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Direito e literatura. Carlos Heitor Cony e o Habeas Corpus nº 40.976-GB.

A história entre penas, togas e tanques de guerra

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Agenda 02/08/2007 às 00:00

3)

O Habeas Corpus nº 40.976-GB

Os advogados de Carlos Heitor Cony impetraram habeas corpus em face do Juiz da 12 ª Vara Criminal do Estado da Guanabara. Tem-se exemplo da concepção de justiça como tradução. É que todos problemas da vida real são traduzidos para a linguagem normativa. Perceba-se que os textos encaminhados à justiça suscitam narrativa, no sentido de se levar ao judiciário versão dos fatos, com especial atenção na tese da promotoria, que também será reproduzida. Segue a petição inicial:

"Os advogados Nelson Hungria, Clemente Hungria, Virgílio Luiz Donnici e Jorge Victor Wanderley, com escritório na cidade do Rio de Janeiro, à rua México, nº 41, grupo 1001, vem impetrar uma ordem de habeas-corpus em favor do jornalista Carlos Heitor Cony, brasileiro, morador na mesma cidade, à rua Raul Pompéia, nº 101, apto 401, o qual se acha na iminência de sofrer coação ilegal por parte do Dr. Juiz da 12º Vara Criminal do Estado da Guanabara. O caso é o seguinte: tendo o paciente publicado uma série de artigos no Correio da Manhã, em veemente critica aos chefes militares e seus agentes de farda que, após a chamada ‘Revolução de 1º de abril’, assumiram o poder e teriam passado a cometer erros e arbitrariedades, desmandos e iniqüidades, veio ele a ser denunciado perante a referida Vara Criminal, como incurso no artigo 14 da lei de segurança (Lei nº 1.802, de 1953), combinado com o art. 51 do Código Penal, sob fundamento de haver provocado animosidade entre e contra as classes armadas; e a denúncia logrou ser recebida, tal como nela se contém, abstraindo o Dr. Juiz o conhecido pronunciamento desta egrégia Corte de Justiça, no sentido de que, quando feita pela imprensa, e seja realmente reconhecível, (o que não ocorre no caso vertente), a provocação de animosidade entre ou contra as classes armadas, ou destas contra as classes civis, deixa de se enquadrar na lei de segurança para incidir no art. 9º, letra a, da Lei de imprensa (Lei nº 2.083, de 1953)."

Desenha-se o núcleo da argumentação, no sentido de que deveria ser aplicada a lei de imprensa, e não a lei de segurança nacional. A benignidade daquela primeira, o que justificaria que se deixasse de lado a lex odiosa, escorava-se em precedente, que será invocado, como autoridade argumentativa:

"Tal critério de decisão foi, como é sábio, adotado quando do julgamento do Habeas-corpus nº 37.522, impetrado em favor dos jornalistas Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro Dantas. O próprio ilustre Dr. Procurador-Geral da República, por cujo intermédio foi uma representação de S. Exa. o Sr.Ministro da Guerra, relativa ao caso, enviada ao ilustre Dr. Procurador Geral do Estado de Guanabara, ressalvou expressamente que os fatos atribuídos ao paciente constituíam violação do citado artigo da lei de imprensa, mas o Dr. Promotor escolhido para o caso, depois de, por conta própria e gratuitamente, injuriar o paciente, dizendo-o a serviço dos corruptores e subversivos do governo deposto, para solapar as "forças revolucionárias", confundidas estas no texto da denúncia com as classes militares, voltou as costas ao ofício do Chefe do MP Federal, para pedir contra o paciente o rigor da Lei de Segurança, tendo o titular da Vara recebido sem discrepância a denúncia. Assim, ao invés de simples detenção, de um a três meses, com prescrição da ação penal em 2 anos (art. 88 da lei 4.419, de 1962) e com direito à suspensão condicional da pena e fiança (para poder apelar no caso de eventual condenação), e sem a obrigação de estar presente aos trâmites do processo (art. 35, § 2º, da lei 2.083), está o paciente correndo risco de ser condenado à grave pena de reclusão de 1 a 3 anos (art. 14 da lei de segurança), sem qualquer dos benefícios acima referidos."

Com clareza, identificou-se a necessidade de aplicação de norma mais benigna. Os advogados de Carlos Heitor Cony ainda não tocavam no mérito. Não se manifestava a respeito das acusações feitas. O pedido, especificamente, consistia em requerimento para retificação dos termos da denúncia:

" Manifesto o iminente constrangimento ilegal, o impetrante espera que seja deferido o habeas-corpus, para o fim de ser retificada a denúncia contra a paciente, capitulando-se os fatos imputados no art. 9, letra a, da lei de imprensa, consoante a jurisprudência deste Colendo Pretório".

Os autos de habeas corpus dão conta também da denúncia, tal como recebida pelo Juiz indicado como autoridade-coatora. Tem-se agora outro lado da história. No entanto, dado que na primeira parte do ensaio já reproduzi as crônicas de Cony, pode-se muito bem avaliar o modo tendencioso como se conduziu inicialmente a questão ao judiciário. Alcança-se com nitidez as linhas gerais da retórica forense. Continuo com a denúncia, nos termos em que a li nos autos de habeas corpus:

"Exmo. Sr. Juiz de Direito da Vara Criminal. O representante do Ministério Público abaixo assinado, no uso de suas atribuições legais e das que decorrem da portaria nº 157 de 27 de Julho de 1964, do Exmo. Sr. Dr. Procurador Geral da Justiça do Estado de Guanabara, vem oferecer DENÚNCIA contra CARLOS HEITOR CONY, brasileiro, jornalista, residente e domiciliado nesta cidade, onde pode ser encontrado na Av. Gomes Freire, nº 471, pelo seguinte: 1-O denunciado, após a revolução democrática de 1º de abril do corrente ano, fez publicar uma série continuada de artigos no "Correio da Manhã", jornal que se edita nesta cidade, os quais, além de altamente ofensivos à dignidade dos Chefes Militares, das Forças Armadas e do próprio Presidente da República, demonstram de maneira categórica o escopo de provocar animosidade entre as classes armadas e principalmente, entre as instituições civis e estas, conforme passa a demonstrar; 2- Assim é que no primeiro artigo publicado na edição do dia 12 de abril, sob o título "O ATO E O FATO", o denunciado, entre outras coisas escreveu o seguinte: ‘É assim que o alto comando revolucionário, sentindo que suas raízes não são profundas, impotente para realizar alguma coisa útil a nação – pois tirante a deposição do Senhor João Goulart não há conteúdo nem forma no movimento militaroptou pela tirania. Lendo o preâmbulo do alto tive repugnância pelos seus redatores. Mas tive que sorrir ante a dificuldade com que o Alto Comando se deparou: "promulgava" ou "dava" um Ato Constitucional à Nação? Os juristas de sempre, - subservientes, cooperam com as suas luzes arranjaram um termo antigo romano: "editar". E o Alto Comando editou. Na realidade, não foi editado. Foi simplesmente imposto a uma nação perplexa, sem armas e sem lideres para a reação. Foi desprezivelmente imposto a um Congresso emasculado. O ato não foi um ato, foi um fato, fato lamentável que já contém em si, o germe do antifato que criará o novo fato doloroso nisso tudo a procedimento dos chefes militares.‘"

O promotor aderia à idéia de revolução democrática, embora tenha optado pela data de 1º de abril. Interpretou as crônicas de Cony como concebidas especificamente para dividir as forças armadas. A utilização recorrente de ênfases indica-nos recurso retórico muito comum na concepção de textos jurídicos. O promotor suscitava silogismo, exagerando ainda, valendo-se de expressões de grande agressividade, como se lê na continuidade:

" Como se verifica, o denunciado colocou-se à serviço das Forças Armadas contra revolucionários, corruptos e subversivos banidos do poder em boa hora e procura "intrigar e dividir para enfraquecer’; 3 – Nos dias subseqüentes, o denunciado continuou a atender contra a unidade das classes armadas e a solapar as forças revolucionarias, procurando jogar os civis contra aquelas, através de solerte campanha desenvolvida nos 38 artigos que acompanham a presente denúncia, todos no mesmo diapasão, desrespeito e libertino, que a liberdade de expressão quando ultrapassa determinado limite, segundo Jemenes de Asúa, transforma-se em libertinagem perdendo as proteções constitucionais e especiais."

O uso de clichê referente ao mau uso da liberdade que a transforma em libertinagem instrumentalizava o raciocínio desenvolvido pelo acusador. Há argumento de autoridade, utilizado de modo fragmentário, porquanto não há indicação de fonte. A peça, ao que se vê, é oxigenada por ódio orgânico. E assim, continua o verdugo:

" Torna-se oportuno transcrever mais alguns tópicos do indigitado periodista. Na edição do dia 3 de maio, sob o título: ‘ MISSA TRIGÉSSIMO DIA’, entre outras coisas ele escreveu o seguinte: - ‘A quartelada do 1º de abril providenciou uma indecente recauchutagem para o Primeiro de Maio. Sob o pretexto de reprimir possíveis manifestações operárias, os chamados revolucionários – civis ou incivis – encheram as prisões já cheias, afastaram incidentemente um governador indecente, colocaram na posição de prisioneiros dois outros governadores, por sinal homens da primeira hora do movimento. E mais adiante: ‘E temos o que aí está. Uma vasta classe sedenta de reivindicações, de complexos, tramando a quartelização do país. Um quartel de 8 milhões de quilômetros quadrados, onde a população civil seja subjugada e gozada pela minoria que se julga inteligente e sábia porque sabe demonstrar um FN. Já o aumento dos militares foi apressadamente votado sem que o equivalente civil esteja ao menos estruturado. As listas de promoções enchem as colunas dos jornais, os prêmios são distribuídos. Crucificado o povo a soldadesca sempre atira aos despojos das vestes e da túnica – está no evangelho’. (os grifos são nossos).

Na medida em que transcrevia excertos das crônicas de Cony, o acusador selecionava os pontos mais contundentes, grifava-os e construía narrativa que apresentava o jornalista como inimigo da pátria. Como visto, Cony fora descrito como "indigitado periodista". A petição parece de tesoura e cola, marcada a régua e a lápis. Era com as crônicas de Cony que o acusador pretendia explicitar hermenêutica que comprovasse a culpabilidade do acusado. E continuava:

" Na edição de 10 de maio, no artigo intitulado: ‘A necessidade das pedras’, procurando solapar a opinião pública atirando-a contra as Forças Armadas, e escreve o seguinte: ‘Já é hora de unir. Toda a população civil e o que ela representa está ameaçada de ser a prima pobre de um país que ficará mais pobre com os militares no poder- causa pasmo o fato de os lacerdistas em todos os seus escalões não terem percebido que a quartelada do primeiro de abril conseguiu calar ou, o que é pior, amordaçar de voz o líder bem amado. Talvez o Sr. Carlos Lacerda, lá longe, digo, lá de longe, já tenha desconfiado disso, do golpe branco que sofreu sem perceber, até ajudando’."

