"É preciso que se denuncie a nudez do rei".
Carlos Heitor Cony, 9 de abril de 1964.
Sumário: 1.Introdução e Contornos da Investigação. 2.A Denúncia da Quartelada. 3.O Habeas Corpus nº 40.976-GB. Referências Bibliográficas
1.Introdução e Contornos da Investigação
No dia 25 de agosto de 1964 o escritor Carlos Heitor Cony registrou em sua coluna do Correio da Manhã que " os cavacos do ofício e da vida" haviam lhe reservado "transe amargo e talvez desnecessário". Cony comunicava que era réu em ação na qual foi denunciado como incurso no art. 14 da Lei de Segurança Nacional, Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953. A acusação embasava-se numa série de artigos que Cony publicou no Correio da Manhã, e que seriam supostamente ofensivos ao exército e, especialmente, ao Ministro da Guerra, Marechal Arthur da Costa e Silva. Pretendendo ser processado pela lei de imprensa, mais apropriada e benéfica, Cony protocolou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. A retomada dos textos que suscitaram o problema, o reencontro com a luta de um grande escritor, o estudo do referido processo, são temas que freqüentam o presente ensaio, que vincula Direito, Literatura e História, explicitando instante inesquecível no qual penas e togas enfrentaram tanques de guerra.E parece que venceram. Embora, transitoriamente: uma vitória de Pirro. E, historicamente, momento revelador da força moral de alguns brasileiros. Refiro-me especialmente a Carlos Heitor Cony.
Do ponto de vista metodológico, o ensaio permite que se toque na provocativa questão relativa à comparação entre prática jurídica e tradução. Porque o cliente conta a seu advogado uma história, e porque este último precisa levá-la ao judiciário, e à outra parte, pode-se, num primeiro momento, conceber equivalência entre as atuações do advogado e do tradutor. É que este último verte para uma outra língua aquilo que recebeu originariamente. O advogado, de igual modo, trabalha no mesmo sentido. E tanto assim o é, que há dicionários de equivalência, que vertem termos jurídicos. Especialmente, há expressões eventualmente homófonas e homógrafas que qualificam significados distintos. Refiro-me, por exemplo, a tradição, que na tradição do direito civil significa a entrega da coisa, e não necessariamente o que tentei dizer quando usei tradição na segunda acepção, na presente frase. O advogado, a tomarmos como correta a percepção, a exemplo do que faz James Boyd White (1990, p. 257 e ss.), traduziria para o julgador a narrativa que recebeu de seu cliente. E no caso do presente ensaio, o advogado, Nelson Hungria, traduzirá para o judiciário a narrativa de um grande tradutor e narrador, Carlos Heitor Cony. É nessa passagem que se encontra o eixo temático que anima as presentes reflexões.
Refere-se à assertiva Joana Aguiar e Silva, que considerando os processos de tradução envolvidos na construção do discurso jurídico, lembrou-nos que Boyd White "(...) concebe o discurso jurídico como resultado de um processo de tradução, semelhante ao que opera a translação de um discurso vertido numa língua para outra língua" (AGUIAR e SILVA, 2001, p. 19). A autora portuguesa registrou também as reservas que José Calvo González tem oposto à concepção de direito enquanto tradução (cit., loc.cit.). A propósito de concepção narrativa de justiça (e a tradução é narrativa), Calvo nos dá conta de "(...) universal ni unívoco ni equívoco, sino análogo" (CALVO, 2002, p. 51). O professor espanhol provoca-nos a uma retomada de Walter Benjamin, o filósofo da melancolia, para quem a tradução é uma forma, e para que seja compreendida como tal deve-se retomar o original, porquanto este último contém a norma suprema que governa a tradução, isto é, sua própria traduzibilidade (cf. BENJAMIN, 1985, p. 70). De qualquer modo, o caso que se tem pela frente suscita suposta tradução de Cony, por seus advogados, e a maneira como se recebeu a mensagem, por parte do judiciário.
Há ainda o problema historiográfico. Volto a Walter Benjamin. Na 14ª tese sobre a filosofia da história Benjamin provoca-nos com a imagem do salto do tigre, isto é, o narrador do passado apanha no pretérito o que lhe interessa para comprovação de sua linha discursiva. É o caso da revolução francesa que se via como uma Roma reencarnada (cf. BENJAMIN, cit., p. 261). Reconheço, de imediato, a simpatia que tenho pela trajetória de Carlos Heitor Cony. Assumo que o presente texto é menos pesquisa científica e objetiva do que uma homenagem. Pode ser até mera tietagem. Neutralidade pode ser coisa de eunuco, parece que nos dizia Michel Löwy. Inverte-se o texto histórico como artefato literário (cf. WHITE, 2001, p. 97 e ss.), fazendo-se de textos literários (e no caso também jurídicos, que considero literários) como artefatos históricos.
