Era o ano de 1993 quando subi o primeiro andar de uma escola pública em Aracaju, Sergipe, carregando minha pesada máquina elétrica IBM com duas esferas intercambiáveis e um corretor ortográfico de fita.
Tratava-se da segunda fase da prova de concurso público para o cargo de Técnico Processual do Ministério Público Federal.
Chegado o horário designado, o fiscal de sala autorizou que todos virassem o texto entregue previamente e iniciassem a prova. A única máquina elétrica no recinto era a minha. De repente, ouvi vários zunidos como se houvesse um tiroteio ou uma bateria de infantaria dentro daquela sala de aula e fiquei paralisado. A prova, com as famosas maquinas manuais, as infalíveis cavalo-de-pau, pareceria uma trincheira da primeira guerra mundial. Respirei profundamente. Iniciei a digitar meu texto, como que imaginando se tratar de um ensaio de uma ópera wagneriana. Digitei quase todo o texto objeto do exame. Dias depois, soube que havia logrado primeiro lugar no teste.
Tomando posse, cuidava dos fichários, digitava na máquina de escrever os pareceres manuscritos dos Procuradores, expedia ofícios, memorandos, tirava fotocópias, buscava autos físicos na justiça federal e postava inúmeras cartas nos Correios.
Tudo mudou.
Chegou a época em que o armazenamento de dados não se encontra mais no fichário, mas na nuvem.
A capacidade de armazenamento não só cresceu exponencialmente, como teve seu custo muito reduzido. O volume de dados, de imagens, de informações e de conhecimento produzidos, incluídos artigos escritos, processos digitais, fotos e vídeos compartilhados, filmes e séries, fluxos de transações comerciais, que outrora se davam por papel, hoje circulam virtualmente em rede de forma ubíqua (SIEBEL, 2021).
É óbvio que esse imenso volume de informações, que hoje a administração pública tem condições de armazenar bem como essa quantidade enorme de conhecimento e dados armazenados (Big Data), e passíveis de serem compartilhados, somente adentraram à cadeia de valor em função do barateamento do custo do armazenamento, dos processadores modernos ultravelozes e da ampla conexão em rede, seja por fibra óptica ou pelas tecnologias 3G, 4G e agora a potente 5G.
Nesse caldo de cultura, ou melhor, de tecnologia, a Inteligência Artificial (IA), depois de praticamente dois invernos desde sua história inicial, as “AI winters”, passa a ser a alavanca no mundo dos negócios e no mundo governamental (BURGESS, 2018).
Em relação à Administração Pública, é indubitável que o estado armazena milhares de dados, informações, imagens, vídeos, estatísticas, operações do sistema financeiro, cadastros de cidadãos, endereços vinculados ao CPF, informações sobre produção industrial, operações decorrentes da supervisão de sistema elétrico, aeroviário, aquaviário, sem adentrar-se à questão das forças militares (TAULLI, 2019).
Logo, um dos pilares para se fazer uso da IA, os Big Data, os governos já possuem. Processadores eficientes e modernos também são adquiridos todos os anos pelos diversos órgãos. O armazenamento em nuvem, seja pública ou privada, ou mesmo numa nuvem híbrida (SIEBEL, 2021), em razão de segurança da informação e da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, também estão assegurados.
Na medida em que passamos da fase em que a máquina aprende a fazer algo, para um estágio das redes neurais, na qual o computador passa a filtrar informações de uma forma similar ao cérebro humano, aprendendo a aprender, podendo tomar decisões diante da vultosa quantidade de dados a ela disponibilizados, surgem questões éticas e culturais a serem estudadas e analisadas (DUAN; EDWARDS; DWIVEDI, 2019).
Novos servidores serão contratados, porém muitos outros necessitarão de um atendimento especializado do estado para se reciclarem, pois no serviço público não podem ser demitidos pelo fato de desconhecerem uma tecnologia tão nova que sequer fora cobrada em seu concurso (SIEBEL, 2021).
As oportunidades são inúmeras hoje na Administração Pública, por exemplo, com a utilização de Big Data e IA para dispensar prova de vida presencial de servidores do INSS, pagar benefícios assistenciais a quem realmente necessita, dentre outros exemplos de sucesso, que num modelo de administração pública contemporânea vai se consolidando.
Muitas outras oportunidades hão de vir e o investimento nessa transformação digital é indispensável, sob pena de as organizações serem ultrapassadas ou extintas (SIEBEL, 2021). No momento, iniciativas como o acesso a todos os processos administrativos do governo federal inteiramente via internet para os interessados, que já é uma realidade, são de fato e de direito um mecanismo de legitimidade do governo perante os cidadãos (CAVALCANTE, 2017).
Essa seria a face da prestação de serviços digitais, a mais importante de todas. Entretanto, a quantidade infindável de dados, devidamente processados, com o uso e o aprimoramento da Inteligência Artificial, pode ajudar o Estado a prever falhas nos equipamentos dos serviços públicos, gerando economia, pode também detectar fraudes em benefícios previdenciários, incrementar a arrecadação de impostos, combater a lavagem de dinheiro supervisionando operações atípicas e prevenir crimes contra crianças praticadas via internet (SIEBEL, 2021).
Na Era dos Dados e da Inteligência Artificial, o Estado brasileiro precisa tomar a frente, pois a governança pública sobre uma eficiente e participativa gestão digital, seria a pedra de toque da atividade responsiva do governo para cocriar soluções aos problemas prementes das sociedades complexas como é a sociedade brasileira.
No conceito desta governança pública, são exercitadas as qualidades e as capacidades institucionais, baseadas na liderança e nas competências, como, por exemplo, numa maior prontidão para atuar quando necessário, entregando o melhor serviço público possível (MARTINS; MARINI, 2014). Isto passa pela reflexão da importância da participação social nos conselhos e órgãos que pensam as políticas públicas, que nos últimos anos sofreram bastante retrocessos.
Essa a capacidade de agregar aos desenhos institucionais oficiais. com a coparticipação de agentes de mercado e organizações civis, num modelo de gestão pública participativa, os recursos da Inteligência Artificial e do Big Data, provavelmente fará com que o Brasil não fique à margem do desenvolvimento tecnológico mundial, reforçando o caráter responsivo das políticas públicas, retornando benefícios aos contribuintes.
Referências
BURGESS, A The Executive Guide to Artificial Intelligence , 2018. https://doi.org/10.1007/978-3-319-63820-1_2, pp 11-27.
DUAN, Y; EDWARDS, J.S.; DWIVEDI, Y. K. Artificial inteligence for decision making in the era of Big Data – evolution, challenges and research agenda . In International Journal of Information Manaement. Disponível em www.elsevier.com/locate/ijinfomgt, n. 48, 2019, pp 63-71.
CAVALCANTE, Pedro. Gestão Pública Contemporânea: Do Movimento Gerencialista ao Pós-NPM. Brasília Livraria Ipea, 2017
MARTINS, H.F.; MARINI, C. Governança Pública Contemporânea: uma tentativa de dissecação conceitual. In Revista do TCU Artigos, maio/ago 2014, pp 42-53.
SIEBEL, Thomas M. Transformação Digital, Como Sobreviver e Prosperar em uma Era de Extinção em Massa. Rio de Janeiro. Alta Books Editora, 2021.
TAULLI, T. Data, The Fuel for AI, chapter 2, in Artificial Intelligence Basics, https://doi.org/10.1007/978-I-4842-028-0_2, pp. 19-38.