IV. Controle difuso e controle concentrado no Brasil
A competência do Senado Federal estabelecida pelo art. 52, X da Constituição, para além de se materializar no exercício de uma atribuição do poder constituinte originário, deixa-se refletir, ainda, quando da contextualização de seu lugar constitucional. Espaço de representação política da Federação, ao Senado Federal foi atribuída a competência do art. 52, X da CF porque, racionalmente, somente a um organismo da Federação é que poderia recair a autoridade para suspensão de instrumentos normativos, por exemplo, oriundos de outros entes da Federação, como Estados, Distrito Federal ou Municípios, em razão, especialmente, da amplamente solidificada sistemática de controle da constitucionalidade a inadmitir controle concentrado de espécie normativa municipal diretamente no Supremo Tribunal. Tem-se, então, uma dupla acepção de democracia: a que parte do controle reflexo do povo na eleição de representantes dos entes federados e o trato e o equilíbrio necessários à harmonização do sistema federativo brasileiro.
Como se trata de uma das Casas do Poder Legislativo, o Senado Federal não teria como estar vinculado ao entendimento do Supremo Tribunal, o que também é pacificamente aceito pelo próprio STF. Porém, se o Senado Federal decidir pela suspensão, deverá fazê-lo, nos termos do entendimento esboçado pelo STF, a fim de preservar a autoridade dos julgados deste último. Tem-se aqui, do ponto de vista da idealidade, um sistema de controle bem formulado e, do ponto de vista do realismo, que não tem sido a fonte de martírios para a Constituição da República.
Assim, não parece prosperar o entendimento do Sr. Min. Relator a respeito da evolução das formas e métodos de controle da constitucionalidade, quando recorre especificamente à interpretação conforme a constituição (verfassunsgskonforme Auslegung) ou a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung). O problema afigura-se mais complexo.
Com efeito, declarar a inconstitucionalidade não pode ter os mesmos efeitos que não declarar a inconstitucionalidade (embora esse equívoco tenha sido cometido pelo legislador brasileiro, ao conceder efeitos "cruzados" nas ADIs e ADCs). Isto é, é preciso ter claro que nem mesmo nos sistemas constitucionais que podem ser considerados como "consolidados" como Espanha e Portugal, a afirmação da constitucionalidade (ou, se se quiser, a não pronúncia de inconstitucionalidade) tem efeito vinculante (não esqueçamos, aqui, que a interpretação conforme é uma forma de "afirmação da constitucionalidade" – veja-se, nesse sentido, a opinião de autores como J. J.Gomes Canotilho [09] e Jorge Miranda [10] sobre os efeitos da interpretação conforme a Constituição. Dito de outro modo, eis aqui uma diferença fundamental entre as decisões que acolhem a inconstitucionalidade e as que a desacolhem: as primeiras fazem coisa julgada material; as segundas têm força meramente de coisa julgada formal, não impedindo sequer que o mesmo requerente solicite novamente a apreciação da inconstitucionalidade da norma anteriormente "declarada" (sic) constitucional. Duas razões podem ser elencadas em favor dessa tese, a partir das lições de Rui Medeiros, Miguel Galvão Teles, Ferreira de Almeida e Garcia de Enterría: primeiro, a eficácia geral da declaração de constitucionalidade impediria que, por uma evolução da interpretação das regras constitucionais, resultante da transformação das circunstâncias e das concepções e porventura da própria alteração da mentalidade do tribunal, repusesse-se o problema da validade de normas já anteriormente apreciadas. Ou seja, se tribunal constitucional pudesse declarar a conformidade da norma com a Constituição, estaria a tornar estáticos e rígidos normativos abertos à variação do devir e cujas previsões e estatuições adequam-se ou "desadequam-se" com a mudança natural das coisas. A atribuição de força obrigatória geral à declaração de constitucionalidade dificultaria assim uma interpretação constitucional evolutiva – capaz de adaptar o texto da Constituição às situações históricas mutáveis e susceptível de atender a toda a riqueza inventiva da casuística. O segundo argumento, que não pode ser superado por via dos limites objetivos (identidade da causa de pedir) e temporais do caso julgado (cláusula rebus sic stantibus) – a atribuição de eficácia erga omnes à decisão de rejeição de inconstitucionalidade conferiria ao tribunal – cujas decisões não podem ser corrigidas por nenhum outro órgão – o poder incontrolável de decidir infalivelmente sobre a constitucionalidade da lei, tornando-se um árbitro irresponsável da vida do Estado e dono, em vez de servo, da constituição. De forma contundente, Medeiros acrescenta um argumento avassalador: se a declaração de constitucionalidade tivesse força obrigatória geral, uma decisão do tribunal constitucional que concluísse erradamente pela conformidade à constituição de uma determinada norma envolveria, inevitavelmente, uma alteração da constituição, uma vez que a decisão teria o valor da norma constitucional que serviu de parâmetro e só poderia ser corrigida por emenda constitucional. A recusa de atribuição de eficácia erga omnes à decisão de não-inconstitucionalidade permite, pelo contrário, remediar, através de nova decisão, os possíveis erros precedentemente cometidos na apreciação da constitucionalidade pelo tribunal constitucional [11].
