INTRODUÇÃO
De acordo com o filósofo grego Aristóteles, o homem é um animal político e sociável, significando dizer que é no âmbito da sociedade, máxime no seio da entidade familiar, que ele consegue desenvolver integralmente suas potencialidades em toda sua plenitude, conforme se verifica do seguinte trecho de sua doutrina:
9. É evidente, pois que a cidade faz parte das coisas de natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto, e não por qualquer circunstância inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero a censura cruel de ser sem família, sem leis, sem lar. (...)
10. Claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. (...) O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado. (A Política, 2010, [entre 2010 e 2020], p. 14)
Aplicando-se esse milenar ensinamento às relações típicas do mundo contemporâneo, verifica-se que as pessoas no desenvolvimento de suas interações sociais, no desenrolar de atividades rotineiras e cotidianas, mesmo sem perceberem, praticam acordos, convencionam pactos, realizam e firmam uma série de entendimentos, desde eventos simples e corriqueiros como a compra de um café em um quiosque, assim como atos mais complexos como a aquisição de um imóvel.
Esses acordos, convenções, ajustes que resultam do consentimento entre pessoas foram capitaneados, qualificados e regulados pelo legislador na forma de normas jurídicas como vínculos contratuais, com o fito de estabelecer deveres e obrigações entre as partes, garantindo-se segurança jurídica entre elas.
Nesse contexto, tem-se presente a figura jurídica denominada de “contrato” que, em suma, é todo tipo de convenção ou estipulação que possam ser criadas pelo acordo de vontade e por outros fatores acessórios, conforme lição ofertada por Flávio Tartuce (TARTUCE, 2014, p. 550).
Neste trabalho será abordado a função social do contrato, princípio que preconiza que a relações contratuais devem ser interpretadas de acordo com as diretrizes do meio social onde estão inseridas, de maneira a não acrretar onerosidade excessiva às partes e garantir que a igualdade entre elas seja respeitada, sobretudo com vistas a manter equilibrada a relação com o fito de não ocorrer a preponderância da situação de um dos contratantes sobre a do outro.
Assim, o tema eleito será discorrido e analisado em três capítulos.
O primeiro capítulo busca-se o entendimento concernente à definição do contrato, realizando análise acerca da Teoria Geral dos Contratos, da evolução histórica das relações contratuais, inclusive quanto ao aspecto constitucional, com abordagem específica do tema no âmbito da Carta Magna e sobre a teoria do diálogo das fontes, que tem por objeto a interação das normas do Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor.
No segundo capítulo serão conceituados e analisados os principais elementos inerentes aos mais relevantes princípios contratuais, tais como, o princípio da boa-fé objetiva, da autonomia da vontade, da relatividade dos efeitos do contrato, do consensualismo e do princípio da força obrigatória dos contratos.
Por fim, o terceiro capítulo trata especificamente do princípio da função social do contrato, consignando-se sua conceituação jurídica, seguido de abordagem de sua positivação na Constituição Federal, bem como no Código Civil de 2002, especialmente à luz do artigo 421, destacando-se a eficácia da função social e sua aplicação nos tribunais, com transcrição de jurisprudência, e, por fim, discorre-se sobre a inobservância do aludido princípio nas relações contratuais.
Não é novo o tema abordado neste trabaho. No entanto, com humilde pretensão, espera-se que as conclusões desta monografia possam contribuir com o aperfeiçoamento do assunto junto ao mundo acadêmico e jurídico.
1. CONTRATO
1.1 Conceito
De início, cumpre registrar que tanto o antigo Código Civil de 1916 quanto o atual de 2002 não definiram o instituto do contrato, cabendo tal tarefa sobretudo aos doutrinadores, e sob essa ótica enfatiza Tartuce que “é imperiosa a busca de sua categorização, para o devido estudo pelo aplicador do Direito” (TARTUCE, 2014, p. 550).
