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O Direito Administrativo Sancionador na Lei de Improbidade Administrativa.

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Agenda 24/01/2023 às 16:55

Introdução.

 

O Direito Administrativo Sancionador (DAS) não encontra no ordenamento jurídico uma regulamentação precisa. No âmbito nacional, há doutrina esparsa sobre o tema, boa parte dela fundada no direito comparado, onde a matéria é tratada com grande profundidade há décadas.

Ocorre que, com o advento da Lei n. 14.230/21, que incorporou, sem regulamentar, o DAS às ações de improbidade administrativa, mister que o tema seja analisado de forma científica e com a correta atenção aos preceitos inerentes à tutela da moralidade administrativa[1], enquanto direito fundamental metaindividual.

É impositivo que fique clara a inexistência de simetria integral entre Direito Penal e o DAS o que impede, em sentido contrário ao que a doutrina nacional majoritária tem apregoado, a simples incorporação dos princípios do Direito Penal para o âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Como se tentará evidenciar no presente estudo, atento aos limites próprios dessa espécie de análise, embora o Direito Penal possa subsidiar o desenvolvimento do DAS enquanto disciplina autônoma, a incorporação dos princípios daquele ramo reclama o emprego de um juízo de proporcionalidade e finalidade. Hão de ser adaptados os princípios do Direito Penal, quando pertinentes ao DAS, à própria finalidade e essência dessa disciplina integrante do Direito Administrativo, sob pena de subversão da sua finalidade. 

 

1. Um conceito inicial de Direito Administrativo Sancionador.

 

O Direito Administrativo Sancionador pode ser tradicionalmente definido como a expressão do efetivo poder de punir estatal, que se direciona a movimentar a prerrogativa punitiva do Estado, efetivada por meio da Administração Pública e em face do particular ou administrado[2].

Esse conceito se revelava suficiente em certa medida, porque se prestava a diferenciar o DAS do Direito Penal: enquanto aquele se ocupava do direito de punir estatal na órbita administrativa, este materializava o ius puniendi na seara judicial, mais precisamente perante o juízo criminal.

Porém, essa definição não mais compreende a exata extensão do que se entende por Direito Administrativo Sancionador. A “administrativização” do Direito Penal verificada nos últimos anos – reflexo da hipertrofia do Direito Penal – tornou necessário que condutas socialmente relevantes, mas que não mereciam a tutela da ultima ratio, passassem a serem tratadas pelo Poder Judiciário em seara distinta da penal. Daí porque o DAS extrapolou os limites internos da Administração Pública passando a irradiar efeitos junto a processos judiciais que tenham por escopo a apuração de infrações cíveis-administrativas que reclamavam uma punição por parte do Estado por meio do Estado-juiz.

É dessa evolução e do entendimento de que, por decorrer do ius puniendi, há de ser garantido ao réu um plexo mínimo de direitos e garantias, que o estudo do DAS passa por uma nova fase. Fase essa acelerada por ter sido a disciplina expressamente incorporada pelo legislador pátrio no âmago das ações que versam sobre improbidade administrativa (§ 4º do art. 1º da Lei n. 8.429/92).

Dessa feita, num primeiro momento, no desiderato de se diferenciar o DAS e o Direito Penal, considerando a inexistência de diferença qualitativa e quantitativa de penas, e levando-se em conta esse novo momento legislativo, podemos, de forma preliminar, conceituar o DAS como a expressão do efetivo poder punitivo do Estado, direcionada à responsabilização do servidor público em sentido amplo e/ou do particular, em órbita não penal.

 

2. O Direito Administrativo Sancionador e sua autonomia frente ao Direito Penal: da correta alocação do DAS no âmbito do Direito Administrativo.

 

Fixado um conceito inicial, é de ser reforçada a dissociação do Direito Administrativo Sancionador do Direito Penal modo a evitar equívocos corriqueiros no estudo do tema.

De fato, no seu nascedouro, o DAS sofreu forte influência da evolução do Direito Penal. Isso porque se partiu de uma ideia equivocada de que o DAS seria um fragmento do Direito Penal, uma vez que ambos decorrem do ius puniendi estatal, que é uno. Tanto assim o é que, inicialmente, o DAS era denominado como Direito Penal Administrativo.

