Carlos Roberto Claro1
O presente ensaio visa a tratar de tema específico, muito sensível e importante, qual seja, a boa-fé objetiva do devedor que se vale - para fins de reestruturação empresarial -, dos termos da Lei 11.101/05. A investigação científica aqui levada a efeito objetiva a produção de conhecimento e a conclusão é apresentada, mais uma vez com honestidade científica2.
Algumas reflexões reputadas relevantes são apresentadas para se entender o resultado da disquisição. Antes, faz-se uma necessária introdução ao tema.
No Brasil e em vários países ainda são sentidos os significativos e profundos reflexos da crise sanitária mundial e o quadro econômico é preocupante, sem dúvida. Há entidades privadas mergulhadas em graves [talvez insolúveis] problemas financeiros e algumas nem sequer passaram pela reestruturação [sob uma de suas formas], sendo retiradas do mercado, ante a abertura judicial da falência, por sentença, ou mesmo simplesmente param de operar.
Destaque-se que nos grandes centros do país, várias entidades, inclusive tradicionais, simplesmente encerram suas atividades econômicas, porquanto não existe fôlego para o prosseguimento regular e mantença no mercado. Neste espaço não carece mergulhar a pena na tinta da ênfase, do realce, visando a discorrer a respeito dos efeitos deletérios da crise empresarial no Brasil.
Há de se não descuidar daqueles agentes econômicos que tentam, mesmo com evidente inviabilidade da atividade econômica, se reestruturar, via processo recuperatório, sendo que nem sempre reúnem todos os requisitos legais para ingressar na esfera judicial.
Mesmo assim, não raro, se valem de processos fadados ao insucesso, considerando a crise patrimonial evidente.
São vários, múltiplos, os fatores que determinam a crise empresarial, considerando-se inclusive as especificidades de cada agente e do próprio mercado onde atua.
A significativa desaceleração da economia, a efetiva retração do consumo, ausência de capital de giro e a falta de recursos financeiros no mercado competitivo [inclusive queda de lucratividade dos agentes econômicos privados] são fatores nítidos que vêm ocorrendo e acabam por contribuir de forma significativa para que “empresas”3 - sociedades empresárias, a bem de ver - desacelerem de forma significativa a produção, com a consequente diminuição de caixa, e se socorram do Poder Judiciário (algumas corporações buscam outras alternativas para a solução dos conflitos instaurados), visando o soerguimento, que, como dito, nem sempre ocorre.
Com efeito, a crise de uma entidade econômica4 pode [a bem de ver, invariavelmente se avultam problemas de entidades menores, fornecedoras de produtos e serviços, por exemplo, que dependem do cliente para continuar operando, em decorrência do descumprimento contratual deste, como sói ocorrer] espraiar efeitos em todo o contexto de mercado onde se situa.
O momento econômico nacional merece acurada reflexão, porquanto presentes os reflexos da pandemia.
A crise das grandes corporações pode resultar na crise nas menores entidades - a elas espraia efeitos -, no mercado e na própria sociedade organizada, em última palavra.
Não se olvide da solução de mercado para a crise, especialmente no que diz com a reestruturação empresarial [livre concorrência]5. É este mesmo mercado, em última análise, que estabelece as regras sobre quem deve continuar operando regularmente.
Tal aspecto não pode ser desconsiderado, levando-se em conta o atual estágio da acentuada globalização econômica e quiçá nova etapa da pós-modernidade6, considerando inclusive os significativos avanços tecnológicos.
Alguns desses agentes econômicos não conseguem permanecer em recuperação judicial - são totalmente inviáveis e se veem mergulhados em crise patrimonial - acabando por ser retirados do mercado7.
O processo recuperatório - que de certa forma tem um viés de proteção ao devedor, por assim dizer -, não raro, apenas retarda a sua retirada do livre mercado, via falência.
Os efeitos jurídicos, sociais, financeiros e econômicos dessa descontinuidade de operação são evidentes e não cabe tomar da pena para descrevê-los.