O ensaio fragmenta-se em três partes. Esta introdução pretende identificar, a partir de Cony, mal-estar causado pela discussão jurídica que se travou, e na qual o advogado do escritor, Nelson Hungria, atuou com muita segurança, e sem medo. Era assim mesmo que trabalhava. Em seguida, a partir das crônicas de Cony, tal como publicadas em edição da Objetiva, no livro O Ato e o Fato, pretendo inventariar a coragem de Cony, e o destemor como o escritor enfrentou a ditadura militar que então se instaurava. Nesse fragmento, o segundo, a pena enfrenta a espada, e não faço aqui nenhuma alusão à campanha civilista de 1910, quando Rui Barbosa enfrentou Hermes da Fonseca em campanha para a presidência da república. E perdeu. Cony, a partir de crônicas que publicou no Correio da Manhã desnudou o rei. Na terceira parte, reproduzo e analiso os autos de habeas corpus 40.976-GB, que obtive junto ao arquivo do Supremo Tribunal Federal. Advogados, como o já citado Nelson Hungria, e Ministros do Supremo, como Luiz Gallotti, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Victor Nunes Leal, Pedro Chaves, Villas Boas e Candido Motta Filho, deram lições de retórica, de cultura jurídica e também de muita força moral. Verifica-se que as togas não temeram os tanques de guerra.
Na crônica publicada em 25 de agosto de 1964 Cony indicava os contornos da angústia pela qual passava, em testemunho histórico de intelectual orgânico, não exatamente no sentido explicitado por Gramsci. Trata-se, no entanto, de intelectual comprometido, que não vivia da política, mas que muito bem poderia viver para a política, a usarmos a clássica tipologia weberiana. Escrevia Cony:
" (...) Para um sujeito acomodado e triste, submetido aos mil acidentes da carne e do espírito, a condição de réu, embora não infamante, estava absolutamente fora das cogitações." (CONY, 2004, p. 140).
Cony teria de enfrentar o Ministro da Guerra, o Marechal Costa e Silva, que mais tarde seria Presidente da República, e a triste memória qualifica a repressão política que então se engendrava e se praticava. Sob fogo, ameaçado, Cony explicava ao leitor o que acontecia:
"Mas eis: sou réu. Por obra e graça do Ministro da Guerra enfrentei o meritíssimo da 12ª Vara Criminal. Aturei o libelo e outras formalidades da dura lei. E estou preparando o insubmisso espírito e a complacente carne para o que der e vier. Meu crime é simples de ser exposto. Desde a quartelada de 1º de abril que venho cometendo esse crime, em condições compactas de centenas de milhares de exemplares. Meus artigos foram lidos nas prisões, nos navios-presídios, nos quartéis, nos lares e nas escolas. Profissionalmente falando, podia encerrar minha modesta e curta carreira de jornalista". (CONY, cit., loc.cit.).
No parágrafo já se identifica o núcleo de todo o problema. A ironia de Cony provocava a ira dos militares que engendravam o golpe. Enquanto nos quartéis se falava em Revolução de 31 de março de 1964, Cony insistia na Quartelada de Primeiro de Abril. Esta última data, que tradição cultural registra como o dia da mentira, indica revolução inexistente. E o uso de quartelada subvertia a sobriedade e a formalidade que a expressão revolução que pretendia traduzir. Dava-se início a período de agonia do poder civil (cf. COSTA COUTO, 1999, p. 41). Muito mais do que simples jogo de palavras ou de datas, Cony tocou no centro da questão. Revoluções se fazem com objetivo de profundas modificações. Rússia, França, Inglaterra, a tradição histórica ocidental, com mais ou menos razões, para o melhor ou para o pior, indicavam movimentos que faziam da política a medida de transformações. E segundo Cony, ao que parece, não era o que se via em meados de 1964. Cony se explicava, como que prestando contas a si mesmo, com quem parece se relacionar no plano da mais altaneira clareza de propósitos:
"Além da profissão, no plano estritamente humano, cumpri um dever para comigo mesmo. Não tenho, pois, do que me queixar ou me arrepender. Até aqui, os homens do governo, pretendiam punir a corrupção e a subversão existentes até o dia 31 de março. Mas os ministros militares que me processam fizeram-me a elementar justiça: reconheceram que eu não era corrupto nem subversivo. Sou, talvez, o primeiro adversário desse governo que está pagando por um crime presente: o de não concordar com o atual estado de coisas. É quase uma glória". (CONY, cit., loc.cit.).