Todavia, essa premissa errônea se deveu ao próprio ineditismo da matéria e a falsa apreensão de que, por ambos decorrerem do ius puniendi, não seria outra a natureza se não a penal da disciplina que estava sendo desenvolvida.

Contudo, a evolução do tema relevou a impropriedade da nomenclatura, ensejando a adoção da expressão Direito Administrativo Sancionador. E essa alteração, antes de mera adequação semântica, representou verdadeira ruptura com a doutrina até então vigente, que identificava uma similitude entre o Direito Penal e o DAS. La utilización de esta denominación [DAS] implica, pues, una ruptura deliberada con concepciones del passado: se abandonan los campos de la Policia y del Derecho Penal para asentarse en el Derecho Administrativo. La expresión adquiere así el valor de un emblema y de una confesión doctrinal.[3]    

Veja-se que, ainda que vigore, com predominância, a teoria do ius puniendi unitário, isso não leva à conclusão de uma suposta subordinação ou vinculação do DAS ao Direito Penal e seus predicados.  Isso porque percebeu-se que esses sistemas sancionatórios não guardam similitude de lógica operativa e, embora os ordenamentos sancionatórios possam constituir manifestações de ius puniendi, seus perfis singulares exigem um esforço para caracterizar o campo em que eles podem ser utilizados[4]. Logo, não há falar em simetria integral entre o Direito Penal e o DAS. E aqui jaz o ponto nodal do presente estudo: os perfis das disciplinas são únicos e se encontram alicerçados em searas distintas do Direito.

Com efeito, o ius puniendi se presta como raiz comum para ambas as disciplinas, mas cada qual se ocupa de uma faceta desse poder diante de suas singularidades, o que, antes de confundi-los, reforça a autonomia entre eles. Como brilhantemente destacam José Roberto Pimenta Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti

 

A identidade do DAS em face do Direito Penal não depende apenas da concepção que se tenha do primeiro. Ela é reflexo também do que se perfilha cientificamente sobre a identidade do Direito Penal. Não há como fugir desta constatação. Para quem admite e aceita que o Direito Penal possa expandir seu terreno normativo para proteção de bens jurídicos metaindividuais e mesmo acolhe a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, a conclusão poderia se voltar para uma diferenciação fraca entre

DP e DAS, totalmente dependente da liberdade de confirmação do Poder Legislativo. Esta conclusão deve ser afastada, porque os dois ramos – DP e DAS – não se confundem, sendo que cada um ostenta uma teleologia própria no direito positivo. É complexo estabelecê-las, mas no Estado de Direito Constitucional a necessidade de contenção de arbitrariedades é sempre o ponto de partida, inclusive na configuração do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador.[5]

 

 

O DAS é Direito Público Administrativo. Tem por escopo primordial a tutela do coletivo, a qual se sobrepõe ao interesse singular ou, ao menos, deve com ele ser cotejado e ponderado no exame da aplicação da legislação e dos princípios inerentes a esse sistema. Como leciona Alejandro Nieto:

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Em suma, contra todas as probabilidades, deve-se afirmar que o Direito Penal Administrativo é, como o próprio nome indica, um Direito Administrativo embutido diretamente no direito público estatal e não um Direito Penal vergonhoso; da mesma forma que o poder sancionatório administrativo é o poder anexado a qualquer poder atribuído à Administração para a gestão do interesse público. Não é por acaso, claro, que até o nome do antigo Direito Penal Administrativo foi substituído há muitos anos pelo mais próprio Direito Administrativo Sancionador (tradução livre).[6]

 

 