Por outro lado, se não pode deixar de avaliar os riscos sistêmicos, em decorrência da “quebra” de fortes e grandes agentes econômicos. Mais uma vez, não cabe gastar tinta para discorrer sobre o óbvio ululante.
Como resultado da crise econômico-financeira, pessoas jurídicas privadas buscam a tutela estatal, via regime recuperatório, com arrimo na Lei 11.101/05, visando [a tentativa de] o soerguimento, sendo que poucas conseguem o objetivo maior que é pagar o plano e voltar a operar de forma regular no mercado, conforme acentuado.
O ‘pós-pandemia’ vem demonstrando que os agentes econômicos privados mergulhados em crise econômico-financeira se seguraram até onde possível e as pendências [financeiras], então represadas ao longo de 2 ou 3 anos, vêm sendo colocadas aos credores, via processo de reestruturação judicial.
Dito de outro modo, as dívidas represadas a partir de março/2020 estão sendo expostas e objetivo é entrar na arena8 denominada de reestruturação.
Algumas pessoas jurídicas privadas já se encontram em indisfarçável insolvência [passivo maior que o ativo], crise patrimonial - com elevado grau de endividamento, irreversível -, sem condições de soerguimento, sendo inviáveis, de modo que o caminho mais correto a seguir é a abertura judicial da falência, até para evitar efeito multiplicador perante o mercado.
A retirada do devedor [em crise irremediável] do mercado evita efeito multiplicador e preserva outros agentes econômicos.
Outros agentes econômicos ainda reúnem os requisitos para a (tentativa de) superação da crise vivenciada, de modo que [em tese] se podem valer dos termos da Lei 11.101/05.
Dito de outra forma, tais agentes ainda têm certo fôlego (e esperança) para continuar operando no mercado, mesmo que de forma deficitária.
Às vezes, a abertura judicial da falência pode ser mais relevante e a melhor saída [inclusive para o próprio devedor], mais consentânea com a realidade, em vez de se manter entidade sob regime recuperatório, aumentando o passivo, inclusive fiscal e trabalhista quando se percebe que sua retirada do mercado é inevitável e já devia ter ocorrido9. Há clássicos exemplos no Brasil, a respeito dos quais não cabe discorrer.
Entrementes, mesmo aqueles que se veem em indisfarçável crise patrimonial se tentam valer da lei [via algum regime recuperatório] para mantença [forçada] no mercado competitivo, o que talvez seja evidente equívoco, porquanto a crise pode criar efeito multiplicador [crise sistêmica, levando outras entidades ao mesmo fim] e levar a sociedade empresária à falência.
De acordo com as palavras de Fábio Ulhoa Coelho:
Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a permanência de empresas insolventes inviáveis, opera-se uma inversão inaceitável: o risco da atividade empresarial transfere-se do empresário para os seus credores10
Não se olvide da lei estabelecida pelo mercado, que têm regras próprias ([previsibilidade, estabilidade, calculabilidade, constância e segurança jurídica], conforme clássica obra de Eros R. Grau)11.
Mas, passados 18 anos de edição da Lei 11.101/05, são poucas as entidades privadas que conseguiram, de forma efetiva, cumprir plano de reestruturação a tempo e modo corretos, e voltar a operar regularmente no mercado competitivo.
Aqui não há de se gastar tinta para descrever a realidade econômica do país, com notícias quase diárias acerca de notáveis entidades que, enfrentando crise, buscam o Poder Judiciário a fim de evitar a falência, mantendo-se no mercado.
Importa analisar, de forma criteriosa e técnica, a viabilidade da “empresa”, para que se tente [quanto possível] sua efetiva reestruturação.
Não obstante a recente alteração da Lei 11.101/05, resta bastante nítido que determinados aspectos dela constantes ainda hão de ser revistos pelo legislador, considerando especialmente o fato de que invariavelmente prevalecem, por lei, os direitos de determinados “credores” (sentido amplo do asserto) e terceiros, sobre os demais, nos regimes recuperacionais, por exemplo.