No plano etimológico, a palavra “contrato” deriva do latim contractu, que significa “trato com”, designando um acordo de vontade entre partes que visa alterar, posicionar e até mesmo abolir um direito.
Essa definição se amolda ao entendimento do jurista Carlos Roberto Gonçalves que assevera que o contrato é fonte de obrigação, que a ela dá origem de acordo com as regras de direito (GONÇALVES, 2018, p.10).
A professora Maria Helena Diniz trata o contrato como negócio jurídico bilateral, conceituando-o como acordo de duas ou mais vontades nos preceitos do ordenamento jurídico, nos seguintes termos:
O acordo de duas ou mais vontades, na conformidade de ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial (DINIZ, 2022, p. 451).
Orlando Gomes (2007, p.10) ensina que o contrato é “negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que regularam”, fazendo-se obrigatória, nesse sentido, a presença de duas ou mais pessoas que, na interação de suas vontades, convergem a um mútuo escopo consensual.
Já na abordagem realizada por Giselda Hironaka (2000, p. 87), o contrato visa à regulamentação de interesses privados, mostrando-se instrumento que regulamenta e limita a composição de interesses, significando que a positivação do instituto na ordem jurídica permite que os particulares estabeleçam suas relações mediante manifestação livre e inequívoca de suas vontades.
Nesse contexto, visualiza-se que o Código Civil de 2002, no art. 104, cuida dos contratos como negócios jurídicos que exigem o preenchimento de certos requisitos para sua validade, a saber, a agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei.Confira-se:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei. (BRASIL, 2002).
Dessa maneira, de acordo com as definições acima expostas, verifica-se que, em suma, o contrato trata-se de um acordo entabulado entre duas ou mais pessoas que produz efeitos jurídicos, de modo a vincular e obrigar as partes envolvidas, sendo, portanto, fonte geradora de obrigações.
Importante registrar que, ao contrário dos preceitos de direito público, onde as partes somente podem agir nos termos definidos em lei, na legislação civil, mormente no tocante aos contratos, os interessados podem prever tudo o que não estiver proibido em lei.
1.2 Teoria Geral dos Contratos
Maria Helena Diniz na sua obra “Dicionário Jurídico Universitário” expõe diversas significações para o termo “teoria” tanto sob os aspectos da filosofia geral quando da lógica e da história do Direito, sendo que para o presente trabalho importa tão somente consignar os dois primeiros conceitos (DINIZ, 2022, p. 571).
Assim, no que diz respeito à filosofia geral, diz Diniz que é especulação, conhecimento especulativo, ciência, opinião sistematizada, “conhecimento científico que é um saber metodicamente fundado, demonstrado e sistematizado” e, referindo-se a Euryalo Canabrava, consigna que é recurso idôneo para apreender estruturas, mediante o emprego de hipóteses, conceitos e relações funcionais relevantes. Quanto à lógica, ensina que trata-se de “hipótese confirmada e aceita por cientistas, mas sujeita a alteração, conforme as novas descobertas havidas”, e com base na doutrina de Régis Jolivet, enfatiza que “é um conjunto de teses que formam um todo sistemático”.
Na mesma obra (idem), Diniz expõe o significado do termo “teoria geral do direito”, nos termos de suas palavras:
É, enquanto teoria positiva de todas as formas de experiência jurídica, isto é, aplicável aos vários campos do saber jurídico, uma ciência da realidade jurídica, que busca seus elementos na filosofia do direito e nas ciências jurídicas auxiliares, como a sociologia do direito e da história jurídica, para estudando-os, tirar conclusões sitemáticas que servirão de guia ao jurista e até mesmo ao sociólogo ou ao historiador do direito, sem as quais não poderiam atjuar cientificamente. (DINIZ, 2022, p. 2582).
Conclui Diniz (Idem) que a teoria geral do direito possui o propósito de elaborar noções comuns a todo o sistema jurídico positivo, fixando conceitos jurídicos amplos e gerais de modo a constituir vetores e fundamentos para diversos ramos do direito.