Alice Voronoff, que também aponta a natureza administrativa do DAS, além de tecer fortes críticas ao aspecto unitário do ius puniendi, deixa clara as peculiaridades que permeiam o DAS e que devem conduzir sua interpretação. Segundo a doutrinadora, este ramo é dotado de singularidades que buscam um “equilíbrio fino” (“legitimação híbrida”), destacando: (1) as particularidades finalísticas e operacionais do DAS, atinentes à realização de objetivos de interesse público, sob enfoque prospectivo e conformativo, dissociado, como regra, de juízo de reprovação ético-social; (2) a instrumentalidade da sanção administrativa, que é compreendida como meio de gestão, e não fim em si mesmo. Instrumento de gestão e ferramenta institucional, governado por lógica de incentivos de conformidade, visando a efetividade dos objetivos de interesse público; (3) o componente funcional, que, segundo Voronoff, se desdobra no elemento funcional estático (órgão ou ente da Administração) e elemento funcional dinâmico (exigências impostas ao modus operandi da Administração)[7].

Além disso, não se pode esquecer que, a partir da Constituição Federal de 1988, o Direito Administrativo ganhou novos contornos. Abandonou-se a ideia de que a disciplina se prestava a regular a relação Administrador-Administração, passando a compreender que ela se destinava a tutelar, acima de tudo, o interesse público enquanto direito fundamental metaindividual. Pimenta Oliveira e Musetti Grotti bem apreenderam essa questão, ao afirmarem que

 

 

A Constituição reconhece o valor jurídico diferenciado do interesse público como categoria própria e não assimilável aos meros interesses pronunciados por administradores públicos ou meramente associados aos órgãos e entes públicos e governamentais, por lei ou atos infralegais. Não se trata de mero conceito jurídico indeterminado que a teoria da linguagem possa esgotar como operacionalizá-lo. O interesse público é um conceito recepcionado na Constituição. Isto se faz no capítulo próprio dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 19, inciso I), no capítulo dedicado à Administração Pública, em seu significado funcional (art. 37, inciso IX), na disciplina das leis (art. 66, parágrafo 1º), na atividade de gestão da função pública na Magistratura (art. 93, inciso VIII e art. 95, inciso II) e no Ministério Público (art. 128, parágrafo 5º, inciso I, alínea b), e na distinção do campo da legalidade (tal como cristalizado na própria Constituição) do preceituado como próprio ao interesse público, em seu ADCT (art. 51 ADCT). Esta presença constitucional significa que aos intérpretes não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no sistema jurídico, devendo cumprir a função de demonstrar as suas projeções normativas no processo de concretização constitucional.[8]

 

Logo, não há dúvidas que o DAS se cuida de uma disciplina própria, com predicados particulares e inserido no âmbito do Direito Administrativo. E, ainda que o Direito Penal possa fornecer instrumentos para o desenvolvimento da disciplina, é absolutamente incongruente defender a tese de uma transposição pura e simples do arcabouço principiológico do Direito Penal para o Direito Administrativo Sancionador. Tal agir engendraria uma verdadeira subversão dos valores e dos princípios próprios desse ramo do Direito. Isso porque, na órbita administrativa propriamente dito, o DAS visa a preservação do interesse coletivo e dos princípios da administração pública; já, na órbita judicial, particularmente na seara da Lei n. 8429/92, a essas finalidades se agrega principalmente a tutela da moralidade administrativa enquanto direito fundamental, finalidades essas não tuteladas pelo Direito Penal com a mesma profundidade.

Assim sendo, pode-se densificar o conceito do DAS proposto inicialmente, agregando esses elementos que lhe particularizam ainda mais frente ao Direito Penal. Dessarte, o Direito Administrativo Sancionador pode ser compreendido como a expressão do efetivo poder punitivo do Estado, direcionada à responsabilização do servidor público em sentido amplo e/ou do particular, em órbita não penal, que tenha atentando contra o interesse coletivo, os princípios da administração pública e/ou a moralidade administrativa.

Com o conceito ora proposto, o DAS estará corretamente alocado no ramo do Direito Administrativo, o que destaca as prerrogativas próprias dessa disciplina em detrimento do Direito Penal.

 

3. Os princípios do Direito Administrativo Sancionador.

 

Não é objeto do presente artigo elencar e esgotar a análise de todos os princípios aplicáveis ao DAS. Porém, alguns apontamentos se fazem necessários, até mesmo para se superar a doutrina tradicional que, sem cientificidade adequada, conclama pela aplicação dos princípios do Direito Penal ao DAS como se houvesse uma integral simetria entre essas disciplinas, o que inexiste.