Para além do cumprimento da letra fria da lei, ou seja, observância estrita de todos os requisitos legais, visando a propor o regime recuperatório (arts. 48 e 51), se não descuidando de outros documentos que poderão ser exigidos pelo magistrado, bem como eventual determinação de perícia prévia pelo magistrado condutor do processo12, diagnóstico preliminar agora textualmente previsto em lei, o devedor há de estar imbuído de boa-fé objetiva.
Talvez este seja um dos aspectos mais relevantes do procedimento recuperatório, sendo que dele advém a segurança jurídica, necessária em todo e qualquer processo judicial.
É exatamente acerca da boa-fé objetiva do devedor em crise - no âmbito judicial, via regime recuperatório - que trata o presente ensaio13.
De início, o Código de Processo Civil apresenta importantes dispositivos a respeito do comportamento das partes e procuradores em juízo. Neste sentido, observem-se as regras contidas nos artigos 5º14, 77, 79, 80, incisos I, II e III. É de se colocar em maior degrau o princípio da colaboração de todos os sujeitos do processo (art. 6º), extensivo ao regime recuperatório e ao falimentar, salvo engano.
O disposto no art. 5º do CPC não é novo, porquanto existente ao tempo do CPC de 197315. Não se pode descuidar que importantíssima a mantença no texto de 2015.
Consoante ensinamento de Humberto Theodoro Júnior,
Consiste o princípio da boa-fé objetiva em exigir do agente que pratique o ato jurídico sempre pautado em valores acatados pelos costumes, identificados com a ideia de ‘lealdade’ e ‘lisura’. Com isso, confere-se segurança às relações jurídicas, permitindo-se aos respectivos sujeitos confiar nos seus efeitos programados e esperados16
Consoante ensinamento de Judith Martins-Costa, apresentado por Eduardo M. Baracat, em sua obra, a boa-fé objetiva se traduz em:
modelo de conduta social, arquétipo ou ‘standard’ jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajusta a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, propriedade’, devendo-se levar em conta , esclarece a autora, ‘os fatores concretos do caso concreto, tais como o ‘status’ pessoal e cultura dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do ‘standard’, de tipo meramente subjuntivo17
A boa-fé objetiva tem a ver com a ética18 e comportamento pautado pela lealdade e lisura no proceder, não apenas no plano do processo de reestruturação, mas como também fora dele.
Aliás, ensina José Affonso Dallegrave Neto que:
Em tempos de pós-modernidade, de niilismo e depreciação de valores superiores e morais, constata-se um verdadeiro ‘vazio ético’ em plano universal. Atualmente, o que se vê é tão-somente alguns arremedos de ‘éticas aplicadas e setoriais: bioética, ética na mídia, na política e na empresa19
Ora, se o plano de reestruturação judicial pode ser considerando um negócio jurídico formalizado entre devedor e universo de credores, um verdadeiro contrato [atípico, com características próprias e bem acentuadas], por assim dizer, então há de ter como norte os princípios contratuais elencados no Código Civil, dentre eles o da boa-fé objetiva.
Nessa esteira, importante destacar a regra do art. 422 do Código Civil, que assim estabelece:
Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé20
Alinhe-se a todos os aspectos apresentados a disposição do art. 6º do Código de Processo Civil, segundo a qual, todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva21.
Em primeiro lugar, a disposição legal é aplicável não somente ao regime falimentar, como também às recuperações.
Em segundo, planos de reestruturação judicial devidamente homologados, com sucessivas e intermináveis prorrogações e quiçá exagerado lapso temporal para cumprimento, [em tese] pode ir contra as disposições legais.
Em terceiro, o dever de cooperação é imposto a todos os agentes/sujeitos que estão no processo judicial, não apenas ao devedor, mas a credores e terceiros.
A participação em cooperação de todos os envolvidos no processo de reestruturação é salutar, importante e imprescindível para que haja encerramento em curto prazo de tempo.
Não apenas a prática de atos processuais válidos, revestidos de ética, lealdade e boa-fé objetiva, como também a própria possibilidade de os credores apresentarem plano de reestruturação [Lei 11.101/05, art. 56, §4º] implica no agir segundo os padrões estabelecidos pela lei.