De todo modo – há que se reconhecer -, tais teses não vinga(ra)m em terrae brasilis. Isto porque, em nome de efetividades quantitativas, optou-se, por aqui, em conceder efeito vinculante a qualquer decisão sobre (in)constitucionalidade (e, agora, conforme a tendência do STF, também para decisões em controle difuso de constitucionalidade). Agregue-se que, na Alemanha – e a lembrança é de Helmut Simon - o próprio Tribunal Constitucional já rechaçou sua vinculação a posições prévias e rapidamente realizou alterações nos critérios de julgamento. O Tribunal foi muito criticado porque na sentença sobre o Grundlagenvertrag insistira em demasia a força vinculativa dos fundamentos jurídicos (BverfGE 36, 1 (36)). Especificamente com relação à interpretação conforme, há um acordo em relação a que unicamente pode ser vinculante o veredicto acerca de interpretações contrárias à Constituição (BverfGE 40, 88 (93 s.)), assim como a resolução do Pleno (BverfGE 54, 277). Tal interpretação compadece bem com a idéia dinâmica que deve ter uma Constituição, assim como o fato de que é tarefa do Bundesverfassungsgericht defender a Constituição e não se dedicar a canonizar suas posições de outro tempo. Uma idéia restritiva da força vinculante parece mais aconselhável que proibições constitucionais, que, em caso de erro, resultam dificilmente corrigíveis, além de que a simples ameaça de que se vá buscar guarida junto ao tribunal constitucional gera reações antecipadas de preparação de novos projetos de lei. [12]
Portanto – e isso se afigura como extremamente relevante - também poderíamos questionar até mesmo o fato de a interpretação conforme a constituição ou a declaração parcial de inconstitucionalidade possuírem efeito vinculante e eficácia erga omnes (embora a Lei 9.868/99 aponte em sentido contrário).
Já no caso de controle difuso de constitucionalidade – peculiaridade nossa e de Portugal - o próprio Supremo Tribunal sempre teve ciência (isto é, esteve concorde) de que não há a possibilidade de dar efeito erga omnes às decisões proferidas nessa modalidade, necessitando da intervenção do Senado Federal (afinal, embora o próprio Supremo Tribunal não estar cumprindo, de há muito, a determinação constante no art. 52, X, da CF). E, por fim, se se trata de súmula vinculante sabe-se que é despicienda qualquer participação do Senado Federal. Qual a razão de tais conclusões? A resposta parece simples: isto é assim em face das determinações que integram a Constituição Federal por decisão do poder constituinte originário e derivado.
Dizendo de outro modo, a argumentação constante do voto do Sr. Min. Relator de que o próprio Supremo Tribunal Federal optou pela dispensabilidade de se encaminhar ao Pleno da Corte decisão tomada por uma de suas Turmas sobre constitucionalidade/inconstitucionalidade, desde que já tenha ocorrido manifestação do Supremo Tribunal Federal no mesmo sentido, não pode ser comparada ao caso que se tem em exame. No caso, não se extrapola o limite de poder concedido pela Constituição. Não se invade esfera outra de poder.