Inicialmente, não há dúvidas de que, em um regime democrático, deve ser assegurado ao destinatário do ius puniendi um plexo de direitos e garantias fundamentais garantindo-lhe um devido processo legal substantivo. Logo, princípios elementares do Direito Penal como o da legalidade (tipicidade), da culpabilidade (no sentido de se evitar a responsabilidade objetiva) e da pessoalidade da pena podem – e devem – ser incorporados como princípios próprios do DAS.

Em sentido semelhante, Gustavo Binenbojm[9] e Denise Luz[10] sustentam que, além das cláusulas do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, compõem o núcleo comum do direito administrativo sancionador: o princípio da legalidade, sob o viés da tipicidade; os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade; os princípios da culpabilidade e da pessoalidade da pena; o princípio da individualização da sanção; e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Porém, enquanto alguns desses princípios podem ser simplesmente transplantados da órbita penal para o DAS, outros deverão suportar ajustes modo a acomodar a própria teleologia do DAS, sob pena de desvirtuar o instituto. Como já assentado, o interesse público possui envergadura constitucional, de modo que à sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – na feliz expressão cunhada por Peter Häberle[11] – não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no sistema jurídico, devendo cumprir a função de demonstrar as suas projeções normativas no processo de concretização constitucional.

Reafirmamos: ainda que o Direito Penal possa contribuir, por meio de seus princípios, na elaboração de instrumentos a fomentar o DAS, é inviável que não seja sopesado que o DAS possui finalidades outras e que está alicerçado em uma gama principiológica própria que, muitas vezes, não converge com aquela que fomenta o Direito Penal. É da natureza do Direito Administrativo Sancionador o predicado de ser uma ordem jurídica parcial da atividade do Estado e, logo, está irremissivelmente engatilhado a instrumentalizar a ótima realização de interesses públicos[12].  A diretriz é contribuir para integrar; e não desnaturar a índole administrativista dos sistemas sancionadores administrativos[13]. O DAS deve avaliar com o devido rigor científico as contribuições desses ramos do Direito Público, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-administrativo instrumental de tutela de interesses públicos[14].

Na nossa ótica, mostra-se absolutamente simplista e equivocada a tese apresentada por parte da doutrina[15] que aponta para uma pura transposição dos princípios do Direito Penal para o DAS. Primeiro, porque parte de uma premissa equivocada, no sentido da existência de uma suposta simetria integral entre o Direito Penal e o DAS – o que já foi afastado nos capítulos antecedentes; segundo, essa teoria deixa de lado todas as prerrogativas e peculiaridades que impregnam a tutela do coletivo, objeto último do DAS.

O DAS e o Direito Penal possuem diferentes caráteres institucionais e constitucionais não se encontrando na mesma posição ante o Direito. Não há como sustentar que, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, haja uma prevalência dos direitos do réu tal qual ocorre no âmbito do Direito Penal. Os valores e interesses em litígio possuem notas distintivas que, inclusive, ensejaram a ruptura do DAS e do Direito Penal como disciplinas de um mesmo ramo jurídico.

Na seara do Direito Administrativo, a prevalência é do coletivo. E isso, de forma alguma, importa em reconhecer hipótese de juízo de exceção, ditatorial ou, ainda, que ao réu não serão conferidos os direitos e garantias que lhes são próprias. Serão! Todavia, os direitos e as garantias que lhes são devidas dentro de um contexto de devido processo judicial que envolve matéria de Direito Administrativo e cujas penas não envolvem privação da liberdade.

Hão de ser devidamente ponderados os valores que guiam a razão de ser do DAS e, a partir dele, e não do Direito Penal, avaliar com o devido rigor científico a pertinência ou não da incorporação dos princípios do Direito Penal, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-administrativo instrumental de tutela de interesses públicos, os quais possuem status de direito fundamental metaindividual. O Direito Penal não é a matriz do Direito Administrativo Sancionador, mas sim o Direito Público, o que explica a aproximação desse ramo jurídico com o direito criminal, porém sem a completa transposição dos princípios garantistas[16].