Todos os participantes do processo [credor, devedor ou terceiro], haverão de cumprir os termos da lei, de forma ética e legal, sempre tendo como norte a boa-fé objetiva.
Resumindo, agora em conclusão, o processo de reestruturação exige um agir de boa-fé, ético, consoante regras de boa conduta. Exige, pois, uma verdadeira dialética, integradora e contributiva para o bem do regime recuperatório - efetiva implementação do plano de (tentativa) soerguimento -, com visão holística, voltada para a resolução da crise vivenciada pelo devedor, com seu retorno efetivo ao mercado competitivo.
Este devedor, que anela o soerguimento do agente econômico, há de agir segundo a boa-fé objetiva. Eventual agir de forma diversa é, sem dúvida, aguilhoar os termos da lei e os padrões éticos, que hão de ser observados pelos que atuam em juízo.
Aqui foram lançadas algumas breves reflexões acerca de importante tema, visando a contribuir para o necessário aprofundamento do debate acadêmico.
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Advogado desde 1987; Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná, desde 2013; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.
SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 28.︎
Atividade econômica organizada, conforme art. 966 do Código Civil.︎
Sobre a crise empresarial e os sinais de alerta: CLARO, Carlos R. Apontamentos sobre o diagnóstico preliminar em recuperação judicial. Abordagem zetética. ABRÃO, Carlos H.; CANTO, Jorge L. L. do; LUCON, Paulo H. dos S. (coord.). Moderno Direito Concursal. Análise plural das Leis n. 11.101/05 e n. 14.112/2020. São Paulo: Quartier Latin, 2021.︎
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É assente a ideia de que o Estado, com mais ênfase a partir da Carta Federal de 1988, incentiva o empreendedor a ingressar no mercado competitivo, mediante a constituição de empresa, por exemplo. Mas este deve ter ciência dos riscos inerentes à atividade econômica após a constituição regular da entidade e ingresso efetivo no mercado competitivo. Sabe-se que de um lado há o princípio constitucional da livre iniciativa, e de outro lado existe o risco próprio do negócio, e o empreendedor, desde a elaboração do contrato social ou mesmo da ata de constituição de uma companhia tem inequívoca ciência de que deverá cumprir com suas obrigações, e, descumprindo-as correrá sério risco de ser retirado do mercado. CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009, p. 49. Prossegue o autor: O pensamento de Eros Grau é no sentido de que cabe ao empresário verdadeiro papel de inovar, arcando este com as responsabilidades inerentes por ter ingressado no mercado competitivo. E vai mais além, asseverando que ‘paradoxalmente, foi sempre o Estado que, entre nós, promoveu, suportando o seu custo, inovações empresariais. Neste sentido, o Estado brasileiro caracterizou-se como ‘schumpeteriano’. Basta lembrarmos, aqui, os movimentos de criação de empresas estatais no governo Getúlio (década de 40 do século passado) e durante a ditadura militar (segunda metade da década de 60), além do desenvolvimento do governo Juscelino Kubitschek e do papel do BNDES e de outras agências e sociedades governamentais, como a EMBRAPA’. Op. cit., pp. 51-52. Destaques em o original.︎
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Especialmente a partir da década de 1990 do século passado o mundo se vê diante da globalização econômica, ocorrida de forma generalizada e avassaladora, trazendo sensíveis reflexos diretos ao homem, às empresas, à coletividade e ao mercado como um todo. Tais reflexos ocorreram de forma indistinta e são positivos e negativos, nas mais variadas áreas, inclusive e principalmente na seara econômica. Assevera Fábio Konder Comparato que a partir da segunda metade do século passado houve a multiplicação de entidades multinacionais [ou transnacionais], formadas por sociedade controladora e controladas, ensejando também o surgimento de organização ‘reticular de empresas no mercado internacional’. Diz ainda que a globalização econômica foi precedida, desde a época dos grandes descobrimentos lusitanos e espanhóis, por várias ‘experiências daquilo que o grande historiador francês, Fernand Braudel, denominou ‘economias-mundo’. CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009, p. 56. Destaques no original. Alinha o autor: Não é necessário muito esforço de raciocínio do hermeneuta sistemático para perceber que, diante da avassaladora inserção de empresas multinacionais, especialmente no Brasil, pode-se afirmar que o resultado é um só: somente ficará no mercado competitivo as empresas que reunirem as mínimas e indispensáveis condições de concorrência em seu setor de atividade. Op. cit., p. 