A reprodução do excerto de Cony abria para o acusador condição para ensaiar conclusão. Sem maior reflexão ou argumentação o autor da peça imaginava evidência e tinha como provada a conduta do acusado. Ainda, sugeria as razões do comportamento, os motivos da concepção dos textos e concluía pedindo o processamento do feito e a punição, com base na lei de segurança nacional, então vigente:

" 4 – É evidente que o denunciado ultrapassou os limites da liberdade de imprensa e atentou contra a segurança nacional, pois sua ação não visa injuriar, caluniar ou difamar, ou simplesmente externar opinião. Ele visa, antes de mais nada, provocar animosidade entre as classes armadas, contra elas, e principalmente da instituições civis contra elas. 5 – Nessas condições, está o denunciado em incurso nas penas do artigo 14 da lei nº 1802 de 05.01.1953 c/c o 51 § 2º do Código Penal, pelo que requer o abaixo assinado se instaure o processo crime, citando-se o denunciado para todos os seus termos, pena de revelia, e intimadas as testemunhas abaixo arroladas para deporem sobre o fato. P. Deferimento. Rio de Janeiro. 7 de agosto de 1964."

O promotor arrolou testemunhas. Havia representatividade do Exército, Marinha e Aeronáutica. Respectivamente, General Arthur da Costa e Silva, Brigadeiro Lavanére Wanderley e Almirante Augusto Rademaker Grunewald. Com base nos escritos de Cony, tem-se a impressão, no entanto, que a maioria das críticas do jornalista se dirigia a Costa e Silva. Lê-se nos autos do processo de habeas corpus que despacho do Ministro Relator havia determinado envio de informações, por parte do juiz criminal do Rio de Janeiro, designado como autoridade-coatora. Em exercício, José Lisboa da Gama Malcher, que enviou as informações solicitadas, cujo conteúdo segue:

"Senhor Ministro. Diante do pedido de informação contido no ofício nº 482-P desse Excelso Pretório, solicitando informações para instruir o habeas-corpus nº 40976, impetrado em favor de CALOS HEITOR CONY, venho pelo presente prestar-lhe os seguintes esclarecimentos: O paciente foi denunciado perante este juízo em 7 de Agosto do ano corrente, como incurso nas penas do art. 14 da lei nº 1802 de 1953 c/c o art. 51 § 2º, do Código Penal. Segundo a denúncia recebida pelo MM. Juiz que me antecedeu no exercício desta Vara Criminal, o acusado em diversos artigos publicados na matutino-‘Correio da Manhã’ deste Estado, vem desenvolvendo campanha destinada a provocar animosidade nos seio das Forças Armadas e da classes civis contra as forças armadas; tanto que, segundo a denúncia, em diversos artigos procura descrever situação nacional decorrente da revolução brasileira como uma tomada do Poder por parte das Forças Armadas, gerando o predomínio e o privilégio em seu favor, em detrimento das classes civis. A denúncia foi recebida tal qual articulada pelo Ministério Público, cuja ação foi provocada por requisição do Sr. Ministro da Guerra ao Sr. Procurador Geral de Justiça deste Estado; - não poderia o MM. Juiz que a recebeu fazê-lo senão pelo crime articulado, diante dos estritos termos do art. 43 do Código de Processo Penal: o fato descrito constitui crime; não está extinta a punibilidade, e as partes são legítimas. A conduta do acusado corresponde à descrição típica na chamada Lei de Imprensa. Esta, s.m.j., não criou foro especial para os jornalistas, nem o Tribunal de Imprensa se constitui único competente para conhecer e julgar quaisquer crimes cometidos pelos profissionais de Imprensa. A lei nº 2.083 de 12.11.1953, no seu artigo 9º descreve diversas ações, nenhuma delas correspondendo aos elementos caracterizados do delito do art. 14 da lei 1.802 de 1953. Elucidativas a respeito são as razões do recurso criminal nº 1.044 em que é relator o Sr. Ministro Pedro Chaves, interposto pelo Procurador Geral da Justiça do Estado de Guanabara a esta Suprema Corte, e que obtiveram parecer favorável do Sr. Procurador Geral da República. Se a lei de Imprensa é especial e rege o julgamento e a punição dos crimes que tipifica, também o é a Lei de Segurança do Estado; se a Constituição Federal garante a liberdade de imprensa, esta, - como toda liberdade, tem como limites o bem estar geral, os direitos individuais, e a segurança nacional. Sem haver descrição típica idêntica em ambos os diplomas legais, não poderia o MM. Juiz a quem foi dirigida a denúncia deixar de aplicar uma lei em detrimento da aplicação da outra, prima facie, logo no albor da ação penal. O acertado, s.m.j., seria o ocorrido: a denúncia ser recebida e, por ocasião da sentença se ficarem provadas circunstâncias que permitam a desclassificação pretendida (não ter sido exposta a perigo a segurança nacional), atenda-se à preliminar articulada na defesa prévia. Cumpre-me esclarecer ainda a V. Exa. e ao Excelso Pretório que a instrução criminal está em pleno curso, já colhido o depoimento do Sr. Ministro da Guerra, uma das autoridades arroladas como testemunhas, por serem guardiões da segurança nacional. Acompanham os presentes, cópias autênticas da denúncia e do único depoimento já colhido, para melhor orientação dessa Suprema Corte. Estes os esclarecimentos que me cumpria prestar a V. Exa. Em obediência ao pedido retro mencionado. Aproveito a oportunidade para expressar a V. Exa. E ao Pretório Excelso minha expressão de elevada consideração e sumo acatamento. José Lisboa da Gama Malcher – Juiz de Direito, em exercício."

As informações prestadas indicam os contornos da discussão, tal como o procedimento se desdobrava no Rio de Janeiro. A autoridade judicial que prestava informações também adiantou uma narrativa, traduzindo em instâncias procedimentais o que até então também era procedimental. Em outras palavras, a autoridade chamada de coatora justificou porque processava o pedido. E o fez, como se nota, de modo muito simples e conciso. Não deixou, porém, de se referir às testemunhas (que também estariam interessadas no desate da questão), como "guardiões da segurança nacional".

Instruído o processo, a matéria foi levada a julgamento no Supremo Tribunal Federal. Tenho a impressão de que o caso de Carlos Heitor Cony dava início a uma fase difícil para o Supremo Tribunal Federal do Brasil. A Suprema Corte deverá se equilibrar ao longo da turbulência que marcou a instabilidade político-institucional da época (cf. TRIGUEIRO, 1976). De um lado, e isso ficará muito nítido, houve pressão recorrente do executivo, no sentido de que a Suprema Corte adotasse linha jurisprudencial que atendesse aos reclames do regime que então se instalava. E de outro, verificou-se que havia Ministros que não se comprometiam com a nova ordem. São justamente estes Ministros que deixarão a Corte na década de 1960. Refiro-me, especialmente, a Hermes de Lima, a Victor Nunes Leal e a Evandro Lins e Silva. Foram tempos tumultuados. Ressurgiu a discussão em torno do conceito do que seriam questões políticas, com o claro objetivo de se afastar da apreciação do Supremo Tribunal matérias que suscitassem o desconforto para com setores do exército. Reproduzo em seguida o teor dos votos e da discussão.O Ministro Gonçalves de Oliveira iniciou o julgamento, relatando o feito:

" Senhor Presidente. O ilustre advogado Dr. Nelson Hungria e outros colegas seus impetram ao Supremo Tribunal Federal uma ordem de habeas corpus em favor do jornalista Carlos Heitor Cony, processado como incurso na Lei de Segurança, no juízo da 12.a Vara Criminal do Estado da Guanabara. Alegam os impetrantes que tendo o paciente publicado uma série de artigos no "Correio da Manhã", em veemente crítica aos militares e seus chefes, que, após a Revolução, assumiram o poder e teriam passado a cometer erros e arbitrariedades, desmandos e iniqüidades, veio ele a ser denunciado perante a Décima Segunda Vara Criminal, como incurso no art. 14 da Lei de Segurança combinado com o art. 51 do Código Penal, sob fundamento de haver provocado animosidade entre e contra as classes armadas. Acrescentam os advogados que a denúncia foi recebida, mas, o fato delituoso, ainda que existisse, não pode ser enquadrado, na Lei de Segurança, mas na Lei de Imprensa, conforme foi assentado por esta Suprema Corte, no habeas corpus n. 37.522, impetrado em favor dos jornalistas Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro Dantas. O próprio Procurador Geral da República assim entendeu, quando encaminhou a representação do Exmo. Sr. Ministro da Guerra, relativa ao caso, ao Dr. Procurador Geral de Justiça do Estado da Guanabara, atribuindo ao paciente a violação do art. 9.0 da citada Lei de Imprensa, Lei n. 2.083, de 1953. Segundo ainda o pedido, o Dr. Promotor escolhido para o caso, depois de, por conta própria e gratuitamente, injuriar o paciente, dizendo-o a serviço dos corruptores e subversivos do governo deposto, para solapar as fôrças revolucionárias, confundidas estas no texto da denúncia com as classes militares, voltou as costas ao ofício do Chefe do Ministério Público Federal, para pedir contra o paciente o rigor da Lei de Segurança, tendo o titular da Vara recebido sem discrepância a denúncia. Assim, ao invés de simples detenção de um a três meses, com prescrição da ação penal em 2 anos (art. 88 da Lei 4.119, de 1962) e com direito a suspensão condicional da pena e fiança, para poder apelar em caso de eventual condenação, e sem obrigação de estar presente aos trâmites do processo (art. 35, § 2.0, da Lei n. 2.083), está o paciente correndo o risco de ser condenado à grave pena de reclusão, de 1 a 3 anos (art. 14 da Lei de Segurança), sem qualquer dos benefícios acima referidos. Reiterando que há manifesto constrangimento ilegal, terminam os doutos impetrantes requerendo seja deferido o habeas corpus para ser retificada a denúncia contra o paciente, capitulando-se os fatos imputados no artigo 9º, letra ‘a’ da Lei de Imprensa, consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A impetração é acompanhada de certidões do processo fornecidas pelo Cartório da 12.a Vara Criminal. Solicitadas informações, prestou-as a ilustre autoridade, Dr. Juiz Criminal, dizendo S. Exa: ‘A denúncia foi recebida tal qual articulada pelo Ministério Público, cuja ação foi provocada por requisição do Sr. Ministro da Guerra ao Sr. Procurador Geral da Justiça deste Estado; - não poderia o MM. Juiz que a recebeu fazê-lo senão pelo crime articulado, diante dos estritos termos do art. 43 do Código de Processo Penal: o fato descrito constitui crime; não está extinta a punibilidade, e as partes são legítimas. A conduta do acusado corresponde à descrição feita no art. 14 da Lei 1.802 de 1953, e não encontra descrição típica na chamada Lei de Imprensa. Esta, s.m.j., não criou um foro especial para os jornalistas, nem o Tribunal de Imprensa se constitui para os jornalistas, nem o Tribunal de Imprensa se constitui o único competente para conhecer e julgar quaisquer crimes cometidos pelos profissionais da Imprensa. A lei n. 2.083, de 12-11-1953, no seu artigo 9º descreve diversas ações, nenhuma delas correspondendo aos elementos caracterizadores do delito do art. 14 da Lei 1.802 de 1953. Elucidativas a respeito são as razões do recurso criminal n. 1.044 em que é relator o Sr. Ministro Pedro Chaves, interposto pelo Procurador Geral da Justiça do Estado da Guanabara a esta Suprema Corte, e que obtiveram parecer favorável do Sr. Procurador Geral da República. Se a Lei de Imprensa é especial e rege o julgamento e a punição dos crimes que tipifica, também o é a Lei de Segurança do Estado; se a Constituição Federal garante a liberdade de imprensa, esta - como toda liberdade tem como limites o bem-estar geral, os direitos individuais, e a segurança nacional. Sem haver descrição típica idêntica em ambos os diplomas legais, não poderia o MM. Juiz a quem foi dirigida a denúncia deixar de aplicar uma lei em detrimento da aplicação da outra, prima faciae, logo no albor da ação penal. O acertado, s.m.j., seria o ocorrido: a denúncia ser recebida e, por ocasião da sentença se ficarem provadas circunstâncias que permitam a desclassificação pretendida (não ter sido exposta a perigo a segurança nacional), atender-se à preliminar articulada na defesa prévia. Cumpre-me esclarecer ainda a V. Exa. e ao Excelso Pretório que a instrução criminal está em pleno curso, já colhido o depoimento do Sr. Ministro da Guerra, uma das autoridades arroladas como testemunhas, por serem guardiães da segurança nacional. Acompanham as presentes, cópias autênticas da denúncia e do único depoimento já colhido, para melhor orientação dessa Suprema Corte estes, os esclarecimentos que me cumpria prestar a V. Exa. em obediência ao pedido retro mencionado’. É o relatório."