Passando à conceituação do termo “teoria geral dos contratos”, Maria Helena Diniz entende ser o instrumento que tem o papel de disciplinar o contrato, sancionando-o e garantindo-o, de acordo com o seguinte excerto:
A doutrina das obrigações contratuais tem por escopo (a) caracterizar o contrato, abrangendo nesse conceito todos os negócios jurídicos resultantes de acordo de vontades, de modo a uniformizar sua feição e excluir, assim, quaisquer controvérsias, seja qual for o tipo de contrato, desde que se tenha acordo bilateral ou plurilateral de vontades e (b) verificar se o vínculo obrigacional dele decorrente é resultante de lei, porque é ela que disciplina o contrato, sancionando-o e garantindo-o. (DINIZ, 2022, p.451).
De fato, com fulcro nas definições acima delineadas, percebe-se que a teoria geral dos contratos possui o escopo de estruturar elementos teóricos que sistematizam e fixam conceitos jurídicos gerais e os elementos essenciais com vistas a disciplinar a liberdade e a segurança aplicáveis às relações contratuais.
Nesse viés, a teoria geral dos contratos estabelece os parâmetros gerais, os elementos básicos e técnicos aplicáveis a tal instituto jurídico, com vistas à sua efetivação, bem como ao regramento de normas jurídicas atinentes à segurança e liberdade das partes envolvidas.
A teoria geral dos contratos está intitulada no Código Civil como “dos contratos em geral”, no Título V do Livro I da Parte Especial, arts. 421 usque 480.
1.3 Relação contratual - evolução histórica
As relações contratuais surgiram ao mesmo tempo em que foi desenvolvendo a civilização, sendo que os povos antigos aplicavam os costumes, muitas vezes de caráter religiosos, para estabelecer direitos e garantir deveres. Assim, com o tempo foi surgindo a necessidade de realizar acordos, inicialmente informais, com o objetivo de garantir o cumprimento de obrigações para, alfim, promover uma convivência harmônica em sociedade.
Com o aperfeiçoamento social, cultural e econômico da sociedade, principalmente após o desenvolvimento da escrita, o homem foi se deparando com diversos problemas que, inclusive, colocaram em risco a própria existência de grupos, tribos e povos, a exemplo da insuficiência de alimentos.
Nessa situação, os segmentos societários existentes (grupos, tribos, etc.) começaram a perceber a necessidade de realizar acordos uns com os outros, situação que deu azo ao início de trocas de produtos que se revelaram úteis à sobrevivência e satisfação de suas necessidades, prática que, com o tempo, transformou-se em costume, que evoluiu para a formação de alianças, bem como para o estabelecimentos de negócios posteriormente denominados de contratos.
Vale citar que na antiga Mesopotâmia foram encontradas frases registradas em argila que denotavam a existência de uma espécie de “leis escritas” sobre relações civis, sendo algo muito primitivo e superficial, mas que sobressai a idéia de que os povos antigos já sentiam a necessidade registrar por escrito os acordos estabelecidos à época no sentido de conferir-lhes a devida segurança.
Flávia Lages de Castro aborda a importância dos povos da antiguidade para a introdução dos conceitos jurídicos na sociedade, bem como para a compreensão dos elementos gerais inerentes ao contratos, ainda que verbais, como se vê do fragmento abaixo:
Essa riqueza pode ser comprovada pelo fato de as sociedades, ao se utilizarem pela primeira vez da escrita (e do direito escrito), já terem instituições que dependem muito de conceitos jurídicos, como casamento, poder paternal ou maternal, propriedade, contratos (ainda que verbais), hierarquia no poder público etc. (CASTRO, 2021. p. 16).