Ensinam manuais de retórica que uma boa defesa inicia-se com a escolha do defensor. Técnicas argumentativas vinculam-se também com a opção pelo argumentador. E Cony começou muito bem. Contratou Nelson Hungria como advogado. O grande jurista havia sido Ministro do Supremo Tribunal Federal, de onde se aposentou em 12 de abril de 1961. René Ariel Dotti, em texto que preparou para recolha dos grandes juristas brasileiros, a propósito de Hungria, lembrou:
"O maior exemplo de que a memória da vida e a qualidade da obra de Nélson Hungria devem continuar nos foi transmitido por ele mesmo. Narra a crônica familiar que, momentos antes de falecer, ele reclamou a presença dos quatro filhos e, ainda com voz firme, pediu-lhes que o perdoassem por não ter deixado riqueza material, ouvindo a resposta afetuosa de que não poderia ser maior a fortuna que o seu exemplo de vida. Mas ele insistiu na sua derradeira preocupação, declamando longa passagem, no mesmo sentido, de Carlyle sobre um pai e seus filhos. Um dos jornais do Rio de Janeiro que noticiou a morte do príncipe dos penalistas brasileiros referiu que, naqueles instantes de despedida, Nélson Hungria teria dito aos filhos mais ou menos assim: ’Logo mais, quando estiverem me levando e eu não puder falar, saibam que estarei dizendo em silêncio: Aqui vai o Nélson, muito a contragosto’. Aquele foi o dia 26 de março de 1969". (DOTTY, 2003, p. 207).
Nelson Hungria atuou no Supremo Tribunal Federal de 1951 a
1961. Começou a carreira jurídica em 1909, quando se diplomou em Direito pela
Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Foi advogado e promotor público em Minas
Gerais, seu estado natal. Voltou para o Rio de Janeiro, onde foi juiz e mais
tarde desembargador no então Tribunal de Apelação do Distrito Federal. Indicado
por Getúlio Vargas, Nelson Hungria ocupou a vaga de Aníbal Freire no Supremo
Tribunal Federal (cf. LEMOS, Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro da
Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 2767). Sua obra de Comentários ao Código
Penal até hoje tem amplo uso. Em livro sobre o Supremo
Tribunal Federal, Daniel Aarão Reis, que foi diretor de biblioteca daquela
Corte, referiu-se a Nelson Hungria, da forma como segue:
"Um dos mais jovens advogados do Brasil tem 76 anos, pois nasceu em 16 de maio de 1891, em Angustura, Minas Gerais. Pode parecer estranho, mas é exato: é que depois de toda uma vida dedicada à magistratura, o min. Nelson Hungria se aposentou, em 1961, despedindo-se do Supremo Tribunal (Sessão de 12.4.1961), para onde entrara dez anos antes, em julho de 1951, e inscreveu-se na Ordem dos Advogados". (REIS, 1968, p. 156).
Prossigo com Cony, e com a narrativa da escolha por Nelson Hungria:
"Entreguei minha causa a um advogado dos mais ilustres: Nelson Hungria. Tratadista, ex-ministro do Supremo, professor de gerações, penalista de fama internacional, considero-me em boas e honradas mãos. Desde já, independentemente de qualquer resultado de ordem prática, quero ressaltar a honra que me coube: ser defendido por homem ilustre e probo. A ele e a seus auxiliares, o meu agradecimento". (CONY, cit., p. 141).
Na mesma crônica Cony adiantava dados do processo, que o leitor acompanhará ao longo do presente ensaio. Assim, e é ainda Cony quem escreveu:
"As artimanhas de um processo são estranhas e inesperadas. De uma hora para outra, tive de arranjar testemunhas. O promotor trouxe um esquadrão contra o insignificante escriba: os três ministros militares e o Secretário de Segurança da Guanabara. Para contrabalançar este esquadrão, potente apenas em sua força temporal, arranjei outro: Austregésilo de Athayde, Fernando Azevedo, Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima. Daqui a alguns anos, ninguém saberá quem foi o Sr. Arthur da Costa e Silva ou o Sr. Gustavo Borges. Mas daqui a cem anos o Brasil, os nossos netos e bisnetos aprenderão e respeitarão os nomes que deporão a meu favor. Já é uma vitória, além da glória, para rimar e insistir". (CONY, cit., loc.cit.).