O relatório explicitava aos demais Ministros todos os contornos do processo e mais uma vez se identificava o núcleo da discussão. Do ponto de vista estritamente normativo, debatia-se a propósito da aplicabilidade (ou não) da lei de imprensa, em desfavor da lei de segurança nacional, quando a conduta supostamente condenável fora realizada por jornalista. Apresentado o relatório, seguiu o voto do relator, o que alavancou animado debate. A partir dos autos do processo aqui estudado, reproduzo o que segue:

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" O Supremo Tribunal tem sua jurisprudência firmada no sentido da aplicação aos jornalistas, da Lei de Imprensa e não da Lei de Segurança pelos seus artigos publicados, ainda que o fato seja também qualificado nesta última lei de segurança do Estado. Foi este o pronunciamento desta Suprema Corte no habeas corpus requerido em favor dos jornalistas Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro Dantas, acusados de instigação de animosidades entre e contra as classes armadas, tendo sido o habeas corpus concedido contra um único voto, não obstante ser este o voto do eminente Ministro Vilas Boas. Há de salientar que, naquele julgamento, o ora impetrante, preclaro criminalista Nelson Hungria, que, então, honrava uma das cadeiras desta Corte de Justiça, rendeu-se à orientação, que então se esboçava, do Tribunal. Aqueles jornalistas estavam sendo acusados pelo mesmo fato, incurso no mesmo artigo 14, em que ora é classificada a ação tida como delituosa do paciente. O Ministro Nelson Hungria concordou, então, que a Lei de Imprensa, posterior à lei de Segurança, aquela e não esta, é que tinha aplicação (Diário da Justiça de 14-8-1963, pág. 388). Devo, aqui, dizer que o Tribunal, até então, tinha sua jurisprudência em sentido contrário. Mas naquela sessão o julgamento pôs fim a uma controvérsia, direi assim, ou, melhor, que inaugurou-se uma nova jurisprudência, porque o eminente Ministro Nelson Hungria, tão intransigente na defesa de seus pontos de vista, mormente em matéria penal, Sua Excelência, diante de votos aqui pronunciados pelos Senhores Ministros Cândido Motta Filho, Luiz Gallotti, diante dos pronunciamentos de V. Exa., Sr. Presidente, e do Senhor Ministro Hahnemann Guimarães, resolveu fazer uma revisão do seu ponto de vista a respeito dessa matéria de direito penal, em que S. Exa. é, talvez, a maior autoridade do Brasil, neste instante, e grande autoridade em tôda a história do Direito Penal Brasileiro".

Lembrava-se que Nelson Hungria, que então atuava como advogado, anteriormente, e na qualidade de Ministro do Supremo Tribunal Federal, havia participado de discussão idêntica. Ainda, reiterou-se a jurisprudência que naquele momento aquela Corte seguia. Evidenciava-se a tendência de aplicação da lei de imprensa, e não da lei de segurança nacional, no processamento de jornalistas, por supostos delitos de opinião, veiculados por jornais. A Suprema Corte, ainda no início desse primeiro voto, acenava favoravelmente à pretensão de Carlos Heitor Cony. Na continuidade, o Ministro Luiz Gallotti fez aparte, dizendo que suprimiria o talvez, com o que concordou o Ministro Gonçalves de Oliveira, observando que Luiz Gallotti tinha autoridade para fazê-lo. Feito o elogio a Nelson Hungria, o Ministro Relator seguiu com seu voto, com base no mesmo Nelson Hungria:

"O eminente Ministro Nelson Hungria rendeu-se, então, à opinião dos preclaros Ministros desta Corte, para entender que nos delitos dos jornalistas pela publicação de seus artigos nos jornais ainda que para fazer propaganda de guerra, ainda quando contribua para os processos violentos para subverter a ordem pública, ainda para instigar animosidades entre classes, crimes previstos na Lei de Segurança e também, na Lei de Imprensa - esta última é que devia prevalecer."

Cony não poderia ter se aproximado de advogado mais consentâneo para aquela ocasião. Até porque, registre-se, a coerência de Nelson Hungria lhe garantia respaldo, que de resto também era abonado por suas obras doutrinárias e por toda o respeito que sua trajetória lhe caucionava. Ao contrário de muitos que judicaram em cortes superiores, e que posteriormente na advocacia privada defenderam teses distintas, ou de modo contrário (o que os norte-americanos poderiam nominar de revolving doors), Hungria era congruente com as idéias que há muito tempo defendia. O Relator continuava:

" Foi o julgamento inaugural dessa jurisprudência, aqui no Supremo Tribunal que, como disse, pôs termo à divergência até então reinante. No julgamento do habeas corpus nº 40.047, impetrado ao Supremo Tribunal pelo Dr. Heráclito Fontoura Sobral Pinto, em favor do Jornalista Hélio Fernandes, habeas corpus que foi concedido, S. Exa., Sr. Presidente Ribeiro da Costa, recordou os julgamentos deste Tribunal a propósito e, do alto desta Presidência, os interpretou no sentido da prevalência da Lei de Imprensa e, tal foi seu pronunciamento, que o eminente Sr. Ministro Vilas Boas, único voto em sentido contrário, o aparteou dizendo: ‘Parece que a teimosia é minha só’. Vossa Excelência, então Sr. Presidente, dirigiu-se ao apartante e com justiça, dignidade e ternura, lhe respondeu: ‘Vossa Excelência não é teimoso. Estava convencido, mas, pode mudar de voto ainda. É claro que um homem, cheio de conhecimentos, de sabedoria e de coração doce, como V. Exa., não cora em mudar de voto: ao contrário, enobrece-se quando muda de voto, no sentido da melhor aplicação da lei. Assim é que são os juízes de raça’. E a seguir V. Exa., Sr. Presidente, leu o voto proferido em caso idêntico pelo preclaro Ministro Hahnemann Guimarães, que é um sábio e um santo, nestes termos: ‘5 de janeiro de 1953. Ora, no caso, atribui-se ao recorrido fato que constituiria crime previsto nos arts. 12 e 14 da Lei de Segurança (veja-se bem, o mesmo art. 14 que se pretende aplicar ao paciente), mas, esses crimes estão rigorosamente previstos na Lei n. 2.083, no art. 9º letras A e B, reproduzindo a letra A rigorosamente o disposto no art. 5º, da Const. Federal, que diz: ‘ É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura,salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, no caso e na forma que a lei preceituar, pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do poder público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou preconceitos de raça ou de classe’. O que se atribui ao recorrido é estar estimulando a animosidade das classes armadas, fazendo propaganda da subversão da ordem pela violência (o mesmo que a denúncia recebida atribui ao paciente).’Ora, êsse crime pela imprensa praticado, - continua o voto do Ministro Hahnemann Guimarães, interpretando a jurisprudência desta Casa - só pode ser punido de acordo com a Lei nº 2.083, não com a Lei n. 1.802. Entendo que se os crimes definidos na Lei nº 1.802, de 1953, houverem sido previstos na Lei 2.083, de 1953, como abuso da liberdade de imprensa, devem ser punidos com as cauções previstas na segunda lei. Assim, estará sendo aplicada a lei posterior, a lei que assegura a manifestação da liberdade de pensamento, que é princípio fundamental da política republicana’. Naquele habeas corpus impetrado em favor do jornalista Hélio Fernandes a este respeito, o meu voto oral, que, então emiti, foi neste sentido. Disse eu então:’Na ditadura, a lei que regulava os crimes contra a segurança do Estado era o Decreto-lei nº 431, que consubstanciava disposições legislativas, a Lei nº 38 feita pelo Congresso em 1935. Na ditadura, repito, havia a Lei nº 431, quando veio o regime constitucional. No Governo do General Dutra, não houve modificação substancial e, no segundo Governo Vargas, que se iniciava, houve uma Lei de Segurança e também uma nova Lei de Imprensa. As duas leis tinham tramitação simultânea no Congresso. A impressão que eu tenho, Sr. Presidente, é que a oposição ‘embrulhou’ a liderança do Governo, porque a verdade é que a Lei de Segurança consubstanciou aquelas disposições graves que vinham da Lei nº 431, até mesmo da Constituição anterior, do tempo do Tribunal de Segurança. Mas, depois veio a Lei de Imprensa. A Lei de Segurança é de nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953, mas, veio logo a seguir a Lei de Imprensa, de nº 2.083, do mesmo ano de 1953. Como vê, Vossa Excelência, foi uma lei posterior,e que consubstanciou toôdas aquelas disposições da Lei de Segurança. Estou de acordo com V. Exa., Sr. Presidente, em que, nesses casos em que há tipicidade, em que há Tatbestand, a lei nova revogou a lei anterior, no que diz respeito à cominação das penas, já agora menos graves’. E disse a seguir:’Na hipótese, estou com o eminente Ministro Hermes Lima em que o paciente não responde pela publicação do seu artigo no jornal, a meu ver porque, pela publicação do seu artigo no jornal êle apenas responderia pela Lei de Imprensa, perante o fôro criminal comum’ (D. J. de 3-10-63, p. 972). Foi a respeito, dessa questão jurídica, o meu voto. E, naquele caso, neguei o habeas corpus porque não havia denúncia. Havia inquérito policial-militar para apurar crime contra o Exército como instituição militar. O então Ministro da Guerra mandara abrir inquérito para apurar fato grave no qual estaria envolvido o paciente, a saber, tudo que se passava no Gabinete do Sr. Ministro da Guerra, as coisas mais confidenciais eram sabidas, por certo grupo, que assim se assenhoreava dos mais graves e secretos assuntos militares. Entendi até com o apoio do Ministro Hahnemann Guimarães que o Ministro poderia abrir o inquérito policial-militar, e, então, entendi eu que poderia o Ministro aplicar o art. 156 do Cód. de Justiça Militar, uma disposição grave que veio do tempo da ditadura, porém, que ainda tinha, como tem, vigência e dispõe: ‘Qualquer das autoridades referidas no art. 115 poderá ordenar a detenção, ou prisão de indiciado durante as investigações policiais até 30 –dias’. Por esse motivo é que, então, denegara eu aquele habeas corpus. Mas na tese jurídica, sempre estive em que os delitos atribuídos aos jornalistas pela publicação de artigos nos jornais, corno abuso da liberdade de imprensa, só podem ser enquadrados na Lei de Imprensa. Os crimes os mais graves, como fazer propaganda de guerra pelos jornais, como de processos violentos para subverter a ordem política e social, são punidos pela Lei de Imprensa (art. 9º, A), como a propaganda, a Instigação que se proponha a alimentar preconceitos de classe, inclusive, porque no artigo, não há qualquer restrição às classes armadas. Como vê o Tribunal, fazer propaganda pela Imprensa, para subverter por processos violentos a ordem política e social é punido não pela Lei de Segurança, mas pela Lei de Imprensa, lei posterior àquela. Ora, a instigação pela imprensa, como abuso da liberdade de imprensa, visando a animosidade das classes armadas, constitui um meio para a subversão da ordem, e, portanto é crime implícito ou conexo com o de subversão por processos violentos da ordem pública pela imprensa, está compreendido no art. 9º, letra a, da Lei de Imprensa e por essa lei os fatos hão de ser julgados (...)"