A evolução histórica dos contratos passa necessariamente pelo conhecimento de como seus elementos eram regulados pelo Direito Romano. Roma adotou em seu ordenamento jurídico um procedimento denominado de “fórmula” que deveria ser seguido para que as relações acordadas entre pessoas tivesse a proteção estatal.
De Plácido e Silva expõe que no Direito Romano existia as “fórmulas para as ações” que eram denominadas “legis actiones que deveriam ser escrupulosamente seguidas, para a validade de todos os atos processuais praticados” (SILVA, 2008, p. 635).
O Direito Romano foi o princípio da discussão e a sistematização do instituto contratual, todavia possuía um caráter eminentemente de vinculação pessoal, uma vez que, à época, tal instituto vinculava e submetia o devedor ao credor, sendo vedado atitudes dolosas pelas partes que pudessem dificultar ou interromper a execução das avenças.
A honra era, portanto, um cunho sagrado dos negócios pactuados e tida como um importante pilar na formação dos contratos no Direito Romano, bem como base para todas as normas jurídicas, sendo inaceitável qualquer comportamento que fosse doloso ao contrato. (MARTINS, 2004, p. 32). Assim, a observância de preceitos religiosos e da honra equivaliam à prática da boa-fé e desempenhavam um forte papel na elaboração e efetivação dos negócios jurídicos, sendo princípios norteadores da satisfação das obrigações pactuadas,
Nessa circunstâncias, a boa-fé já era levada em consideração na formalização contratual, sobretudo porque as partes temiam descumprir o combinado, pois poderiam provocar a ira divina e serem castigadas por “má-fé”, a considerar que as penalidades aplicadas envolviam atingir tanto o corpo quanto as propriedades dos contratantes.
Vale enfatizar que no Direito Romano a propriedade possuía caráter exclusivo. Contudo, como a família era o centro na sociedade, os bens adquiridos por um indivíduo era do grupo qual a ele pertencia, conforme aborda Augusto Teizen Júnior. (TEIZEN, 2004, p. 42).
Para contextualizar o contrato no âmbito do Direito Romano, importante bem realçar o sentido dos termos “convenção” e “pacto” que, segundo artigo publicado na internet por Cesar Baldon, ambas as figuras são sinônimas, porquanto designam um acordo de vontade entre duas pessoas, mas, ao contrário dos contratos, não geram efeitos jurídicos para as partes, de acordo com as seguintes palavras:
Neste diapasão, verifica-se que no Direito Romano os conceitos de pacto/convenção e contrato se diferenciam, pois somente neste último temos a presença de um elemento objetivo, em regra a observância de alguma formalidade, que faz nascer a obrigação. Nos afastamos, aqui, do conceito moderno de contrato, no qual todo acordo de vontade lícito, ainda que não se encaixe em um dos modelos apresentados na legislação como contratos, a este se assemelha, podendo produzir efeitos jurídicos de natureza obrigacional. (Baldon, Obrigações e Contratos no Direito Romano, 2010)
Conclui Baldon, que em Roma o contrato representa o mesmo que a convenção tornada obrigatória mediante a utilização da forma que a acompanha, gerando obrigações recíprocas aos contratantes, um vinculum juris entre as partes. (BALDON, 2012. np).
O Direito Romano, aliado aos preceitos do Direito Canônico, de um lado exerceram forte influência na seara do Direito Medieval, mas, de outro lado, em razão do expressivo desenvolvimento do comércio durante a idade média, o excessivo formalismo romano tornou-se obstáculos para o estabelecimento de contratos, conforme relata Enzo Roppo:
Com o crescimento da economia mercantil esse formalismo contratual passou a ser um entrave para as contratações, que pretendiam ser cada vez mais rápidas. Tornou-se, assim, comum, no instrumento contratual, constar que as fórmulas foram cumpridas, mesmo que, na prática, não fossem realizadas. Além disso, era comum, ao se celebrar um contrato, fazer um juramento com motivos religiosos para dar força àquele contrato. (ROPPO, 2009, n.p.).