Celso Kelly, à época presidente da Associação Brasileira de Imprensa, fora convidado por Cony, para testemunhar em seu favor. Invocando amizade com o ministro da Guerra, Kelly esquivou-se da missão. Irônico, cético, irreverente e contundente, Cony relatou o episódio:
"Não só compreendi a atitude do Sr. Celso Kelly, como alegremente me regozijei com ela. É, na realidade, motivo de justo júbilo o fato de termos, nós jornalistas, um presidente que goze das boas e inefáveis graças do honrado ministro da Guerra. Iremos para a cadeia, muitos já estão na cadeia, mas isso é também motivo de júbilo e honra para todos os nós. Nosso presidente é cordialmente recebido pelo ministro da Guerra e aceita seus cordiais convites para jantar ou para receber medalhas do mérito militar". (CONY, cit., p. 142).
Mais tarde, em 8 de setembro de 1964, em crônica intitulada Na Cova do Leão, também publicada no Correio da Manhã, Cony narrou as apreensões que sentia. Era o dia da audiência, relativa à ação que se processava no Rio de Janeiro:
"Hoje, às 10 horas, cumprindo intimação do juiz da 12ª Vara Criminal, irei ao gabinete do senhor ministro da Guerra para presenciar, de corpo e protesto presentes, o depoimento daquela autoridade contra a minha pessoa, no processo que me é movido como incurso na Lei de Segurança do Estado. Irei acompanhado de meus advogados – Nélson Hungria, Virgílio Donnici, Clemente Hungria e Jorge Wanderley – e, na certa, o senhor ministro da Guerra estará acompanhado de seus assessores ou conselheiros". (CONY, cit., p. 149).
Perceba-se que audiência não se deu na 12ª Vara Criminal. Realizou-se o ato processual no gabinete do Ministro da Guerra, por prerrogativa da função, circunstância que Cony criticará, como se lerá mais adiante. A ditadura revelava-se de modo muito nítido. Intimidações se reproduziam por todo o país. Formatava-se uma doutrina de segurança nacional e de desenvolvimento (cf. ALVES, 2005). Prestigiava-se uma Escola Superior de Guerra que nos lembrava o National War College dos Estados Unidos (cf. MacLACHLAN, 2003, p. 139). O ex-presidente Juscelino, por exemplo, começava a ser recorrentemente intimado para interrogatórios intermináveis. Concomitantemente, funcionava o Superior Tribunal Militar, espécie de justiça fardada, na expressão de Renato Lemos, que intitula livro seminal sobre o assunto, e que se centra na figura do General Peri Bevilaqua (LEMOS, 2004). E continuava Cony, indicando suas esperanças:
"Espero que tudo corra bem, dentro das normas civilizadas que fizeram nascer a Justiça, o Direito e os ritos processuais. Nos primeiros dias desta quartelada, quando nem de longe imaginava que um dia seria réu, escrevi uma crônica intitulada ‘RES SACRA REUS’. Lembrei às autoridades que o réu é coisa sagrada – isso no instante em que as acusações valiam como provas; as ofensas, como denúncias, e a força, como direito final. Hoje, em causa própria, exijo o tratamento digno que a minha pessoa – como réu e como homem – merece. Não poderei, devido à condição de acusado, interferir ou revidar qualquer ofensa ou desacato. Espero que o meritíssimo juiz faça valer sua autoridade no caso de qualquer engrossamento. E meus advogados lá estarão para lembrar o tratamento que o acusado merece e exige." (CONY, cit., p. 150).
Cony colocava-se à disposição da justiça, isto é, da barafunda procedimental que se organizava, em nome de moralidade pública que não se assentava em nenhuma lógica ou historicidade. A crônica expõe homem muito sério, preocupado com os rumos que o país tomava, e consciente da condição pessoal. Cony tinha o que perder:
"De minha parte, reservo-me ao prazer e ao dever de responder a qualquer violência moral que me seja cometida. Tenho família, mulher, duas filhas, amigos, uma obra literária em meio de seu curso – e isso que constitui o meu patrimônio pessoal e moral não poderá ficar ao arbítrio de um fígado qualquer, ainda que esse fígado seja ministerial e bélico". (CONY, cit., loc.cit.).