O excerto do voto comportaria também análise retórica. Há ampla utilização de referenciais históricos, de precedentes, no sentido de apropriação do pretérito como linha argumentativa justificativa do presente e orientadora do futuro. Leitura desconstrutivista revela-nos historiografia icônica, que comporta um fator de barbárie (cf. NIETZSCHE, 2005, p. 308). O abuso de adjetivos aproxima-se do cômico. Há referência a Ministro, reputado como sábio e santo. O grotesco do excerto é típico da linguagem bacharelesca que remonta ao século XIX, com certo mau gosto coimbrão e que, infelizmente, ainda é utilizada por muita gente jovem. Especialmente, aqueles jovens que já nasceram velhos, para quem seria possível colocar a linguagem entre a manifestação de dor e a dor, ao contrário do afirmado no aforismo 245 de Wittgenstein (cf. WITTGENSTEIN, 1999, p. 99). Declara-se solenemente o papel institucional do Supremo Tribunal Federal, aderindo-se pomposamente à tradição ocidental da tri-partição dos poderes:

" O Supremo Tribunal não faz leis. Não participa da elaboração legislativa. Isto não se estende como este Poder. As leis são feitas pela Câmara, o Senado com a participação do Presidente da República. Nós aplicamos as leis. E, principalmente, as leis penais, não podemos, nem queremos - não queremos, nem podemos, aqui, elaborar outras, para aplicá-las aos acusados. A jurisprudência do Supremo Tribunal, como se viu, foi sempre no sentido de que, em casos, como o de que se trata, o delito só pode ser enquadrado na Lei de Imprensa. Já dizia o velho Ducrocq que aqueles que conhecem o direito mas desconhecem a jurisprudência quase nada sabem: ‘ceux qui connaissent le droit, mais ne connaissent pas la jurisprudence, ne savent presque rien puis que la jurisprudence (...) Por isso mesmo é que o eminente Dr. Procurador Geral da República, que conhece o nosso direito e a. nossa jurisprudência, atendendo à representação do Ministro da Guerra, mandou ofício ao Dr. Procurador Geral do Estado da Guanabara para fazer o processo contra o paciente ‘nos termos e para os fins dos artigos 9°, 26 e 29 da Lei nº 2.083, de 12-11-1953’ (Lei de Imprensa) - textual. O Dr. Procurador Geral da República é o Chefe do Ministério Público Federal. O ilustre Dr. Promotor da 12ª Vara Criminal é que não atendeu à recomendação do Chefe do Ministério Público Federal, nesse processo em que a representação é de autoridade federal, o Ministro da Guerra. Não atendeu à recomendação, nem às leis pertinentes na constante e reiterada interpretação desta Alta Corte de justiça, que pela Constituição vigente, tem o poder de interpretar, de fixar a interpretação das leis federais, como está no seu art. 101 da nossa Lei mais alta. Com estas considerações, Sr. Presidente, concedo a ordem, como requerida, a fim de ser retificada a capitulação do crime, na denúncia, e se prossiga o processo-crime, nos termos em que sua instauração foi pedida pelo Exmo. Senhor Procurador Geral da República. É o meu voto".

No que toca ao problema jurídico específico, fixação de regra a ser aplicada, o voto acima reproduzido foi muito preciso. Especialmente porque lembrou que o Chefe do Ministério Público Federal havia se pronunciado, no sentido de que se acatasse à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que previa o processamento do feito nos termos da lei de imprensa e não da lei de segurança nacional. O que se evidenciava era a impropriedade da atuação do promotor de justiça no Rio de Janeiro, que insistia na subsunção do fato à lei de segurança nacional, menosprezando o exercício funcional de Carlos Heitor Cony.

Votou em seguida o Ministro Evandro Lins e Silva. Em depoimento prestado ao Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil- CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, Evandro respondeu perguntas que ilustram sua postura como Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado por João Goulart. A começar pela batalha no Senado Federal, que ofereceu muita resistência à condução de Evandro ao Supremo Tribunal Federal. Especialmente, Evandro Lins enfrentou críticas de Assis Chateaubriand, e sobre o fato assim se manifestou:

"(...) havia uma campanha terrível, agressiva e incompreensível dos Diários Associados, comandada pelo sr. Assis Chateaubriand, que diariamente escrevia artigos no O Jornal e no Correio Braziliense combatendo a minha indicação. Chateaubriand me chamava de comunista, dizia que eu era um sujeito que não podia compor a Corte Suprema pela minha suposta ideologia política etc (...) Ocorreu então um fato, à minha revelia, que acho que teve importância. O Globo publicou na primeira página, sem que eu tivesse tido a menor intervenção nisso – é possível que influído o meu colega de turma, Ricardo Marinho, irmão do Dr. Roberto Marinho, com quem também sempre tive muito boas relações pessoais, e de quem, no começo da vida, fui advogado num processo de lei de imprensa -, enfim, O Globo publicou um editorial estranhando a campanha contra mim, que acabava de desempenhar cargos eminentes com a maior dignidade e competência. Eu preenchia, segundo o jornal achava, as condições constitucionais para o cargo. Tenho a impressão de que esse artigo neutralizou muito aquela campanha do Chateaubriand". (LINS e SILVA, 1997, pp. 365-366).

Na mesma entrevista, perguntou-se a Evandro Lins e Silva se à época o Supremo Tribunal Federal teria entrado em confronto aberto com os governos militares. Revelando isenção de ânimos, Lins e Silva lembrou que jamais se decidiu um processo contra a revolução em si; julgava-se de acordo com a Constituição, que era – no entender do entrevistado – rigorosamente cumprida (cf. LINS e SILVA, cit., p. 386). Evandro Lins foi aposentado compulsoriamente do Supremo Tribunal Federal junto com Hermes Lima e Victor Nunes Leal. Reproduzo passagem do depoimento, extensa, porém seminal para a compreensão daqueles anos conturbados:

"(...) A repressão foi caminhando num crescendo, a evolução dos acontecimentos levava à ditadura, como levou. No dia em que foi editado o Ato Institucional nº 5, fecharam-se todas as portas. Posso até contar o seguinte: no dia 12 de dezembro de 1968, tomou posse o novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Gonçalves de Oliveira. Houve uma solenidade com ministros de Estado, ministros militares, várias personalidades presentes. A Câmara dos Deputados, naquela tarde, julgava o pedido do Supremo de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. Durante a solenidade de posse do ministro Gonçalves, falou em nome dos advogados o dr. Sobral Pinto, e, no instante em que ele estava falando, alguém lhe passou a notícia de que a Câmara havia negado a licença. Sobral, então, num determinado momento do discurso, comunicou aquele resultado ao Tribunal, e houve palmas na platéia – era uma festa de posse, havia muita gente, jornalistas etc. Criou-se um ambiente de constrangimento terrível, com aquelas autoridades todas lá sentadas, inquietas, o ministro da Justiça, Gama e Silva, o ministro não sei se da Guerra ou da Marinha... Os ministros do Supremo estavam sentados nas suas cadeiras, no plenário, e não deram uma palavra, não bateram palmas, evidentemente. Depois, o ministro Gonçalves deu uma recepção no Brasília Palace Hotel, que ficava perto do Alvorada. Nessa recepção, não havia autoridades governamentais – uma coisa estranha, afinal era a posse do presidente do Supremo. Eu já achei esquisito (...) Com a publicação do Ato [Ato Institucional de nº 5], voltei para o Rio de Janeiro, porque o Tribunal tinha entrado em férias naquele dia. E quando chegamos no Galeão, notei que o avião se encaminhava para o aeroporto militar. Eu sabia disso porque tinha participado do governo e várias vezes o avião do presidente tinha ido para o aeroporto militar. Quando o avião parou, foi cercado por tropos do Exército. Olhei e não vi ninguém. Eu estava com meu filho mais velho, e me lembro que à minha esquerda estavam Amaral Peixoto e Nelson Carneiro. E havia outros políticos no avião. Ficamos ali sentados, entraram oficiais, foram do começo ao fim do avião, depois se retiraram, sem dar uma palavra, para pedir documento a ninguém. Aí subiram policiais civis, investigadores de policia. A uma ou outra pessoa pediram identidade, não a todas. O que havia, afinal? Em determinado momento, encontrei uma explicação para o aparato militar em relação àquele avião: lá na cadeira da frente, vi que se levantaram a irmã e a mãe do Marcio Moreira Alves. Eles suspeitavam que o Márcio Moreira Alves tivesse vindo naquele avião, e essa era a razão daquela diligência. No antigo edifício do Supremo, no Rio de Janeiro, havia umas duas ou três salas onde os ministros freqüentemente se encontravam. A mudança para Brasília tinha sido feita havia pouco tempo, todo mundo era do Rio de Janeiro, e então praticamente todas as tardes os ministros que moravam no Rio, e houve uma especulação sobre o que podia ocorrer em conseqüência da edição do AI-5. O novo presidente do Tribunal, Gonçalves de Oliveira, tinha um feitio diferente de Ribeiro da Costa, era um homem mais acomodado, não era um homem de tomar posições muito ostensivas em relação ao problema do Ato Institucional. Na realidade, ele achava que não ia acontecer nada contra os ministros do Supremo, mas eu contestei. Disse que estava absolutamente convencido de que nós seríamos cassados. Não tive a menor dúvida sobre isso (...)" (LINS e SUILVA, pp. 397-399).