Já para a situação que almeja a extensão dos efeitos de controle concentrado ao difuso, não há nada que autorize o Supremo Tribunal Federal a operar mencionada sistemática no texto de nossa Constituição, tampouco na tradição de nossa doutrina de controle da constitucionalidade. Portanto, o primeiro caso é aceitável porque se tem uma inovação produzida no âmbito de uma competência constitucionalmente delineada e já consolidada. No segundo – não somente pela razão de ser novo posicionamento – mas, fundamentalmente, por não encontrar respaldo autorizador constitucional expresso, exigência igualmente razoável em virtude de termos um sistema jurídico escrito, herdeiro da noção romano-germânica de direito. Ao contrário: o art. 52, X aponta em outro sentido.
Na verdade, há uma questão que se levanta como condição de possibilidade na discussão acerca da validade (e da força normativa) do art. 52,X, da Constituição do Brasil. Trata-se de uma questão paradigmática, uma vez que sua ratificação (o que vem sendo repetido pelo menos desde 1934), em uma Constituição dos tempos de Estado Democrático de Direito, dá-se exatamente pela exigência democrática de participação da sociedade no processo de decisão acerca da (in)constitucionalidade de uma lei produzida pela vontade geral.
Por isso, o art. 52,X é muito mais importante do que se tem pensado. Ele consubstancia um deslocamento do pólo de tensão do solipsismo das decisões do judiciário em direção da esfera pública de controle dessas decisões. Nesse aspecto, o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito deve ser compreendido no contexto da ruptura paradigmática ocorrida no campo da filosofia. Dito de outro modo, o direito não está imune ao pensamento que move o mundo. Mundo é mundo porque é mundo pensado. Conseqüentemente, a derrocada do esquema sujeito-objeto (ponto fulcral das reflexões das teorias democráticas que vão desde as teorias do discurso à hermenêutica) tem repercussão no novo modelo de Estado e de direito exsurgido a partir do segundo pós-guerra. O sujeito solipsista (Selbstsüchtiger) dá lugar à intersubjetividade. Veja-se o problema ocasionado pela prevalência do velho paradigma representacional (sujeito-objeto) nas diversas reformas no processo: cada vez mais se coloca o procedimento à disposição do pensamento "justo" do juiz, valendo, por todos, citar a assim denominada "instrumentalidade do processo" (por todos, Candido Dinamarco e José Bedaque). Cada vez que se pretende "processualizar mais o sistema", ocorre uma diminuição do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal. Ora, se o devido processo legal serve para preservar direitos, não é em nome dele que se pode fragilizar o próprio processo. Dia-a-dia, o sistema processual caminha para o esquecimento das singularidades dos casos. Trata-se, pois, de um novo princípio epocal. Na verdade, se o último princípio epocal da era das duas metafísicas foi a vontade do poder (Wille zur Macht), o novo princípio, forjado na era da técnica, acaba por se transformar no mecanismo que transforma o direito em uma mera racionalidade instrumental (lembremos, sempre e novamente, as escolas instrumentalistas...!). Manipulando o instrumento, tem-se o resultado. Ao final dessa "linha de produção", o direito é (será) aquilo que a vontade do poder quer que seja. Chega-se ao ápice da não democracia: o direito transformado em política. Não que direito e política estejam cindidos. Parece despiciendo qualquer comentário acerca dessa problemática (pensemos, por exemplo, na doutrina de Hans P. Schneider). O que ocorre é que a relação direito-política não pode criar/estabelecer uma contradição em si mesmo, ou seja, se o direito serve para controlar/garantir a democracia (e, portanto, a política), ele não pode ser a própria política.
V. O problema da mutação constitucional e os limites da jurisdição. Da alteração da norma de um texto para a alteração do próprio texto.
Finalmente, uma questão não pode ser olvidada. O século XX foi atravessado por duas grandes revoluções que dizem respeito diretamente ao direito e à filosofia, transformando-se em condições de possibilidade para a compreensão dos fenômenos jurídico-políticos ocorridos principalmente a partir do segundo pós-guerra.