O ministerial e bélico era o próprio Ministro da Guerra. E observe-se que Cony falava ainda em violência moral. À época já vicejavam informantes voluntários e profissionais, interrogadores que seguiam manual; vivia-se regime burocrático autoritário e militar; nos termos de pesquisadora de técnicas de interrogatório durante a era militar, "(...) a linguagem militarizada inculcou, como trabalho ideológico, a idéia de que a violência era um mal necessário" (MAGALHÃES, 2004, p. 171). A truculência da violência física ainda não atemorizava ostensivamente, e nesse sentido Cony preocupava-se, ao que parece, com a violência moral. Ao lado de Ênio Silveira, Otto Maria Carpeaux e Márcio Moreira Alves, Cony dá início às críticas que se faziam necessárias (cf. SKIDMORE, 1988, p. 28). Cony registrava que era adversário de Costa e Silva, a quem dizia combater com firmeza. E explicitou também o sentido de sua luta judicial, isto é, acreditava que deveria ser processado pela lei de imprensa e não pela lei de segurança nacional:
"(...) Sou processado por artigos que aqui escrevi, em tiragens compactas de milhares de exemplares. Nada contra a minha vida pessoal ou profissional foi provado, apesar do muito que investigaram e fuçaram por aí. Aceito, compreendo e respeito os pontos de vista do general Costa e Silva. Mais: acredito que, dentro das atuais condições, o general Costa e Silva vem se portando exemplarmente no que me diz respeito. Até hoje não consentiu que alguns oficiais mais exaltados atentassem contra a minha integridade. E, na hora de fazer que chama de ‘punir’, procurou o meio legal – embora não o adequado. Apontou-me ao Judiciário, o que é certo, mas de forma errada: através da Lei de Segurança do Estado, quando, na realidade, deveria fazê-lo através da Lei de Imprensa". (CONY, cit., loc.cit.).
É justamente esta a trama jurídica que embalará todo o processo. A fixação do rito, da pena, da prescrição, no sentido de que tudo dependia da escolha da lei que seria aplicada, isto é, a mais grave – lei de segurança nacional, ou a mais branda – lei de imprensa. Deixando a questão para os especialistas, Cony, no entanto, invocava a dignidade com a qual qualquer ser humano tem o direito de ser tratado:
"Mas essas questões pertencem aos meus advogados. Quero deixar bem clara a humildade com que me submeto à Justiça. Mas essa humildade não será sinônimo de humilhação. Os tribunais passam, as leis se transformam, os ministros são depostos ou demitidos – mas há uma coisa que fica, que terá de ficar, queira ou não o senhor ministro da Guerra: a dignidade do ser humano. No instante em que sou levado a tribunais, em condições adversas, visitando o leão em sua cova, exijo respeito do adversário. Respeito que, de resto, nunca deixei de prestar ao antagonista, combatendo-lhe as idéias, a sintaxe e os meios de que se utiliza, mas nunca esquecendo de render homenagem à sua honrada vida pessoal. Irei ao seu gabinete de cabeça erguida. E de cabeça erguida de lá sairei. A História dá muitas voltas e – em curto ou longo prazo – o forte de hoje poderá ser o pigmeu de amanhã". (CONY, cit., loc.cit.).
Em crônica publicada em 10 de setembro daquele ano de 1964, com o título de Maomé e a Montanha, em clara alusão ao fato de que a audiência não se realizou em nenhum tribunal convencional, mas no gabinete do ministro da Guerra, Cony anotou suas impressões do evento. E começou justamente caracterizando o inusitado da situação:
"Poderia iniciar esta crônica dizendo que afrontei o general Costa e Silva na última terça-feira. Seria inverdade. Fui a seu gabinete na qualidade de acusado de um crime contra a segurança do Estado. Para isso, o general usou de todo o peso de seu atual cargo: fez a montanha ir a Maomé, em vez de Maomé ir à montanha. Há tempos, um antecessor do Sr. Costa e Silva andou processando jornalistas. Mas fazia questão de ir à montanha, ou seja, submetia-se aos cartórios, às salas de audiência, às instalações quase sórdidas de nossa Justiça". (CONY, cit., p. 152).