Assim, conforme dito acima, por conta da forte influência da religiosidade na evolução contratual, os dogmas do Direito Canônico exerciam importante instrumento de coação para a efetiva observância dos contratos. Isto porque na época medieval a obrigação gerada pelos contratos possuía um sentido quase espiritual e, sob essa perspectiva, o descumprimento contratual era tido como uma mentira, assemelhando-se ao cometimento de um pecado.
A propósito, Caio Mário da Silva Pereira leciona que foi apenas na Idade Média que ocorreu a consolidação do princípio do pacta sunt servanda (Apud Fachini, Projuris, 2022), cuja locução significa que “os pactos devem ser observados” (DINIZ, 2010, p. 437). Essa regra se tornou clássica no âmbito da teoria dos contratos e passou a representar a “força obrigatória dos contratos”, segundo a qual se as partes voluntariamente se submetem a determinadas regras por eles própios criadas, haverá a obrigatoriedade que elas sejam cumpridas.
O Direito Romano englobava como contratos todos os atos voluntários que geravam uma obrigação, tanto os atos bilaterais quanto os unilaterais, situação que foi mudando com o passar do tempo, uma vez que a doutrina e as legislações passaram a considerar como princípio essencial ao contrato o acordo bilateral, de mútuo consenso, excluindo, desse modo, a possibilidade de ato unilateral. (FARIAS & ROSENVALD, 2013, p. 53).
Importante registrar a contribuição que o Código Napoleônico de 1804 proporcionou para a evolução do instituto do contrato, uma vez que fortaleceu a liberdade de contratar e facilitou a transferência da propriedade, questão que foi um dos pilares da Revolução Francesa. Saliente-se, todavia, que a liberdade contratual fez surgir contratos impessoais e padronizados o que interferiu diretamente no princípio da vontade das partes, tendo sido, necessário, portanto, a intervenção do Estado, a fim de resguardar a ordem pública.
Segundo Paulo Luís Netto Lôbo, “O interesse individual era valor supremo, apenas admitindo-se limites negativos gerais de ordem pública e bons costumes, não cabendo ao Estado e ao direito, considerações de justiça social”. (LÔBO, 2002, n.p.).
Thomas Hobbes em sua obra Leviatã (HOBBES, 1651,n.p), já abordava os contratos como um garantidor de direitos na realização de negócios, caracterizando como um instrumento que tem como objetivo regulamentar a transferência mútua de direitos e deveres.
Regra geral, o entendimento doutrinário majoritário advoga que o instituto contratual, em um todo, é fruto tanto do jusnaturalismo, pois o indivíduo determinava sua conduta pelo grupo em que estava inserido, quanto do capitalismo quando a pessoa passou a manifestar sua vontade com mais liberdade, sendo o contrato um dos instrumentos jurídicos utilizados para fazer valer essa vontade.
Todavia, oportuno citar o entendimento esposado por GAGLIANO & FILHO de que várias escolas doutrinárias contribuíram cada qual a seu modo e tempo para a evolução e aperfeiçoamento do contrato, de acordo com o seguinte fragmento:
Diríamos, portanto, sem pretendermos estabelecer um preciso período de surgimento do fenômeno contratual — o que nunca faríamos sob pena de incorrermos em indesejável presunção intelectual — que cada sociedade, juridicamente producente, cada Escola doutrinária — desde os canonistas, passando pelos positivistas e jusnaturalistas — contribuíram, ao seu modo, para o aperfeiçoamento do conceito jurídico do contrato e de suas figuras típicas." (GAGLIANO & FILHO, 2022, p.52)
Sem embargo de toda evolução pela qual passou o contrato, como à frente se verá, atualmente é assente o entendimento de que a autonomia da vontade na liberdade de contratar deve atender uma função social mormente no sentido de ter um papel de utilidade em prol das partes e atender ao bem comum e social.