Aduza-se que esse debate sobre a incorporação dos princípios do Direito Penal para o DAS é absolutamente atual no plano internacional, havendo intensa divergência sobre a matéria.

No Tribunal Constitucional Espanhol, como aponta Vicenç Aguado Cudolà, há uma tendência jurisprudencial de flexibilizar a aplicação dos princípios do Direito Penal no âmbito do DAS, tornando tais princípios muito mais restritivos e, até mesmo, excluindo alguns desses princípios diante da sua incompatibilidade com a natureza do processo administrativo sancionador. Como anota o doutor Vicenç Aguado Cudolà

 

 

Agora, passada essa fase eminentemente garantista, como consequência lógica da lógica da reação à situação jurídica existente no regime anterior, pode-se observar uma tendência jurisprudencial do Tribunal Constitucional [da Espanha] de natureza mais restritiva na medida em que redireciona a plena aplicação das garantias do artigo 24.2 ao seu ambiente natural - o processo -, enquanto exclui a validade de alguns deles no procedimento de sanção administrativa com base em sua incompatibilidade com sua natureza (tradução livre).[17]

 

 Na França[18] e na Itália[19], o entendimento prevalente é pela independência do DAS frente ao Direito Penal, inclusive sendo admitida a dupla penalização pelos mesmos fatos, uma vez que, para esses ordenamentos, a disparidade da natureza das esferas (Penal e Administrativa) legitima essa penalização dúplice. Ou seja, se nega a aplicação do princípio do ne bis in idem (próprio do Direito Penal).

No âmbito supranacional europeu, embora haja precedente concluindo pela aplicação dos princípios penais ao âmbito do DAS[20], também é possível encontrar precedente indicando a impertinência dessa providência. É o que se afere, por exemplo, do precedente do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso Aklagaren vs Hans Akerberg Fransson, que versava sobre condenação nas esferas tributária e criminal por declarações falsas em relação a impostos devidos. Na ocasião, manifestou-se o Tribunal pela inocorrência de violação ao princípio do non bis in idem pois as sanções não possuíam a mesma natureza[21].

Ainda, há de ser levado em consideração que, no Brasil, o Direito Administrativo Sancionador possui um campo de incidência absolutamente particular. Trata-se da Improbidade Administrativa. Não há, no direito europeu, o qual é usualmente utilizado como referência para o estudo do DAS pela doutrina nacional, situação equivalente à do Brasil, que trata o combate à corrupção administrativa por meio de um processo judicial autônomo, em seara diversa do Direito Penal, processo esse que tem por escopo, antes de penalizar o réu, promover a tutela da moralidade administrativa enquanto direito fundamental metaindividual. Aliás, o constituinte originário impôs, no âmbito interno, verdadeiro mandado de penalização do agente ímprobo em seara não penal (§ 4º do art. 37 da Constituição Federal - CF).

Nessa perspectiva, considerando as peculiaridades que permeiam o DAS, há de ser realizada uma verificação de pertiência dos princípios do Direito Penal em etapas argumentativas, tendo as duas primeiras etapas como objetos a validade de fins (finalidade constitucional da medida) e a adequação de meios (meios adequados para realizar os fins constitucionais). No tocante à ultima etapa, a atenção volta-se à intensidade e à proporcionalidade em sentido estrito[22].

Aliás, esse juízo interpretativo é inerente à ciência jurídica. Somente por meio dele se viabiliza que haja o devido calibramento dos princípios oriundos de outros ramos aos bens jurídicos que passarão a tutelar no âmbito do DAS, respeitando, sobremodo, a própria finalidade dessa disciplina.