59. Importante apresentar mais um excerto: Destaque-se pois o pensamento de Niklas Luhmann (1985, p. 245), que adverte, com propriedade, que a globalização fez com que surgisse uma ‘sociedade mundial’ e que existe desenvolvimento global desequilibrado . Nota-se a existência de acirrada competitividade de empresas transnacionais, e o que importa é a produtividade e a melhor clientela no varejo ou no atacado. Como dito, a globalização correu de forma avassaladora no final do século XX, com ela advindo grande revolução tecnológica, notadamente nas áreas das comunicações e eletrônica. Mas não significa afirmar categoricamente que houve globalização no tocante às sociedades mundiais, e muito menos no âmbito cultural. Não. As invocações culturais, por exemplo, vieram no vácuo da globalização econômica, com a inserção de empresas transnacionais também no Brasil. CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009, p. 65. Grifos no texto original. Sobre a pós-modernidade: LYOTARD, Jean-François. 5ª edição. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1998.︎
Afinal, consoante Fábio Ulhoa Coelho, nem toda a falência é um mal. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 116.︎
Utilizando o termo de Kevin J. Delaney em sua obra.︎
Lei 11.101/05, art. 75, incisos I, II e especialmente III.︎
Op. cit., p. 117. Importante ressaltar que no sistema jurídico nacional não mais existe o instituto da concordata, onde o devedor [com arrimo no Dec.-Lei 7661/45], infeliz nos seus negócios, mas de boa-fé, colocava na mão do Estado a solução da crise. A partir de 2005 foi alterada radicalmente a questão, a forma de ver a crise empresarial, de modo que, primeiramente, busca-se a solução de mercado, ingressando devedor e credores na arena denominada recuperação judicial, visando o soerguimento.︎
Sobre o tema: GRAU, Eros R. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016.︎
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O diagnóstico preliminar é novidade na lei, mas não é instituto novo tratado pela hodierna doutrina. A respeito da crise empresarial e perícia prévia: CLARO, Carlos R. Apontamentos sobre o diagnóstico preliminar em recuperação judicial. Abordagem zetética. ABRÃO, Carlos H.; CANTO, Jorge L. L. do; LUCON, Paulo H. dos S. (coord.). Moderno Direito Concursal. Análise plural das Leis n. 11.101/05 e n. 14.112/2020. São Paulo: Quartier Latin, 2021; ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar. Nova disciplina jurídica da crise econômica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. Escreve Abrão: Assolada a empresa pela crise econômica, buscando a organização judiciária par debelá-la, salta a evidencia a importância de um diagnóstico, que revelará as causas, o estado atual e a atitude a tomar em relação ao patrimônio e às pessoas responsáveis. Op. cit., p. 226. Sem destaque no original. Por fim, diz o autor: o diagnóstico econômico-financeiro liminar nos procedimentos concursais elaborado por perito de confiança do Juízo, servirá de roteiro seguro quanto às deliberações a serem tomadas pelo magistrado: conservação, ou não, dos dirigentes, à testa da empresa; solução procedimental (reorganização ou liquidação); elaboração do plano de reerguimento e de pagamento; sanções civis e penais aos dirigentes omissos ou fraudulentos e sua eventual extensão a terceiros co-responsáveis. O diagnóstico econômico-financeiro funciona como garantia de supedâneo rela e sério, repondo o processo em seu verdadeiro lugar de realização da justiça, do qual se apartou, no correr dos tempos, graças à prevalência de uma concepção juridicista, e formalista, de mero cumprimento de atos e termos, abstraída da realidade econômica. Op. cit., p. 227. E mais: Explicitado que a finalidade precípua dos procedimentos concursais consiste em enfrentar a crise econômica da empresa, numa tentativa de recuperação, delineia-se como fundamental o exato conhecimento de sua situação econômico-financeira para que se possa determinar, de modo racional, a atitude a tomar em relação ao patrimônio e aos dirigentes. Justamente por não prever essa medida, por abstrair do aspecto econômico, e que nossos procedimentos concursais desaguaram nesse grande vazio, redundando em fracasso que lhes compromete a própria razão de ser. Op. cit., p. 226.︎
Evidentemente - até por força de lei -, todos os que participam do processo hão de se comportar de forma ética, leal e imbuídos de boa-fé objetiva. Mas, considerando o foco “reestruturação empresarial”, a ênfase recai na pessoa do devedor em crise.︎
Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.︎
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Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
I...omissis...