Retomo o caso Cony. Ainda não prevendo o desate que a situação desdobraria anos depois, Evandro Lins e Silva proferiu seu voto. Reportou-se à autoridade do precedente, que reconheceu não ser fonte formal do direito, pelo menos no modelo brasileiro. Insistiu na necessidade de que se alcançasse a coerência nas decisões judiciais. Referiu-se à força da jurisprudência no direito de expressão anglo-saxônica. Assim, começou:

" Ao interpretar e aplicar a escrita, exercem os tribunais relevante função na elaboração do direito. Daí a influência dos precedentes, que conduzem à uniformidade dos julgamentos. Embora não se inclua entre as fontes formais do direito e não tenha força obrigatória, a jurisprudência, firmada por uma série ininterrupta de julgados, constitui garantia para os jurisdicionados e prestígio para a Corte, que não pode ser increpada de contraditória. É da maior importância a coerência das decisões judiciais. A continuidade dos julgados, baseados em razões expostas em casos análogos, evidencia que o Tribunal não está decidindo ao sabor de conveniências ou de tendências ocasionais. No direito inglês e no direito americano, dele derivado, a força do precedente é quase decisiva. John P. Dawson, professor da Faculdade de Direito de Harvard, escreveu, ao propósito: ‘(...) uma decisão do passado, cujas razões foram expostas, deve ser aplicada em casos similares e futuros onde caibam as mesmas razões, e somente novas e persuasivas razões poderão ditar uma decisão que não seja similar às decisões anteriores. Parece-nos ser este um meio de evitar as arbitrariedades, que deve ser um dos principais objetivos de todo o sistema jurídico’ (Aspectos do Direito Americano, ed. Forense, págs. 25-6)."

Mantendo a linha de raciocínio, Evandro Lins insistia na coerência que deveria ser mantida. O Supremo Tribunal acenava com a plausibilidade da aplicação da lei de imprensa, e o próprio Procurador-Geral da República reconhecia a circunstância. Continuo com Evandro Lins e Silva, que acompanhou o voto do relator:

"Nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal, através do trabalho sistemático de seus juízes, tem procurado evitar ao máximo a contradição nos seus julgados. Compendiando em Súmulas a sua jurisprudência predominante, torna-se muito mais difícil julgar causas iguais ou análogas de modo diferente. Já hoje não podemos sofrer a crítica feita por Alcino Pinto Falcão aos nossos tribunais colegiados, que não assentam um ‘consenso constante e uniforme de unia série ininterrupta de julgados’, pois ‘nunca sé julgaram vinculados aos próprios precedentes’ (Parte Geral do Código Civil, pág. 15). A Súmula ‘no interesse da constância da jurisprudência’ (id. pág. 16) foi uma das maneiras encontradas para manter a continuidade dos precedentes. No caso que hoje se julga, o Supremo Tribunal Federal tem, nos últimos tempos, firme e constante jurisprudência no sentido de que os abusos da liberdade de imprensa estão sujeitos ao estatuto específico dos jornalistas, que é a Lei nº 2.083, de 12-11-53. Não havendo ‘novas e persuasivas razões’, não vejo como modificar esse critério. ‘Casos análogos devem ser julgados anàlogamente’ (Dawson, op. cit., p. 27). Não estamos julgando o problema da culpabilidade do paciente. Esse é tema a ser decidido posteriormente, de acordo com as regras estatuídas na Lei de Imprensa. Só na última fase da prestação jurisdicional é que deverão ser apreciadas as argüições da acusação e da defesa, na forma do processo contraditório, assegurado na Constituição. Fundado nos mais recentes precedentes desta Corte Suprema, especialmente no caso dos jornalistas Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro Dantas, acompanho o voto do eminente Senhor Ministro Relator".

Lins e Silva tocou também no núcleo da discussão. Não se disputava a respeito da culpabilidade de Cony. A questão era processual. No entanto, embora de natureza procedimental, referente à opção pela norma a ser aplicada, o efeito prático da decisão apontaria como se controlaria a liberdade de imprensa. Vivia-se período de exceção. Trata-se daquele momento político onde a autoridade se define, pelo poder e pela competência de fixar o que é período de exceção, na lição do constitucionalismo alemão da época da República de Weimar (cf. SCHMITT, 1992, p. 14). O estado de exceção sugere-nos medida ilegal com roupagem de juridicidade e de constitucionalidade (cf. AGAMBEN, 2004, p. 44).

Na continuidade do concorrido julgamento votou Hermes Lima, que seguiu a tendência que se afirmava com Lins e Silva, que havia acompanhado o voto condutor do relator do processo. Em seu livro de memórias - - Travessia - - Hermes Lima se refere àqueles anos difíceis, aos colegas, ao Tribunal, à cassação:

"Evandro Lins e Silva tomou posse em setembro de 1963, e, nos dois anos antecedentes à sua ascensão ao Supremo, exerceu o cargo de Procurador-Geral da República, depois de o de chefe da Casa Civil da Presidência e, finalmente, o de ministro das Relações Exteriores, onde me sucedeu. Foi também compulsoriamente aposentado pelo Ato nº 5. Ele vinha consagrado por longa exemplar carreira de advogado criminal e professor, e não tardou que sua liderança em matéria penal logo se estabelecesse pela superioridade do saber e da experiência. Sua agilidade mental completa o conjunto das virtudes intelectuais que o singularizam na exposição e no debate e sua propensão a humanizar a aplicação da lei evidencia o amadurecimento de uma vivência iluminada pelos problemas do homem no relacionamento social. Fui o terceiro juiz aposentado pelo Ato Institucional nº 5. Essas aposentadorias, cinco anos depois de deflagrada a revolução, remataram obstinada campanha de índole política discriminatória que inicialmente visou a Evandro e a mim, acabou colhendo Victor Nunes Leal e, por pouco, não atingiu outros ministros. Sem dúvida, repercutiram fundamente na carreira na maioria judiciária que, embora silenciosa, sentiu, mais uma vez, o drama das depurações políticas de juízes em épocas revolucionárias (...)"(LIMA, 1974, pp. 288-289).

Sigo com o voto de Hermes Lima. Trata-se de manifestação direta, concisa, minimalista. Explicou porque em circunstância anterior havia decidido de modo distinto. Seu voto marca o terceiro indício em favor de Carlos Heitor Cony:

"Também acompanho o voto do eminente Relator e desejo fazer a seguinte declaração: no habeas corpus nº 40.047 votei contra a concessão da ordem. Mas votei assim porque o motivo imputado ao paciente fora o conhecimento ilegal de correspondência secreta e cifrada, e publicou-se essa correspondência. Mas, no meu voto, que tenho aqui presente, distingui entre o conhecimento ilegal dessa correspondência e a publicação dela. O conhecimento era ilegal, porque o segredo militar estava protegido por lei e por regulamento militar. Mas quanto à publicação, eu dizia expressamente: ‘Não é por causa da publicação que o paciente estava respondendo a investigações’. De modo que, a meu ver, não havia crime de imprensa, delito de imprensa. Havia um delito de conhecimento ilegal da correspondência secreta, protegida por lei e pelos regulamentos militares. Portanto, Sr. Presidente, naquele momento, não era o jornalista, a meu ver, que estava em causa, mas o co-autor do conhecimento ilegal da matéria que era, por lei e pelos regulamentos militares, defesa à publicação. Com este esclarecimento, acompanho o voto do eminente Relator."

A dissidência foi aberta com o voto do Ministro Pedro Chaves, que principiou declarando que seu entendimento era dissonante. Desculpou-se dos demais colegas, referiu-se a exame minuncioso que fez da documentação, especialmente dos memoriais que lhe foram encaminhados. É tradição no Supremo Tribunal Federal a entrega de memoriais finais pelos advogados, o que se faz muitas vezes em audiência previamente agendada com o ministro. A multiplicação do volume de trabalho, que hoje atinge números astronômicos, colabora para que, em alguns gabinetes, os memoriais sejam encaminhados aos assessores ou à chefia do gabinete. Não há costume ou previsão regulamentar para que os memoriais sejam juntados nos autos do processo. Há a tradição de juntada por linha, que consiste em se autuar oficiosamente o memorial, que transita apartado dos autos principais. É comum que memoriais sejam consultados quando dos debates em plenário. Retomo o voto de Pedro Chaves:

" Infelizmente para mim, o meu voto é dissonante dos que foram pronunciados até agora. Peço vênia aos eminentes colegas e paciência para a leitura do voto que redigi: Examinei, cuidadosamente, memoriais que me foram presentes e verifiquei que o paciente está denunciado como incurso nas penas previstas para o crime qualificado pelo art. 14 da Lei de Segurança do Estado (Lei 1.802, de 5-1-53): ‘Provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as classes ou instituições civis’, tendo sido recebida a denúncia, o que importaria em constrangimento à liberdade do acusado, quando, no entendimento dos ilustres impetrantes, se crime houvesse, só poderia ser capitulado no art. 9º, letra ‘a’ da Lei de Imprensa (Lei 2.083, de 12-11-53), onde inscreveu o legislador: ‘fazer propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou a propaganda que se proponha a alimentar preconceitos de raça e de classe’. O constrangimento estaria em que além de sujeitar o paciente à pena corporal mais longa e mais grave, o recebimento da denúncia, importa também, no alongamento do prazo prescricional, na impossibilidade de obter a suspensão condicional da execução de sentença eventualmente condenatória e fiança, implicando ainda na privação do direito de se fazer representar por procurador após a qualificação, em todos os atos e termos do processo. Implica, ainda, a impetração contra o recebimento da denúncia, a circunstância que se lhe atribui, de se haver afastado entendimento deste Egrégio Supremo Tribunal, no sentido de que quando feita pela imprensa, a provocação de animosidade entre ou contra as classes armadas, ou destas contra as civis, refoge do domínio da Lei de Segurança, para constringir-se no plano exclusivo da Lei de Imprensa. Em sessão de 14 de junho de 1961, tive oportunidade de relatar um caso semelhante a este, no processo de habeas corpus nº 38.391, onde examinei o problema jurídico, sob o duplo aspecto, do mérito e da oportunidade da alegação. Peço vênia para reproduzir esse voto que teve o apoio de todos os eminentes componentes do Pretório Excelso àquela época, ausente apenas o eminente Ministro Luiz Gallotti. Disse, então, o seguinte: ‘Sustenta o impetrante que tendo sido o crime atribuído aos pacientes, praticado através "da imprensa, pelo jornal semanário Combate pelo qual são eles responsáveis, estaria enquadrado na Lei de Imprensa, lei especial, cujo dispositivo punitivo teria absorvido o do Código Penal, lei geral inaplicável às espécies, cuja invocação teria sido feita por uma denúncia ilógica, só para propiciar a decretação da prisão preventiva. A questão é difícil, envolve um problema jurídico relevante, pouco versado, e, que só modernamente tem sido abordado pelos juristas nacionais e estrangeiros, o chamado conflito de normas, ou concurso de normas, ou concurso aparente. Verifica-se o concurso aparente, quando um fato punível, inicialmente apresenta-se como passível de qualificação em dispositivos diversos e inconciliáveis da lei penal. Esse concurso ou conflito é chamado de aparente porque na realidade não existe, porque o ordenamento jurídico, através de princípios, há de enquadrar o fato típico em um só dos dispositivos, com a devida precisão, para que se não chegue ao ilogismo de bis in idem. Não há assim uma questão a ser deslindada pela aplicação de regras de direito positivo, como nos casos de concursos materiais ou formais, como nas questões de direito intertemporal ou espacial. ‘A doutrina que fornece os elementos para a solução do problema, não é pacífica na determinação dos princípios orientadores, que enumera como sendo, da especialidade, da exclusividade, da consumação, da progressividade e da alternatividade, cheios de particularidades, que ao fim se reduzem no conceito da especialidade, preso e sujeito à tipicidade especial, o que só se verifica, quando o fato inicialmente enquadrável em dois dispositivos apresenta urna diferença específica, por circunstâncias e peculiaridades que o tornam um tipoa especialis, como ensina o douto José Frederico Marques. Nessas condições, o exegeta, se vê remetido para a análise de fato, que se procede mediante o exame e avaliação das provas. Na espécie, alegou o impetrante ter o texto da lei especial absorvido aquêle da lei comum, e sendo assim a lei aplicável a lei especial, a Lei de Imprensa, e não a lei comum, o Código Penal. Teria o delito típico especial, absorvido o delito comum de extorsão. Pode o especial absorver o geral mais amplo em seus limites? A tipicidade dos atos atribuídos aos pacientes, é uma unidade de ação que escapa a qualificação ou enquadramento no delito comum? Firmo os princípios e formulo essas perguntas, para ressaltar a dificuldade da questão, e porque me assalta uma outra dúvida e é a da oportunidade e da idoneidade do remédio de habeas cor pus para solucioná-la. É na denúncia que abre a ação penal, ou na sentença que se qualifica definitivamente um fato punível e se o enquadra na sanção legal?’ É exatamente a repetição, em caso igual, do que está ocorrendo aqui na espécie. Lá havia uma denúncia, aqui há uma denúncia; lá houve pedido de habeas corpus, e aqui também há um pedido de habeas corpus; lá havia uma dúvida a respeito da capitulação do crime, e aqui também ocorre essa dúvida. Prossigo a leitura daquele voto. ‘A resposta a esta pergunta está na nossa lei escrita e encontra-se no art. 383 do Código de Processo Penal, onde se lê: ‘O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou de denúncia, ainda que,em conseqüência, tenha que aplicar pena mais grave’. Nos termos do art. 41, a classificação do crime é provisória na denúncia que deve conter a exposição do fato e suas circunstâncias, para que o juiz possa ao final, de acordo com as provas coligidas, dar a ele a definitiva definição jurídica. Nessas condições, desde que a denúncia foi recebida e aceita a qualificação provisória dela constante, quer me parecer que nova qualificação não poderá ser feita antes da sentença e seria atropelar as normas e fases do processo penal modificá-la por via de habeas corpus, através de antecipado exame de provas, justa causa para a iniciativa penal, se o fato descrito na denúncia não constituísse crime. Friso isso porque, num caso indicado aqui como precedente, concluí o meu voto - único que me vincula a esses julgamentos - em razão de entender que não havia crime nenhum naquela espécie. O referido habeas corpus foi então denegado por unanimidade de votos, e prosseguindo o processo, o juiz de primeira instância entendeu tratar-se de crime de imprensa, assim, enquadrou o fato decretando a extinção da punibilidade pela prescrição. Guardo grande respeito aos precedentes do Supremo Tribunal, e também à minha própria orientação, que não está sujeita a modificações infundadas. Reformada essa sentença pelo Tribunal de Justiça, veio novo habeas corpus, relatado pelo eminente Ministro Cândido Motta Filho e concedido também com o meu voto, onde assim me manifestei: ‘Sr. Presidente, no primeiro habeas corpus, de que tive a honra de ser relator perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal, entendi que havia, no caso, concurso de normas. Tanto a lei especial quanto a lei comum puniam o fato delituoso. E ficou assentado, com apoio da unanimidade dos eminentes Srs. Ministros (e repito, só estava ausente o Ministro Luiz Gallotti e hoje falta também o saudoso Ministro Ary Franco) que, diante dessa classificação provisória feita na denúncia recebida, com a decretação da prisão preventiva, não era dado, com um exame antecipado de provas, modificá-la. Mas esse exame foi feito agora, no momento oportuno. O ilustre advogado do impetrante, da tribuna, e o eminente Ministro Relator examinaram a sentença, na qual dizia o Juiz claramente que não está caracterizado o crime comum. O que houve foi, sim, um crime de extorsão por meio de imprensa, a este eu julgo prescrito. A decisão do egrégio Tribunal de Justiça da Guanabara, pela sua Câmara Criminal, determinando ao Juiz que já tinha examinado a matéria dizendo que não existia o crime comum, a reexaminasse novamente, consistiu em constrangimento ilegal. Acho que o voto do eminente Ministro Cândido Motta coroou este episódio judiciário e está em perfeita harmonia com o que foi decidido no primeiro habeas corpus julgado por este Egrégio Tribunal’. Peço perdão aos eminentes colegas, se me estou alongando nos prolegômenos, mas acho indispensável assentar com segurança os argumentos que me levarão à conclusão, não só em atenção à alta significação dos julgados desta Corte de Justiça, como também a que devo às minhas próprias convicções, que defendo enquanto as considero inabaladas pela crítica de mais doutas e convincentes opiniões em contrário. Invoco a tolerância dos eminentes colegas para prosseguir nas considerações que venho fazendo, pois pretendo agora aplicar os princípios que expus nos dois votos precedentes ao caso sob julgamento. A denúncia capitulou o crime que imputa ao paciente, no art. 14 da Lei de Segurança - provocar animosidade, entre classes; sustenta o pedido que o fato atribuído ao paciente não constitui crime, e, caso contrário, só poderia ser classificado como delito previsto no art. 9º, da Lei 2.083, art. 9º, não só por ter sido esse o impulso inicial da Procuradoria-Geral ao encaminhar a representação, (já agora completamente esclarecido pela manifestação oral do eminente Procurador-Geral da República), como também porque o ato punível foi praticado através da imprensa, sendo conseqüentemente crime de imprensa. Peço vênia, para dissentir dessa conclusão, pelos motivos que aduzirei. Acolhendo a representação e encaminhando-a ao órgão competente do Ministério Público, a Procuradoria-Geral não classifica o fato, não passando de mera referência a alusão a qualquer texto legal. Não fora assim, o encaminhamento já deveria revestir a forma de denúncia imposta ao Ministério Público, para apresentá-la, transformado o órgão específico em mero autômato, ou comissário da Procuradoria-Geral, despido da responsabilidade peculiar às suas funções. Mas isso não ocorre. A qualificação do delito, cabe provisoriamente, ao autor da denúncia formalizada e definitivamente à sentença, porque a ação penal nasce com a denúncia e não com a representação. A regra geral, para todas as ações criminais, como norma processual comum, está no art. 41 do Código de Processo Penal, que impõe entre outros requisitos indispensáveis à denúncia a classificação do crime. Não posso aceitar, também, como princípio, a tese de que todo crime praticado pela imprensa é crime de imprensa. Essa tese só poderá ser tomada cientificamente, com as devidas cautelas, como critério de ‘especialidade’ para a solução de um conflito aparente, que exista a possibilidade de um fato punível ser enquadrado na Lei de Imprensa, ao mesmo tempo em outra lei comum ou especial. No caso, não ocorre a possibilidade do duplo enquadramento que enseja a aplicação, da Lei de Imprensa pelo critério diferencial da especialidade. É por isto que acho que este caso não está preso nem ao precedente Prudente de Morais Neto, porque lá se estabeleceu uma matéria de fato: que havia duplicidade de incidência nas duas leis, e aqui não existe como eu me proponho a provar. Na realidade, o fato imputado ao paciente e classificado provisoriamente pela denúncia no art. 14 da Lei de Segurança, não encontra qualificação específica na Lei de Imprensa, não havendo assim conflito de normas. O eminente Relator, no seu lúcido e brilhante voto, que ouvi com atenção religiosa, sustentou a tese de que não cabe ao Poder Judiciário legislar senão aplicar a legislação elaborada pelo Congresso Nacional. Estou de inteiro acordo, e é por isso que ouso afirmar que não há dupla incidência ao fato atribuído ao paciente, na Lei de Imprensa e na Lei de Segurança do Estado. O crime de cuja autoria é o paciente acusado, é o de ‘provocação de animosidade’ entre classes armadas entre si e delas contra classes ou instituições civis. O crime previsto no art. 9º da Lei de Imprensa, não cuida dessa matéria, mas sim de assunto completamente diferente, ou seja - da propaganda de guerra, da propaganda de processos violentos para subversão da ordem política e social, ou propaganda que se proponha a alimentar preconceitos de raça e de classe. Nos dois textos, o único ponto de comunhão é a referência a classes ou classe. Na Lei de Segurança, o que se pune é a provocação de animosidade, na Lei de Imprensa, a propaganda de preconceitos. Nem o fato material qualificado crime, em uma ou outra dessas leis, nem o elemento moral que os torna puníveis, guardam entre si a mais mínima relação de igualdade. Provocar animosidade, é criar um estado de espírito, descobrir dissensões, inventar paixões, semear cizânia, desafiar a quebra da harmonia. Nada disso se encontra na Lei de Imprensa, em cujo art. 9º na parte final onde se encontra como único elemento de semelhança com o art. 14 da Lei de Segurança, o uso da palavra classe, o delito é de propaganda visando alimentar preconceito de-raça e de classe. Ora, enquanto que o termo ‘provocação’ implica necessariamente a idéia de criação, de invenção, de surgimento de alguma coisa até então inexistente, a expressão ‘propaganda de alimentação’ impõe a preexistência do seu objeto. Assim, não se pode equiparar a provocação de um estado de espírito de animosidade entre classes, criação de situação maldosa até então inexistente, fato punido pela Lei de Segurança, com a propagação de preconceitos, isto é, de conceito antecipado mas já existente, precisamente por ser um preconceito, punido criminalmente pela Lei de Imprensa. Penso que não destoa a conclusão de minha argumentação, com o julgado deste Pretório Excelso no habeas corpus nº 37.522, no sentido de que o delito de provocação de animosidade entre as classes armadas entre si, ou delas com as classes e instituições civis, quando praticado pela imprensa, deixa de se enquadrar na Lei de Segurança e passa para o âmbito punitivo da Lei de Imprensa. Procurei demonstrar que não há, na espécie, um conflito de normas, por se tratar de duas leis que nada têm de comum na tipificação de delito atribuído ao paciente e apenas em uma delas qualificável. Penso, também, que é inoportuna a impetração ante precariedade da natureza provisória da classificação feita na denúncia. Assim, sem entrar no mérito da acusação, sem decidir se o paciente cometeu ou não cometeu o delito que lhe é atribuído, nego a ordem de habeas corpus, para que a ação penal prossiga, como foi posta em juízo. E quero salientar ainda, Sr. Presidente, que no caso do jornalista Hélio Fernandes (completa e absolutamente diferente deste, havia, primeiro uma coação já praticada, uma prisão violentíssima, feita independentemente de mandado, quando este homem foi arrancado de um quarto de hotel na cidade de Belo Horizonte, onde estava no exercício da sua profissão), a conclusão do meu voto acompanhando a conclusão com que V. Exa. abrilhantou os Anais deste egrégio Supremo Tribunal, naquele julgamento, não era por esta ou por aquela razão: é que eu negava a existência de qualquer crime. Aliás, o eminente Ministro Gonçalves de Oliveira, na minha ausência, interpretou perfeitamente o meu pensamento quando foi julgada a Representação 544, ao tentar a Justiça Militar enquadrar novamente o jornalista Hélio Fernandes em crime contra a Lei de Segurança. Era o que tinha a dizer, pedindo vênia ao egrégio Tribunal pelos longos momentos que furtei da sua atenção tão preciosa, e pedindo vênia também pelo entusiasmo que empresto a todos os meus votos".

