúvida sobre qualquer dos elementos do tipo ético-disciplinar, ou acerca da autoria infracional, o representado deverá ser absolvido, sendo mantido seu estado inicial de inocência.
O Supremo Tribunal Federal (STF) ao apreciar a “presunção de inocência” como norma probatória, tem reiteradamente advertido que o ônus da prova referente aos fatos constitutivos da imputação penal incumbe, exclusivamente, a quem acusa.
Isso significa que não compete ao representado demonstrar a sua própria inocência. Ao contrário, cabe a quem representa ou ao órgão persecutor comprovar, em plenitude, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do representado e os fatos constitutivos da própria imputação ético-disciplinar pertinentes à autoria ou à participação, à materialidade da infração e ao nexo etiológico entre uma dada conduta reputada punível e os resultados danosos dela decorrentes12.
É preciso, portanto, que tenhamos a compreensão que desde os primeiros momentos do procedimento ético-disciplinar, onde há um juízo de atribuição de conduta infracional a alguém, o princípio da “presunção de inocência” protegerá o imputado com toda a amplitude exigida pela Constituição, assegurando que tão importante garantia não se torne mera retórica em nosso cotidiano jurídico, a significar, portanto, que o direito fundamental de ser presumido inocente, nos precisos termos em que vem proclamado e assegurado por nossa Carta Magna, não deve expor-se a quaisquer interpretações flexibilizadoras do seu conteúdo e da extensão dos seus efeitos.
Desse modo, a visão precípua dos juízes do TED, por um juiz do TED, pode-se resumir da seguinte forma:
O juiz deverá ser independente, imparcial e imune às indevidas pressões externas.
O juiz deverá conceber o processo ético-disciplinar não apenas como um objeto de punição ao infrator da norma, mas, sobretudo, como um instrumento de garantias, para que possa ele ser julgado com justiça.
O juiz deverá compreender que não poderá haver presunção de culpa. A Constituição Federal estabelece o princípio da “presunção de inocência” como um postulado que está relacionado ao tratamento do imputado, sendo, pois, um preceito fundante, em torno do qual é construído todo o processo ético-disciplinar até o seu trânsito em julgado, envolvendo todos os graus de jurisdição do Sistema OAB.
Notas
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, visto por nós, os advogados. Traduzido por Ivo de Paula. São Paulo: Pillares, 2013.
MAIA, Roberto Serra da Silva. Ele, o juiz imparcial, visto por um advogado. Goiânia, 2019. Disponível em: https://www.rotajuridica.com.br/artigos/ele-o-juiz-imparcial-visto-por-um-advogado/. Acesso em: jan. 2023.
Cf. LOPES JÚNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2019 – versão eletrônica.
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CALAMANDREI, Piero. Governo e magistratura. Opere giuridiche. Napoli: Morano, 1966. v. 2, p. 198.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, visto por nós, os advogados. Traduzido por Ivo de Paula. São Paulo: Pillares, 2013.
Cf. CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 7.
Art. 8, item 2: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
A despeito das expressões “culpado” e “sentença penal condenatória”, o postulado da “presunção de inocência” (art. 5º, LVII, CF) se aplica ao direito administrativo sancionador (Cf. FONSÊCA, Vitor. Processo civil e direitos humanos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 160).
Na medida em que exige que o imputado seja tratado como inocente.
No procedimento ético-disciplinar não se pode falar em “distribuição de cargas probatórias”, como no processo civil, senão mera “atribuição” de carga ao acusador, na linha do processo penal (art. 68, Lei 8906/1994), de modo que a carga da prova é inteiramente do acusador (pois, se o imputado é inocente, não precisa provar nada).
Diz respeito à suficiência probatória, e a exigência da concretização do “in dubio pro reo” e do “favor rei”.
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Mutatis mutandis: “...As acusações penais não se presumem provadas, na medida em que o ônus da prova concernente aos elementos constitutivos do pedido (autoria e materialidade do fato delituoso) incumbe exclusivamente a quem acusa, sob pena de inobservância das garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência...” (STF, 2ª Turma, HC 186658 AgR/SP, Rel. Min. Nunes Marques, DJe 95, de 18.5.2022).