Observando que Costa e Silva deveria ser muito ocupado, Cony lembrou o privilégio que acodia ao Ministro da Guerra. De tal modo, "juiz, escrivão, escrevente, advogados, todos tiveram de enfrentar o pátio ensolarado do Ministério da Guerra e bater à porta de seu venerável gabinete" (CONY, cit., loc.cit.). O escritor descreveu o general como "(...) homem baixo, mais feio do que parece pelas fotografias, mas quando começa a falar adquire uma certa simpatia, um calor humano que o torna respeitável e quase bonito" (CONY, cit., loc.cit.). O encontro foi reproduzido por Cony; mãos foram estendidas e apresentações se fizeram. Segundo Cony:
"Lido o libelo pelo juiz, o general identificou-se como Arthur da Costa e Silva, brasileiro, ministro da Guerra, residente na rua General Canabarro, se não me engano, 471, ou número parecido. A uma pergunta do magistrado, declarou que não era meu amigo nem meu inimigo. Nada me foi perguntado, mas a recíproca seria verdadeira. Enfim, a audiência prosseguiu como soem prosseguir as audiências desse tipo. Nada do que o general disse no processo causou-me estranheza. Exceto, talvez, o fato de que meus artigos são transcritos em diversos jornais do País. Vou pedir, mais tarde, quando passar essa onda, que o general-ministro da Guerra me dê o nome e o endereço desses jornais. Vivo disso e tenho de receber a vil pecúnia pelo meu trabalho. É com essa vil pecúnia que pago o leite e o colégio de minhas filhas." (CONY, cit., loc.cit.).
Embora sacudido por problema de magnitude, enfrentando em juízo o Ministro da Guerra, Cony demonstrava bom humor e preparo para enfrentar o que viesse. Dono de coragem moral, típica daqueles que nada fizeram de errado, e que seguem àquela ética da responsabilidade, de que nos dava conta Max Weber, Cony não se abaixou e nem transigiu. Estávamos em setembro de 1964. É de uma testemunha ocular daqueles tempos, o também jornalista Carlos Castello Branco, a passagem que segue, alusiva àquela época exata:
" ‘Este governo está firme como uma rocha’, costuma dizer, segundo depoimentos de pessoas a ele chegadas, o ministro da Guerra, general Costa e Silva. Todas as tentativas para experimentar as resistências do dispositivo de poder montado pela revolução teriam verificado sua solidez. Um outro oficial do exército, meses atrás, a respeito das inquietações e pressões militares (então mais assustadoras) dentro do próprio sistema vitorioso, explicava-se com recurso a uma imagem. Para ele, tendo a revolução rompido as barreiras, desembestaram campo afora cavalinhos revolucionários. Seria um perigo levantar de repente um obstáculo a essa tropa impetuosa. Os cavalinhos pulariam o obstáculo ou o levariam de roldão. A tática a adotar seria montar os cavalinhos, um a um, para reduzir a velocidade, inicialmente, e contê-los afinal, alinhando-se ao grosso da tropa". (CASTELLO BRANCO, 2007, p. 131).
E foi justamente o que aconteceu. Não obstante, não se conteve a tropa impetuosa. Representada pelos militares da chamada linha dura, esta tropa impetuosa estava prestes a tomar o controle da nação. Sepultava-se o nacionalismo do regime de Goulart (cf. SKIDMORE, 1999, p. 169). Já se afirmou que o governo Goulart caiu embora contasse com 76% da opinião pública a seu favor (cf. MONIZ BANDEIRA, 2001, p. 185). As circunstâncias que Cony viveu indicavam que se perderia o controle da situação. Em livro que historia o jornalismo político no Brasil, Carlos Chagas explicitou os fatos de que cuida o presente ensaio.
"No CORREIO DA MANHÃ, Carlos Heitor Cony descreverá em detalhes a tomada do QG da Artilharia de Costa, enfatizando o lado ridículo de uma luta que não chegou a acontecer. Suas crônicas terão o título de ‘O Ato e o Fato’, e farão sucesso nos meios intelectuais que logo se oporão ao movimento militar. Uma semana depois do golpe, o bravo matutino já se colocará em oposição aos novos detentores do poder, sofrendo pelos anos seguintes pressões políticas e econômicas, até ser vencido e fechar suas portas (...) " (CHAGAS, 2001, p. 1149).
Sigo com o jornalismo combativo de Carlos Heitor Cony.