Nesse diapasão é o entendimento de Barbara Nery que, citando Caio Mario da Silva Pereira, afirma que a limitação à autonomia das partes de livremente ajustarem o contrato visa preservar a sociedade no qual o contrato é firmado, acrescentando que
A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório. (NERY, 2014, online).
1.4 Constitucionalização do Direito Civil
1.4.1 Evolução
Antes da edição do Código Civil de 1916 a normatização civilista no Brasil foi regulada especialmente pelas Ordenações Filipinas, de 1603, que vigorou até 31 de dezembro de 1916, sendo digno de registro a importância da edição da Lei da Boa Razão, em 1769, cujo principal objeto foi o de “redefinir as fontes do direito, fixando os limites de aplicação subsidiária do direito romano em Portugal”. (LIMA, 2018, online).
Após independência do Brasil, no intuito de evitar o vácuo legislativo no ordenamento jurídico do País, foi aprovada a Lei de 20 de outubro de 1823, que determinava a permanência da legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821. Esse ato legislativo foi um dos principais responsáveis pela aplicação, até o ano de 1916, das normas lusitanas em solo brasileiro, a exemplo das Ordenações Filipinas (MARCELO SIMPLÍCIO & JARBAS AVELINO, 2020, n.p).
Sobre o tema, Moreira Alves, (idem) teceu as seguintes considerações:
Foi em virtude de a mencionada Lei de 20 de outubro de 1823 haver estabelecido que permanecia vigente a legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821, que não se aplicaram ao Brasil as reformas que o liberalismo, a partir do começo da década de vinte passou a introduzir em Portugal, movido, principalmente, pelos novos preceitos das legislações estrangeiras que começavam a multiplicar-se e que eram diversos da tradição romana do direto lusitano. De outra parte, a intensidade da influência das ideias que tinham seu nascedouro na Revolução Francesa era muito maior num país como Portugal, vizinho de suas fontes, do que no Brasil, apartado delas pela distância de um oceano, e absorvido pelos problemas graves da consolidação de sua independência. (ALVES, 1870, n.p).
Joseane da Silva, citando Sá Vianna, faz referência ao relevante trabalho realizado pelo jurista Augusto Teixeira de Freitas atualmente considerando um dos maiores responsáveis pela “consolidação das diversas normas que compunham o arcabouço civil brasileiro, sendo também o autor da proposta de um código que regeria as relações jurídicas entre os sujeitos” (SILVA, 2017, n.p).
Assim, o primeiro Código Civil brasileiro foi promulgado apenas em 1916, tendo por base o projeto escrito pelo jurista cearense Clóvis Beviláqua, diploma legal que passou a disciplinar os elementos norteadores das relações contratuais.
Na época vigorava a Constituição Federal de 1891, que não abordava assuntos inerentes às relações civis, máxime quanto às relações contratuais, uma vez que a Constituição de então possuía o papel de regular normas de Direito Público, sendo que relações civis eram disciplinadas no seio do Direito privado.
E o Legislador do Código Civil da época adotou um sistema fechado e individualista para a operacionalização das normas do instrumento contratual, não levando em consideração fatores sociais envolvidos na sistematização de um negócio jurídico.
Com a evolução proporcionada pelo desenvolvimento industrial, resultando no crescimento econômico, o Estado passou a intervir nas relações civis, cujos efeitos também tiveram o condão de interferirem nas relações contratuais, sobretudo na década de 1930, oportunidade quem foram editadas leis com caráter regulador e de promoção a um equilíbrio entre os contratantes.
Importante inovação se deu no texto da Constituição de 1946 constante do art. 147, segundo o qual “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social” e que a lei poderá “promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.