Apenas a título de exemplo, modo a comprovar que a proposta ora apresentada nada de inovadora possui, na Espanha, há a denominada Teoría de las matizaciones o flexibilizaciones. Essa teoria prega, de forma muito resumida, a adoção de um processo jurídico-cognitivo visando adequar os princípios penais às características próprias do DAS quando da sua incorporação, resguardando-se e ponderando-se a natureza peculiar de tutela a que se destina o DAS. Essa teoria, aliás, vem sendo usualmente aplicada pelo Tribunal Constitucional espanhol, como aponta Alejandro Nieto:

 

O próprio Tribunal Constitucional – que, na sua condição de intérprete supremo da Constituição, declarou-se, às vezes, o mais fanático defensor das formas – acabou reconhecendo a inviabilidade do sistema e consequentemente tem admitido sua flexibilização mediante aplicação de certas matizes ou modulações dos princípios do Direito Penal quando aplicados ao Direito Administrativo Sancionador (tradução livre).[23]

 

 Contudo, como ressalva Alejandro Nieto[24], desse processo muitas vezes surge um novo princípio que muito pouco carregada da sua formulação original do âmbito penal. A extração do adequado sentido da norma não revela qualquer violação ao ordenamento jurídico constitucional. Ao contrário, reafirma a higidez e coerência do sistema jurídico porque garante a autonomia e a finalidade do DAS como disciplina vocacionada para a tutela do coletivo.

Assim, se propõe que a aplicação dos princípios do Direito Penal no DAS passe, obrigatoriamente, por um juízo de proporcionalidade para se averiguar se (i) dado princípio penal tem sua incidência adequada ao âmbito do DAS considerando a finalidade constitucional da disciplina e do ramo do Direito a que vinculada; se (ii) a aplicação de dado princípio penal se mostra necessária para a tutela dos direitos e garantias constitucionais do réu que responde por uma infração civil-administrativa; e, vencidos os juízos de adequação e necessidade, se (iii) o princípio penal não demanda remodelação do seu alcance e/ou da sua essência, modo a compatibilizá-lo com os preceitos do DAS enquanto instrumento da defesa do interesse público, mediante juízo de proporcionalidade em sentido estrito.

Evidente que a proposta ora apresentada reclamará um trabalho muito mais aprofundado dos operadores do direito. Porém, parece-nos a forma correta de entender e interpretar o DAS como uma disciplina autônoma vinculada ao Direito Público Administrativo, com viés constitucional de promoção da tutela do coletivo e que não guarda simetria integral com o Direito Penal. A própria evolução dos estudos envolvendo o Direito Administrativo Sancionador enquanto disciplina autônoma alocada em ramo diverso do Direito Penal exige um passo adiante em prol da sua “maioridade” dogmática, devendo ser descartado o Direito Penal como uma “muleta” a que se recorre diante de uma carência de regulamentação legislativa sobre a matéria. A própria ordem constitucional e o profundo desenvolvimento do Direito Administrativo no âmbito interno se revelam mais do que suficientes a nutrir o desenvolvimento dessa dogmática carente de positivação mais minuciosa.

 

Conclusão

 

O Direito Administrativo Sancionador cuida-se de uma disciplina vinculada ao ramo do Direito Público Administrativo. Embora possa se valer do Direito Penal para fomentar o desenvolvimento da disciplina, é absolutamente incongruente defender a tese de uma transposição pura e simples do arcabouço principiológico do Direito Penal para o DAS. Tal agir engendraria uma verdadeira subversão dos valores e dos princípios próprios desse ramo do Direito.

Por essas razões, a incorporação de princípios da esfera penal para o âmbito do DAS exige um juízo prévio de admissibilidade e adequação. A partir dos preceitos que lhe são próprios, deve-se avaliar com o devido rigor científico as contribuições do Direito Penal, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-administrativo instrumental de tutela de interesses públicos, e, somente então, decidir pela pertinência dessa apropriação.

No âmbito das ações de improbidade administrativa, o DAS assume, ainda, um caráter constitucional peculiar porque serve de instrumento para tutela moralidade administrativa enquanto direito fundamental metaindividual. Por ser obrigação do Estado a adoção de postura proativa no desiderato de proteger e promover esse direito que serve como fundamento da república, impõe-se que análise dos princípios do Direito Penal eventualmente incidências na seara do DAS tenham em conta essas características peculiares.

 

 

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