II. proceder com lealdade e boa-fé.︎
Código de Processo Civil anotado. 21ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 7. Destaques no original.︎
A boa-fé no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr,2003, p. 180. Destaques na obra original. Bem esclarece o autor que a primeira função da boa-fé é a de, ao mesmo tempo, interpretar e integrar o contrato. Op. cit., p. 182. E mais: interpretar e integrar o contrato, de acordo com o princípio da boa-fé, significa traduzir o comportamento das partes, de acordo com a finalidade e função social da correspondente relação jurídica, vista, conforme sua complexidade, como uma ordem de cooperação, não se tratando tão-somente de dialética crédito (direito do empregador de dispor de mão-de-obra) e débito (dever do empregado de prestar o trabalho), considerados isoladamente, mas de um conjunto de direitos e deveres, em que as partes visam a uma finalidade comum. Op. cit., p. 183.︎
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Fábio Konder Comparato explica que enquanto as leis naturais representam a tradução simbólica de uma realidade, cuja existência independe da vontade humana, e os enunciados lógicos ou matemáticos dizem respeito a entes ideais ou abstratos, toda a vida ética é fundada em valores, que supõem a liberdade de escolha e criam deveres de conduta. Não existe ética neutra, cega de valores. Daí por que, como já havia advertido Platão, o juízo ético difere substancialmente da verificação de dados empíricos, ou do raciocínio matemático. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 505-506. A ética pode ser compreendida como um conjunto de preceitos voltados a um agir em consonância com os padrões de comportamento humano. Para Miguel Reale: analisando o problema da ‘Ética’, entendida como doutrina do valor do ‘bem’ e da conduta humana que o visa realizar, é preciso saber que ela não é senão uma das formas de atualização ou de experiência de valores’, ou, por outras palavras, um dos aspectos da ‘Axiologia’ ou ‘Teoria dos Valores’, que constitui uma das esferas autônomas de problemas postos pela pesquisa ontognoseológica, pois o ato de conhecer já implica o problema do valor’ daquilo que se conhece. Filosofia do direito. 19ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 37. Grifos constam da obra original. Na ética estóica impera a virtude do agir de forma correta, a temperança, a imperturbabilidade - ausência de inquietação da alma [ataraxia - Demócrito -, que também se traduz em conceito dos epicuristas e céticos. Em resumo, a ataraxia se traduz na serenidade do espírito]. João Maurício Adeodato disserta sobre a ética: a tradição do termo ‘ética’ é milenar. Com a expressão ‘ethos’ os gregos antigos queriam significar aquela dimensão da vida humana sobre que incidentem normas, ‘nomoi’, normas destinadas a fornecer parâmetros para decidir entre opções de conduta futura igualmente possíveis e mutuamente contraditórias. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4ª edição, 2ª tiragem. São Paulo Saraiva, 2010, p. 41.︎
Compromisso social da empresa e sustentabilidade - Aspectos jurídicos. São Paulo: Revista LTr, Vol. 71, n. 03, março/2007, p. 348.︎
Observem-se as regras dos artigos 113 e 198 do mesmo Código Civil.︎
Constituição Federal, art. 5º, inc. LXXVIII.︎