Segundo doutrinadores, o referido princípio constitucional fundado em aspectos da função social passou a partir de então a ser um norteador, um vetor programático que, conforme relatado alhures, passou a ser aplicado também às relações contratuais. Nesse sentido é a abordagem realizada por Caio Mário da Silva Pereira:
Em fórmula genérica, enunciou o art. 147 da Constituição Federal de 1946 que o uso da propriedade será condicionado ao bem estar social, e que a lei, sem quebra pelo respeito ao direito do proprietário, deverá promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. Aí está uma preceituação programática e teórica, porém definidora de uma tendência (NERY, 2019, p. 105).
Sob esse contexto, a função social passou a ser parte integrante do uso da propriedade, mantendo-se nos textos da Constitucional de 1967 (art. 157) e da Emenda Constitucional de 1969 (art. 160), princípio que passou a ser deduzido como também aplicável à teoria dos contratos.
Com a promulgação da Constituição de 1988, a função social da propriedade foi ampliada relativamente à sua aplicação, de maneira que passou a abranger os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (art. 5º, XXIII), sendo balizadora da “Política Econômica” (art. 170, III, art. 173, § 1º, I); “da Política Urbana” (art. 182, § 2º) e da “Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária” (art. 184, caput, art. 185, parágrafo único, art. 186).
1.4.2 A Constituição Federal como norma fundamental
A Constituição Federal, por se encontrar em patamar hierárquico superior em relação às demais normas que integram o ordenamento jurídico nacional, por consectário lógico ostenta a qualidade de ser a lei fundamental que confere validade a todo o sistema jurídico de um Estado, consoante o ensinamento de Hans Kelsen. (Apud, SOUSA, 2010, p. 71).
Nesse cenário, em tema de constitucionalização do Direito Civil não há como deixar de referir ao pensamento desse jurista austríaco relativamente à sua doutrina de escalonamento das normas jurídicas, segundo o qual uma lei de hierarquia inferior busca o seu fundamento em outra de hierarquia superior e mediante essa busca ascendente, vai-se procurando alcançar fundamentos de validade em graus superiores até chegar à Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional.
Nesse sentido, confira-se fragmento do pensamento de Kelsen (Apud Sousa, idem):
Como uma norma jurídica é válida por ser criada de um modo determinado por outra norma jurídica, esta é o fundamento de validade daquela. (...) A norma que determina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa regulamentação é a inferior. (...) A unidade dessas normas é constituída pelo fato de que a criação de uma norma – a inferior – é determinada por outra – a superior – cuja criação é determinada por outra ainda mais superior, e que esses regressus é finalizado por uma norma fundamental, a mais superior, que, sendo o fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira, constitui sua unidade. (...) A estrutura hierárquica da ordem jurídica de um Estado é, grosso modo, a seguinte: pressupondo-se a norma fundamental, a constituição é o nível mais alto dentro do Direito nacional. (grifos do autor). (Apud Sousa, 2010, p. 70).
Concordando com Kelsen, José Afonso da Silva advoga que a Constituição, no sentido “jurídico-positivo”, configura-se como a norma positiva suprema que disciplina a criação de outras normas, sendo a lei nacional de mais alto grau. Já no sentido “lógico-jurídico”, significa “norma jurídica fundamental hipotética”, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental de validade da constituição jurídico-positiva (Apud Sousa, 2010, p. 71).
Nessa linha, Silva salienta que (Apud Sousa, idem):
(...) a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e na organização de seus órgãos (...). Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado Brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental.(Apud Sousa, 2010, p. 71).
Portanto, a Constituição Federal é o fundamento de validade de toda a legislação infraconstitucional de onde deve originar a criação e sobretudo a interpretação a normas jurídicas. Desse modo, o Código Civil deve ser aplicado de acordo com os fundamentos constantes na Carta Magna, devendo nela espelhar toda e qualquer norma civil, principalmente as que se referem ao instituto contratual.
1.4.3 O contrato na Constituição Federal
Conforme exposto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o contrato passa a ostentar, além da histórica configuração meramente jurídica, também um viés nitidamente de caráter social, ou seja, passou não apenas a promover o anterior papel de efetivar a vontade das partes, mas, prospectivamente, também o de agregar os efeitos de função social no âmbito das relações entre as partes.