De um lado, o constitucionalismo compromissório e principiológico com feições claramente diretivas (tese que continuamos a defender), firmando o compromisso do povo para com as transformações sociais historicamente sonegadas, circunstância que assume foros de dramaticidade em países de modernidade tardia como o Brasil. Isso significa que o compromisso primordial de uma constituição é a democracia e a realização dos direitos fundamentais (promessas da modernidade).
A segunda revolução copernicana é a superação do esquema sujeito-objeto, que proporciona o derrota das posturas subjetivistas-solipsistas. E parece não haver dúvida de que o Estado Democrático de Direito dá-se no entremeio dessa reviravolta lingüística. Na verdade, o linguistic turn não foi devidamente recepcionado no campo do direito brasileiro; melhor dizendo, a viravolta linguística foi mal compreendida pela tese da mutação constitucional. O direito – compreendido no interior dessa ruptura paradigmática – não pode ser entendido como espaço de livre atribuição de sentido; essa questão assume especial relevância quando se trata do texto constitucional. Ou seja, em determinadas situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário. E, com isso, soçobra a democracia. E este nos parece ser o ponto principal da discussão acerca dos votos proferidos na aludida Reclamação 4335-5.
Numa palavra, o processo histórico não pode, desse modo, delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mutação ou ultrapassagem, a Constituição do País (veja-se, nesse sentido, só para exemplificar e esse é o ponto da presente discussão -, o "destino" dado, em ambos os votos, ao art. 52,X, da Constituição do Brasil).
Paremos para pensar: uma súmula do Supremo Tribunal Federal, elaborada com oito votos (que é o quorum mínimo), pode alterar a Constituição. Para revogar essa súmula, se o próprio Supremo Tribunal Federal não o fizer, são necessários três quintos dos votos do Congresso Nacional, em votação bicameral e em dois turnos. Ao mesmo tempo, uma decisão em sede de controle de constitucionalidade difuso, proferida por seis votos, pode proceder a alterações na estrutura jurídica do país, ultrapassando-se a discussão acerca da tensão vigência e eficácia de uma lei.
Não se pode deixar de frisar, destarte, que a mutação constitucional apresenta um grave problema hermenêutico, no mínimo, assim como também de legitimidade da jurisdição constitucional.
Com efeito, a tese da mutação constitucional é compreendida mais uma vez como solução para um suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, a exigir uma "jurisprudência corretiva", tal como aquela a que falava Büllow, em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): uma jurisprudência corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito" (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constituição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas por uma suposta interpretação evolutiva. [13]
Essa tese foi formulada pela primeira vez em fins do século XIX e inícios do século XX por autores como Laband (Wandlungen der deutschen Reichsverfassung, Dresden, 1895) e Jellinek (Verfassungsänderung und Verfassungswandlung, Berlim, 1906), e mereceu mais tarde conhecidos desenvolvimentos por Hsü-Dau-Lin (Die Verfassungswandlung, Leipzig, 1932). Como bem afirmam os professores Artur J. Jacobson (New York) e Bernhard Schlink (Berlim), em sua obra Weimar: A Jurisprudence of crisis (Berkeley: University of Califórnia, 2000, p. 45-46), o dualismo metodológico positivismo legalista-positivismo sociológico que perpassa toda a obra de Jellinek Verfassungsänderung und Verfassungswandlung (Berlim, Häring, 1906) e que serve de base para a tese da mutação constitucional (Verfassungswandlung), impediu o jurista alemão de lidar normativamente com o reconhecimento daquelas que seriam "as influências das realidades sociais no Direito". A mutação constitucional é assim tida como fenômeno empírico e não é resolvido normativamente: "Jellinek não apresenta um substituto para o positivismo legalista, mas apenas tenta suplementá-lo com uma análise empírica ou descritiva dos processos político-sociais". [14]
Na verdade, o conceito de mutação constitucional mostra apenas a incapacidade do positivismo legalista da velha Staatsrechtslehre do Reich alemão de 1870 em lidar construtivamente com a profundidade de sua própria crise paradigmática. E não nos parece que esse fenômeno possui similaridade no Brasil. E mesmo em Hsü-Dau-Lin [15] (referido pelo Ministro Eros Grau) e sua classificação "quadripartite" do fenômeno da mutação constitucional [16] não leva em conta aquilo que é central para o pós-segunda guerra e em especial para a construção do Estado Democrático de Direito na atualidade: o caráter principiológico do direito e a exigência de integridade que este direito democrático expõe, muito embora, registre-se, Lin tenha sido discípulo de Rudolf Smend, um dos primeiros a falar em princípios e espécie de fundador da doutrina constitucional alemã pós-segunda guerra.