O Ministro Pedro Chaves fez questão de enfatizar que não tocava no mérito da questão. Não julgou suposta culpabilidade de Cony. Seu voto não transcendia aos limites de problemas de direito positivo em sentido muito estrito. Afirmar que há intenção política em sua fala seria aleivosia de minha parte, maniqueísmo injustificável. O núcleo da reflexão de Pedro Chaves centrava-se em problema de direito processual penal. A qualificação do delito, no entender de Pedro Chaves, seria circunstância aferível provisoriamente pelo autor da denúncia, a ser confirmada (ou não) definitivamente com o trânsito em julgado da sentença condenatório (ou de absolvição). Assim, ao que parece, Pedro Chaves não via porque o Supremo Tribunal Federal poderia fixar os limites da denúncia, o que seria prerrogativa de seu autor, a ser acatada (ou não) pelo juiz de primeira instância, com os necessários e eventuais reparos factuais e processuais, de incumbência dos tribunais superiores, supervenientemente.

Para Pedro Chaves o tipo legal que se discutia limitava-se à provocação de animosidade, fato que não se encontrava definido na lei de imprensa. O desdobramento penal do feito, de certa forma qualificador de lei penal extravagante, exigia reserva absoluta de lei, e não aplicação extensiva ou analógica. De tal modo, Pedro Chaves não admitia a oportunidade e a idoneidade do remédio escolhido, habeas corpus, como, aliás, já decidira em outras ocasiões; e leu em plenário os votos pretéritos, em cima dos quais fundamentava sua linha de convencimento. Do ponto de vista ainda mais analítico, debatia-se questão que empolgava os juristas da época. Antinomias (conflitos de normas) e seus mecanismos de solução eram substancialmente analisados, à luz de critérios exegéticos de especialidade, exclusividade, consumação, progressividade e alternatividade, conforme consignado no próprio voto dissidente. À época, e à propósito, Norberto Bobbio havia lecionado na Itália um curso sobre teoria do ordenamento jurídico (BOBBIO, 1993), que resultou em publicação de livro seminal, traduzido no Brasil somente na década de 1990.

O debate teve continuidade com o Ministro Victor Nunes Leal. Reputado como estudioso infatigável, de quem se dizia acordar as duas horas da madrugada, para preparar suas aulas de direito constitucional. Doutor em ciências sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu atividade multifacetária. Advogado, jornalista, ministro do Supremo (de 1960 a 1969), consultor-geral da República, chefe da Casa Civil (no governo Juscelino). Mesmo depois de afastado do Supremo por força do ato institucional de 1969, permaneceu firme na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo. Victor Nunes revelou-se como um de nossos maiores defensores do municipalismo. É de sua autoria o clássico Coronelismo, Enxada e Voto, no qual Leal radica seu estudo na premissa de que a propriedade da terra é fator decisivo de liderança politica local, perspectiva realista que informava seu pensamento. Como realista também foi seu voto, que reproduzo:

" Sr. Presidente, não sou devoto da irresponsabilidade da imprensa, e já tenho tido dissabores por esta opinião. Mas, ao ascender a esta alta Corte, encontrei jurisprudência firme no sentido do voto do eminente Ministro Relator, acompanhado pelos eminentes Ministros Evandro Lins e Hermes Lima. E tenho votado em igual sentido, seguindo essa jurisprudência, porque nenhum argumento me ocorreu que autorizasse a minha rebeldia. No caso Hélio Fernandes, em que neguei o pedido (H.C. nº 40.047), o problema era outro, sobre o qual não havia qualquer precedente do Supremo Tribunal Federal: violação do sigilo da administração militar. No caso de hoje, o eminente Ministro Pedro Chaves, com sua grande autoridade e com seu longo tirocínio profissional, sustenta que não há correspondência, quanto à tipificação penal, entre os arts. 14, da Lei de Segurança, e 9, da Lei de Imprensa".

O debate ganhou novamente contorno acalorado. O Ministro relator tomou a palavra e em aparte observou:

"Queria esclarecer ao Tribunal que no caso do habeas corpus nº 37.522, requerido em favor dos jornalistas João Ribeiro Dantas e Prudente de Morais Neto, o crime atribuído aos então pacientes era o mesmo ora atribuído ao paciente Heitor Cony. Está aqui no voto do eminente Ministro Hahnemann Guimarães textual: ‘o que se atribui ao recorrido é estar estimulando a animosidade nas Classes Armadas, fazendo propaganda da subversão da ordem pela violência’. Sempre entendi que a jurisprudência é uma interpretação oficial da lei. Aqui, neste Tribunal, tenho votado, muitas vezes, mudando de voto, para que prevaleça a jurisprudência, a fim de evitar que uns tenham habeas corpus e outros não".

Victor Nunes Leal retomou a palavra, dizendo-se agradecido pelo esclarecimento de Gonçalves de Oliveira. E prosseguiu:

"Para o eminente Ministro Pedro Chaves não há identidade na tipificação penal dos arts. 14 da Lei de Segurança, e 9, da Lei de Imprensa: De fato, esses dispositivos não são literalmente iguais. Mas o que firmou o Supremo Tribunal, no caso Prudente de Morais Neto (HC 37.622), como acaba de lembrar o Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, foi que ambos punem a atividade subversiva das instituições, da ordem social, econômica e política. Um dos meios pelos quais se pode chegar, eventualmente, à subversão é incentivar a animosidade entre as classes, pregar o ódio de classe, ou o preconceito de classe. Dentre os vários meios e processos de subversão, cada uma das leis focaliza este ou aquele com mais relevo. Mas o que numa e noutra se pune, consoante o entendimento do Supremo Tribunal, é a propaganda subversiva, é a captação de decisões para a subversão violenta da ordem social, econômica e política. Outro precedente é lembrado pelo eminente Ministro Pedro Chaves, de cujo voto vou dissentir, com muito pesar, porque sob muitos aspectos o nosso pensamento coincide. Também não posso aplaudir a quase irresponsabilidade legal: da imprensa em nosso país. S. Exa. recordou um caso da chamada imprensa marrom, um caso de extorsão pela imprensa. O jornalista teve indeferido o primeiro habeas corpus de nº 38.391, julgado em 14-6-61, relator o eminente Ministro Pedro Chaves, e logrou êxito, mais tarde, no habeas corpus 39.646, de que foi Relator o eminente Ministro Cândido Motta (...) Se concedemos, naquele caso, o segundo habeas corpus, foi porque se verificou em fase mais adiantada do processo, que a extorsão, de que se acusava o paciente, fôra cometida apenas por meio do jornal. Voltando, agora, ao caso presente, é justamente a atividade subversiva, concretizada na ação jornalística, que o Supremo Tribunal considera estar tipificada, igualmente, na Lei de Segurança pelo jornal, e o Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira fez, a respeito, um relatório minucioso. Sr. Presidente, como não me ocorrem argumentos novos, que ainda não tivessem sido examinados pelo Tribunal, e que me autorizassem a pedir dos colegas o reexame do tema, para eventual mudança da nossa jurisprudência, deixo de fazer essa sugestão, que trarei sempre, em qualquer outro processo, quando estiver convencido de que razões novas poderão abalar a convicção dos eminentes Ministros. Do contrário, seguirei a jurisprudência, porque também estou convencido de que o prestígio de qualquer Tribunal repousa, em grande parte, na observância dos seus próprios precedentes. Respeito fraternalmente, com grande apreço e amizade, o ponto de vista divergente do eminente Ministro Pedro Chaves, não é isso o de que se trata. O eminente Sr. Ministro da Guerra, depondo, disse que, enquanto as injúrias eram dirigidas a ele pessoalmente, não tomou nenhuma providência; mas, no momento em que verificou que essa campanha estava contribuindo para provocar animosidades entre as classes armadas, resolveu agir contra o autor dos artigos. De sorte que, Sr. Presidente, acompanho o Ministro Pedro Chaves para, mantendo os meus votos anteriores, mandar que prossiga o processo de acôrdo com o art. 14 da Lei de Segurança do Estado. Vencido nessa parte, concedo a ordem irrestrítamente para não haver processo nenhum, porque o fato não se enquadra no art. 9º da Lei de Imprensa."

O voto de Victor Nunes Leal foi realista. Manifestou algumas reservas à utilização irrestrita da lei de imprensa, e registrou o constrangimento que a posição já lhe havia provocado. Na continuidade, votou Cândido Motta Filho. Literato até a medula, de quem inclusive já se desconfiou (injustificadamente) dos conhecimentos jurídicos, Candido Mota deixou-nos livro de memórias. Testemunha ocular da vida jurídica brasileira, Cândido Mota visitou Clóvis Beviláqua em 1944, a propósito da entrega de biografia de Bernardino de Campos. Motta Filho pediu ao jurista cearense um artigo para revista que dirigia. Como o artigo não chegou em suas mãos, Motta Filho foi ao Rio cobrar a promessa que o autor do código civil de 1916 lhe fizera. E narrou:

"Foi ao chegar que tive a notícia de que tinha morrido. Estive em sua casa, algumas horas antes do enterro. E fiquei emocionado. Em sua mesa, entre livros, estava, em algumas tiras, o artigo prometido e uma carta começada: ‘Meu caro colega Cândido Motta...’ Publiquei o artigo na revista". (MOTTA FILHO, 1972, p. 72).

Cândido Motta Filho acompanhou o voto condutor do relator, admitindo a utilização da lei de imprensa. Registre-se o simbolismo de sua decisão, e a riqueza na exploração de imagens. Liberdade de imprensa é o tema que o cativava, e a trajetória de escritor justificava a preocupação. Seu voto parece de quem fala outra língua. Pode parecer um bizantino ou um selenita. O leitor desavisado tem a impressão de que o texto estaria fora de contexto. Mas o contexto era aquele mesmo. Segue como votou Cândido Motta Filho:

" Sr. Presidente, há poucos dias, lendo uma das páginas do escritor, pensador e político francês Benjamin Constant, encontrei o seu discurso sobre a liberdade de imprensa e sobre a lei conseqüente. Esse discurso era fruto de uma larga experiência, no começo do liberalismo, adquirida por um homem que tinha atravessado a Revolução Francesa em grande parte, o terrorismo robespierriano, depois o bonapartismo e por fim a restauração. E ele dizia que a liberdade de imprensa é a medida do regime livre; onde não há liberdade de imprensa, não há regime livre. E por isso mesmo a lei que devia cuidar dos abusos da liberdade de imprensa devia ser exclusivamente uma lei de imprensa tal o significado da imprensa nos regimes livres, nas democracias. Esta justificativa das leis especiais para a imprensa que está num longo discurso desse grande pensador francês, atravessou os tempos e todos os povos livres mantêm esse mesmo critério, fazendo com que o abuso da liberdade de imprensa seja regulado pela lei de imprensa. Tivemos naturalmente as exceções mas peço vênia para conceder a ordem, nos termos em que a concede o eminente Ministro Relator.

O debate seguiu com o Ministro Vilas Boas. Voto sintético, no qual Vilas Boas segue a dissidência de Pedro Chaves, invocando que o caso não era suscetível de aplicação da lei de imprensa:

"Sr. Presidente, o acórdão lavrado pelo eminente Ministro Nelson Hungria realmente está subordinado a esta ementa: ‘A provocação de animosidade entre as classes armadas se enquadra exclusivamente no artigo nono da Lei de Imprensa, quando praticado por meio de imprensa’. Li atentamente a denúncia que está às fls. 4 e 5. Li também o ofício, em que o eminente Procurador Geral da República, Dr. Oswaldo Trigueiro, encaminhando a representação ao Ministério Público do Estado da Guanabara, recomendou que se procedesse nos têrmos dos arts. 9º, 26 e 29 da Lei nº 2.083. Lendo essa denúncia, verifiquei que, se ela não se enquadra no art. 14 da Lei de Segurança Nacional, não encontrará outro assento, porque o art. 9º, da Lei de Imprensa, de modo algum coincide com o art. 14, da Lei de Segurança do Estado. Diz o referido art. 14: ‘Provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as classes ou instituições civis’. Ao passo que, como acaba de enunciar claramente no seu voto o eminente Ministro Pedro Chaves, o art. 9º trata de outro assunto: ‘Fazer propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou propaganda que se proponha a alimentar preconceitos de raça e de classe’. Não é isso o de que se trata. O eminente Sr. Ministro da Guerra, depondo, disse que, enquanto as injúrias eram dirigidas a êle pessoalmente, não tomou nenhuma providência; mas, no momento em que verificou que essa campanha estava contribuindo para provocar animosidades entre as classes armadas, resolveu agir contra o autor dos artigos. De sorte que, Sr. Presidente, acompanho o Ministro Pedro Chaves para, mantendo os meus votos anteriores, mandar que prossiga o processo de acordo com o art. 14 da Lei de Segurança do Estado. Vencido nessa parte, concedo a ordem irrestritamente para não haver processo nenhum, porque o fato não se enquadra no art. 9º da Lei de Imprensa."

Por fim, votou o Ministro Luiz Gallotti, deferindo o pedido de habeas corpus para se determinar que Carlos Heitor Cony fosse processado nos termos da lei de imprensa e não nos termos da lei de segurança nacional:

" Em voto vencido, que depois se tornou vencedor (entre outros, no habeas corpus concedido ao jornalista Hélio Fernandes contra prisão decretada pelo Ministro da Guerra Jair Dantas Ribeiro), voto que proferi no processo criminal solicitado pelo Ministro da Guerra Henrique Lott contra os jornalistas João Dantas e Prudente de Morais Neto, examinei, desde o Império, tôda a nossa legislação sôbre delitos por abuso da liberdade de imprensa e mostrei que, ao contrário do direito anteriormente em vigor, a vigente Lei de Segurança (Lei n. 1.802, de 5-1-53), respeitando integralmente a órbita da lei de imprensa, não cuida de crimes por meio desta cometidos e, quando cogita de propagandas que constituem crime por ela previsto, alude a boletins e panfletos, mas não a jornais (art. 11, § 3.°). E a atual lei que ‘regula a liberdade de imprensa’, Lei n. 2.083, de 12-11-53, no capítulo II, que trata ‘dos abusos e penalidades’, enumera no art. 9º os fatos que constituem abusos no exercício da liberdade de imprensa e lhes indica as penas. Assim, a Lei 2.083, posterior, quis tratar completamente, por inteiro, dos crimes cometidos no exercício da liberdade de imprensa. E o que decorre do seu art. 9º, onde enumera taxativamente, em todas as suas categorias, os abusos de tal liberdade que ela considera crimes (incluindo na enumeração delitos contra a segurança do Estado praticados por meio da imprensa e também delitos comuns por êste meio cometidos), e ainda da circunstância de não haver reproduzido o art. 19 da anterior lei de imprensa (Dec. nº 24.776 de 14-7-1934), que mandava punir de acordo com a legislação comum todas as demais infrações penais que pudessem ser cometidas pela imprensa e não estivessem previstas na lei desta. O exame das vigentes lei de imprensa e de segurança, elaboradas quase simultaneamente, e o seu confronto com as anteriores, deixam claro que aquelas duas leis respeitaram, nitidamente, uma a órbita da outra. Se a lei de imprensa é excessivamente benigna e não protege suficientemente a honra das pessoas e os interesses do bem comum, o que cumprirá fazer será reformá-la (problema não para o judiciário mas para o Legislativo). Tenho de aplicar ao caso dos autos a lei específica que o rege, a lei feita para regular inteiramente a liberdade de imprensa, o seu exercício e os seus abusos. Se ela houvesse silenciado quanto aos crimes contra a segurança do Estado, ainda seria possível dizer que ressalvou a órbita da lei de segurança, mesmo quando cometidos eles pela imprensa. Mas, se, vindo posteriormente, dispôs também sobre tais crimes, não vejo como sustentar que a lei de segurança se aplique à imprensa pela atividade desta. Guardando coerência com esse voto, concedo o habeas corpus, para que o acusado responda a processo conforme o disposto na Lei de Imprensa".

Assim, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, em 23 de setembro de 1964, para que Carlos Heitor Cony respondesse às acusações nos termos da lei de imprensa. Naquele mesmo dia, antes da votação, Cony publicou crônica, com o título Aos Meus Leitores. Explicitava suas apreensões:

"Hoje, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir sobre o habeas-corpus impetrado a meu favor pelo ministro Nelson Hungria. Cabem-me, nesta oportunidade, algumas palavras a meus leitores. Foi daqui, desta modesta coluna, que praticamente se aglutinou o primeiro o protesto público contra as arbitrariedades e violências de um movimento armado que nos envergonhou e ainda nos maltrata. O mérito – se houve algum – não é meu. Foram os leitores que, dando ressonância ao meu protesto individual, engranderam uma campanha que se propunha modesta em seus meios e objetivos (...) Em caso de sentença adversa, os oficiais de justiça da 12ª Vara Criminal saberão onde me encontrar. Minha atitude, porém, não equivale a uma passividade. Pelo contrário, ela é uma forma pessoal de protesto – um outro tipo de protesto – que me cabe, talvez e ainda, realizar. Lembro Mr. Pickwick, no meu entender o melhor personagem de Dickens. Mr. Pickwick deixou-se prender em sinal de protesto. Não é bem o meu caso, mas a atitude, embora não sendo idêntica, é análoga. Os meus amigos que me perdoem: mas não sou hábil nem esperto. Não alimento planos ou revanches de ordem pessoal ou política. Sou um escritor que bem ou mal vem procurando realizar sua obra – e não me sobra nem busco tempo ou gosto para ambicionar a carreira política. Não fujo, em suma. E isso não é um favor que faço aos meus adversários. É um favor e uma obrigação que faço a mim mesmo." (CONY, cit., p. 160).

Cony, Hungria, a pena e a toga, venceram os tanques. Mas fora apenas uma batalha. Os anos de chumbo estavam apenas começando. Cony e Hungria sobreviveram a guerra, e creio que a venceram. Os fatos aqui narrados lembram-nos época em que muitas vezes havia condenação sem julgamento, julgamento sem acusão e acusão sem provas, a exemplo da imagem que François Ost (2005) sugeriu a propósito de romance de Franz Kafka.


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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura. Carlos Heitor Cony e o Habeas Corpus nº 40.976-GB.: A história entre penas, togas e tanques de guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1492, 2 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10224. Acesso em: 24 nov. 2024.

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