Nesse contexto, os interesses individuais passaram a ceder espaço em situações de prevalência dos interesses coletivos, diretriz que foi concretizada pelo Legislador no Código Civil de 2002 por meio do artigo 421, que aborda o princípio da função social do contrato, nos termos abaixo:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional. (BRASIL, 2002).
Neste sentido é o entendimento do professor Carlos Roberto Gonçalves:
O Código Civil de 2002 tornou explícito que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade (arts. 421 e 422)." (GONÇALVES, 2018, p.14).
De acordo com o acima consignado, a função social inserida no ordenamento jurídico pátrio revelou-se para os negócios jurídicos como um fator marcante e inovador, ostentando-se como importante qualidade paradigmática para a revolução do Direito e da legislação, tendo afirmado Gonçalves, referindo-se ao Código Civil, que “o sentido social é uma das características mais marcantes do novo diploma” (GONÇALVES,2019. p.24).
De fato, a constitucionalização da função social da propriedade a partir da Carta de 1946, como acima exposto, superou o foco eminentemente patrimonialista que por séculos imperou nas normas das relações civis, inclusive sendo relativizada também pelo princípio da dignidade da pessoa humana previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, de acordo com o seguinte entendimento de Teizem:
Esta constitucionalização do direito civil, bem como de outros ramos do direito, se justifica diante das exigências da unidade do sistema (...) tem como fundamentos a superação da lógica patrimonial (proprietária, produtivista, empresarial) pelos valores da pessoa humana, porque privilegiados pela Constituição. (TEIZEN, 2004. p.81).
De modo geral, os negócios jurídicos devem ser guiados pela boa-fé e os princípios sociais e o não abuso de direitos de uma parte sobre a outra. O estado democráticos de direito contribuiu de forma importante para a evolução histórica das relações contratuais. Como instituição legal, o Estado deve proteger e promover a dignidade humana na sociedade e assim regulamentar e fiscalizar as relações contratuais.
Portanto, atualmente os contratos devem ser concretizados tendo por norte as diretrizes constantes da Constituição Federal, sobretudo em relação à função social, que restou derivada da aplicação desse princípio sobre os preceitos da propriedade, aliados ao princípio da dignidade da pessoa humana, que figura como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
1.4.4 Código Civil e Direito do Consumidor
A Constituição Federal preceitua na parte destinada aos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, art. 5º, XXXII, que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, diretriz que foi concretizada na seara infraconstitucional pela edição da Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990, que “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”, denominado de Código de Defesa do Consumidor.
Por ocasião da entrada em vigor do referido Código, engendrou-se o entendimento de que na relação jurídica de consumo não seria possível a aplicação concomitante do Código Civil, sobretudo por conta do Código Civil anterior que possuía um caráter eminentemente patrimonialista.
Entretanto, afirma Tartuce que, com base na teoria denominada diálogo das fontes, deve-se entender que os dois sistemas normativos não são excludentes, mas, ao contrário, muitas vezes se complementam. (TARTUCE, 2014, p. 35).
Tartuce informa que tal teoria foi trazida para o Brasil por Claudia Lima Marques, a partir dos ensinamentos que lhe foram transmitidos por Erik Jayme, professor da Universidade de Heidelberg, Alemanha, sendo que a autora explica essa tese nas seguintes palavras:
Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito
seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de ‘le retour des sentiments’, sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (‘Zersplieterung’), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o ‘double coding’, e onde os valores são muitas vezes antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao tratamento diferenciado aos privilégios dos ‘espaços de excelência (...) (TARTUCE, 2014, p. 35).
E de fato, o ordenamento jurídico brasileiro abraçou os fundamentos da teoria do diálogo das fontes ao fazer a interação entre os princípios do Código Civil e o CDC, conforme se visualiza ao longo de toda a explanação deste trabalho.