Em síntese, a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes. [17] Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode "inventar" o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia.
A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n.º 1, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo (sic) que "diz o que é a Constituição").
De uma perspectiva interna ao direito, e que visa a reforçar a normatividade da constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. [18] Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando.
Há, portanto, uma diferença de princípio entre legislação e jurisdição (Dworkin). O "dizer em concreto" significa a não submissão dos destinatários – os cidadãos - a conceitos abstratalizados. A Suprema Corte não legisla (muito embora as súmulas vinculantes, por exemplo, tenham adquirido explícito caráter normativo em terrae brasilis).
Ao pretender que caibam reclamações contra as suas teses e não contra as suas decisões proferidas em casos propriamente ditos (observe-se, estamos tratando do controle difuso, cuja ratio é o exame de casos concretos e questões prejudiciais), o Supremo Tribunal Federal desloca a discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begründungsdiskurs), elaborados de forma descontextualizada. Passam a ser "conceitos sem coisas". E isso é metafísica, para utilizarmos uma linguagem cara à hermenêutica de cariz filosófico.
Em outras palavras, a tese esgrimida pelo Ministro Gilmar Mendes reduz a discussão jurídica a questões de justificação da validade das normas. Ora, a discussão jurídica é sempre concreta e, confessemos, pela simples razão de que não somos metafísicos, não somos seres numenais: até mesmo quando se faz controle concentrado, há concretude. Afinal, há muito já se disse que a filosofia tem de descer dos céus para a terra, uma vez que os problemas estão cá em terra firme e não no mundo das idéias platônicas.
Registre-se, neste ponto, que até mesmo a sofisticada argumentação de cunho hermenêutico do Ministro Eros Grau perde terreno, mesmo que ele pretenda vê-la ancorada na dicotomia "texto e norma", assim como na repercussão dessa tese na decisão de "mutação constitucional". Ao que se depreende das assertivas do Min. Eros Grau, "tudo vira norma" e com pretensões universalizantes (podendo, na mutação constitucional, o próprio texto soçobrar, colocando-se em lugar deste não apenas uma nova norma, mas, sim, um novo texto, em face dos limites semânticos daquele texto que tinham que ser ultrapassados – nas suas palavras - era "obsoleto"). [19]
Os votos proferidos até agora adentram, assim, na discussão acerca do papel do direito e dos limites da "função corretiva" da jurisdição (em especial, da jurisdição constitucional). A interpretação da Constituição pode levar a que o STF produza (novos) textos, isto é, interpretações que, levadas aos limite, façam soçobrar os limites semânticos do texto no modo que ele vinha sendo entendido na (e pela) tradição (no sentido hermenêutico da palavra)?
Veja-se, nesse sentido, que o Ministro Eros Grau sustenta – e, com isso, concorda com o Ministro Gilmar –que cabe ao STF não apenas mudar a norma, "mas mudar o próprio texto constitucional" (o texto do inciso X do art. 52 foi, efetivamente, alterado). Veja-se: o Ministro Eros Grau se pergunta se o Ministro Gilmar Mendes, ao proceder a "mutação constitucional" não teria "excedido a moldura do texto, de sorte a exercer a criatividade própria à interpretação para além do que ao intérprete incumbe. Até que ponto o intérprete pode caminhar, para além do texto que o vincula? Onde termina o legítimo desdobramento do texto e passa ele, o texto, a ser subvertido?"
E ele mesmo reponde: "não houve qualquer anomalia de cunho interpretativo, pois o Ministro Gilmar teria apenas feito uma "autêntica mutação constitucional": "Note-se bem que S. Exa. não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe corresponde, porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro. Por isso aqui mencionamos a mutação da Constituição."
Ocorre que, ao mesmo tempo, o Min. Eros Grau admite que "a mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encontravam originariamente involucradas, em estado de potência", para, logo em seguida, acentuar que "há, então, mais do que interpretação, esta concebida como processo que opera a transformação de texto em norma. Na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro."
Por tudo isso, o Min. Eros Grau dirá que "pouco importa a circunstância de resultar estranha e peculiar, no novo texto, a competência conferida ao Senado Federal - competência privativa para cumprir um dever, o dever de publicação (=dever de dar publicidade) da decisão, do Supremo Tribunal Federal, de suspensão da execução da lei por ele declarada inconstitucional. Essa peculiaridade manifesta-se em razão da circunstância de cogitar-se, no caso, de uma situação de mutação constitucional".
Certo então, para o Ministro, que na mutação constitucional não apenas a norma é nova, mas o próprio texto normativo é substituído por outro. Entretanto, ele mesmo reconhece que "em casos como tais importa apurarmos se, ao ultrapassarmos os lindes do texto, permanecemos a falar a língua em que ele fora escrito, de sorte que, embora tendo sido objeto de mutação, sua tradição seja mantida e ele, o texto dela resultante, seja coerente com o todo, no seu contexto. Pois é certo que a unidade do contexto repousa em uma tradição que cumpre preservar. Recorro a Jean-Pierre Vernant para dizer que o novo texto, para ganhar sentido, deve ser ligado e confrontado aos demais textos no todo que a Constituição é, compondo um mesmo espaço semântico."
Entretanto, nossa leitura permite-nos entender que o Ministro Eros Grau reconhece, com apoio em Jean-Pierre Vernant, que sempre há que se indagar, quando se está frente a uma mutação constitucional, se o texto resultante da mutação mantém-se adequado à tradição (= à coerência) do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. A mutação não é uma degenerescência, senão uma manifestação de sanidade do ordenamento."
Entendemos que, nesse exato contexto, a pergunta que não foi respondida é: mas o que é a tradição? De que tradição se está falando? O que diz a tradição que consubstancia o texto e a norma do art. 52,X? Em que sentido a "substituição" do texto constitucional, efeito em nome de uma mutação, deixa o novo "texto" em harmonia com a tradição? Não é exatamente para mudar a tradição que se faz "mutação"? Mas, então, se se faz mutação para alterá-la, como lhe ser coerente e fiel? É nesse sentido que a posição de Vernant é tautológica, incorrendo em um paradoxo. E paradoxos são coisas sobre as quais não podemos decidir.
Mais ainda: se o texto "mutado" é obsoleto - como textualmente diz o Min. Eros Grau - como admitir que o Supremo Tribunal Federal "faça" outro, que confirme a tradição? De que modo se chega a conclusão de que "um texto constitucional é obsoleto"? E de que modo é possível afirmar que, "por ser obsoleto", o Supremo Tribunal Federal pode se substituir ao processo constituinte derivado, único que poderia substituir o texto "obsoleto"? A tradição não residiria exatamente no fato de termos adotado – e ratificado em 1988 – o sistema misto de controle de constitucionalidade? A tradição não estaria inserida na própria exigência de remessa ao Senado, buscando, assim, trazer para o debate - acerca da (in)validade de um texto normativo – o Poder Legislativo, único que pode tratar do âmbito da vigência, providência necessária para dar efeito erga omnes à decisão que julgou uma causa que não tinha uma tese, mas, sim, uma questão prejudicial?
Lembremos, de todo modo, que - embora esse não seja, nem de longe, o foco principal da tese do Min. Eros Grau - sempre se corre o risco, toda vez que se colocar demasiada ênfase nos discursos de validade, de aproximar o direito de determinadas teses realistas, reduzindo e enfraquecendo o papel da doutrina e das demais instâncias de formação do discurso jurídico, circunstância que nos faz ressaltar, aqui, por extrema justiça, o papel histórico do doutrinador e Professor Eros Roberto Grau na formação do discurso crítico sobre o direito em tempos duros sem constituição e que influenciou e influencia uma geração de juristas. Entretanto, tal problemática parece se insinuar, de certo modo, quando o Ministro acentua, em seu voto, que "o discurso da doutrina [=discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso."