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A justiça restaurativa no enfrentamento ao uso de drogas

Agenda 27/02/2023 às 11:58

O uso de drogas ilícitas é um problema antigo presente na sociedade e está longe de ser erradicado. É possível perceber relatos, nas mais diversas civilizações, do uso de substâncias entorpecentes ou psicotrópicas pelo homem, com as mais diferentes finalidades, sejam elas, recreativas, para rituais religiosos, medicinais ou lúdicas, dentre outras.

Ocorre que a utilização de tais substâncias podem ter consequências sanitárias e sociais graves, prejudicando as atividades físicas, mentais, psicológicas, econômicas e sociais, que levaram o Estado a proibir o comércio e a utilização de substâncias psicoativas por seus cidadãos.

A proibição emanada do Estado, por si só, não tem o condão de erradicar a distribuição e o uso destas substâncias ilícitas.

Neste contexto, o tráfico ilícito de entorpecentes é uma realidade triste e imiscuída no meio social, duramente combatida pelo Estado, numa verdadeira “guerra” contra o crime organizado.

O tráfico de drogas tem enorme relevância nas políticas criminais, bem como nas políticas sociais e sanitárias.

Embora amplamente combatido o tráfico de drogas, uma de suas consequências funestas é o vício a que muitas pessoas estão expostas, sendo necessária a implementação de políticas públicas, que visem minimizar o problema social gerado e as consequências psíquicas e físicas enfrentadas pelos usuários.

O tema de combate ao tráfico e uso de drogas ilícitos não é novo, mas com a evolução da sociedade e do Poder Judiciário, buscam-se novas alternativas para o enfrentamento do problema.

Buscando uma nova forma de enfrentar a temática, a Lei nº 11.343/06, em seu artigo 28, dispõe que aquele que fizer uso de drogas ilícitas será submetido à advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo.

Num mundo ideal, a intenção da Lei referida é perfeita, mas, em termos práticos, sabe-se que o Estado não dispõe, na maioria das vezes, de programas educativos realmente eficientes para afastar o usuário do mundo das drogas ilícitas.

Surge, então, a ideia de se aplicar a Justiça Restaurativa como alternativa para aplicação do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, vez que não basta apenas advertir o usuário e dependente de drogas quanto aos malefícios advindos de seu vício, mas tratar o núcleo familiar em que ele está inserido e a próprio meio social em que vive.

A Justiça Restaurativa visa pacificar conflitos e violência e possui diversas ferramentas flexíveis para tratar o cidadão e reinseri-lo de forma sutil e definitiva em um meio social mais saudável.

O Poder Judiciário atua diretamente no enfrentamento ao uso e dependência de drogas ilícitas e pode contribuir de forma efetiva com a construção de um novo cenário em que a Justiça Restaurativa, por meio de métodos consensuais e modelos de conciliação/mediação, oferece alternativas para o tratamento psicossocial do indivíduo flagrado em situação de posse de drogas para consumo pessoal.

Partindo da premissa da Teoria dos Sistemas, segundo a qual o mundo é uma teia de relações e tudo está em conexão, observa-se que o problema das substâncias químicas não pode ser colocado única e exclusivamente como sendo do indivíduo que a consome; é imperioso considerar a sociedade a que ele pertence, o contexto em que ele vive, o acesso a que ele tem aos bens sociais básicos, a sua qualidade de vida para avaliar as possibilidades desse acesso, a vulnerabilidade e o risco que ele está sujeito.

A Justiça Restaurativa traz esse olhar sistêmico aos problemas sociais e cada vez mais juristas defendem sua aplicação como forma de resolução de conflitos.

Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 225, em 31/05/2016, dispondo sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, trazendo as seguintes definições em seu artigo 1º:

“Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:

I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;

II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;

III – as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro.

§ 1º Para efeitos desta Resolução, considera-se:

I – Prática Restaurativa: forma diferenciada de tratar as situações citadas no caput e incisos deste artigo;

II – Procedimento Restaurativo: conjunto de atividades e etapas a serem promovidas objetivando a composição das situações a que se refere o caput deste artigo;

III – Caso: quaisquer das situações elencadas no caput deste artigo, apresentadas para solução por intermédio de práticas restaurativas;

IV – Sessão Restaurativa: todo e qualquer encontro, inclusive os preparatórios ou de acompanhamento, entre as pessoas diretamente envolvidas nos fatos a que se refere o caput deste artigo;

V – Enfoque Restaurativo: abordagem diferenciada das situações descritas no caput deste artigo, ou dos contextos a elas relacionados, compreendendo os seguintes elementos:

a) participação dos envolvidos, das famílias e das comunidades;

b) atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor;

c) reparação dos danos sofridos;

d) compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para superação das causas e consequências do ocorrido.

§ 2° A aplicação de procedimento restaurativo pode ocorrer de forma alternativa ou concorrente com o processo convencional, devendo suas implicações ser consideradas, caso a caso, à luz do correspondente sistema processual e objetivando sempre as melhores soluções para as partes envolvidas e a comunidade.”

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Referida Resolução ainda estabelece que são princípios que orientam a Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.

No mesmo sentido, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 288, de 25 de junho de 2019, define a política institucional do Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade.

Mencionada Resolução entende por alternativas penais as medidas de intervenção em conflitos e violências, diversas do encarceramento, orientadas para a restauração das relações e a promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade, decorrentes da aplicação de penas restritivas de direitos; transação penal e suspensão condicional do processo; suspensão condicional da pena privativa de liberdade; conciliação, mediação e técnicas de justiça restaurativa; medidas cautelares diversas da prisão; e medidas protetivas de urgência, sendo, desta forma, perfeitamente aplicável aos casos previstos no artigo 28 da lei nº 11.343/06.

Para a Resolução, a promoção da aplicação de alternativas penais terá por finalidade a redução da taxa de encarceramento mediante o emprego restrito da privação de liberdade, na forma da lei; a subsidiariedade da intervenção penal; a presunção de inocência e a valorização da liberdade; a proporcionalidade e a idoneidade das medidas penais; a dignidade, a autonomia e a liberdade das partes envolvidas nos conflitos; a responsabilização da pessoa submetida à medida e a manutenção do seu vínculo com a comunidade; o fomento a mecanismos horizontalizados e autocompositivos, a partir de soluções participativas e ajustadas às realidades das partes; a restauração das relações sociais, a reparação dos danos e a promoção da cultura da paz; a proteção social das pessoas em cumprimento de alternativas penais e sua inclusão em serviços e políticas públicas; o respeito à equidade e às diversidades; a articulação entre os órgãos responsáveis pela execução, aplicação e acompanhamento das alternativas penais; e a consolidação das audiências de custódia e o fomento a outras práticas voltadas à garantia de direitos e à promoção da liberdade.

Neste panorama, sugere-se a aplicação dos Círculos de Construção de Paz, uma das ferramentas adotadas pela Justiça Restaurativa, para o enfrentamento do tema e alternativa para a aplicação das medidas previstas no artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

O Círculo de Construção de Paz é um método organizado e estruturado que promove a comunicação em grupo, a construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução dos conflitos de forma eficiente.

Se o indivíduo se reconhece como tal, com suas limitações e virtudes, consegue se comunicar com os demais, constrói relacionamentos saudáveis e duradouros, entende as consequências de suas decisões para si e para àqueles que lhe são importantes, a chance de se resolver os conflitos de modo duradouro se mostra mais real, de modo que ele poderá escolher uma vida distante do uso de substâncias ilícitas.

O Círculo de Construção deverá ser aplicado por equipe multidisciplinar existente nos quadros do Poder Judiciário ou, em caso de inexistência ou insuficiência desta equipe judicial, dever-se-á buscar parcerias entre o Judiciário e o Executivo para a efetivação da metodologia.

Os psicólogos e assistentes sociais, capacitados para se tornarem facilitadores, conduzirão a dinâmica, por meio da roda de conversa, primando pela voluntariedade dos participantes, pelo sigilo e confidencialidade dos encontros, pelo estabelecimento de vínculo e identificação entre os participantes, bem como pela busca de um novo olhar sobre a família, trabalho e futuro, que possa ser desenvolvido sem o consumo de drogas ilícitas.

Espera-se que, com a concretização e efetivação da Justiça Restaurativa no âmbito das penas alternativas, tanto os participantes quanto a sociedade serão beneficiadas.

Não basta a repressão ao tráfico de drogas por meio exclusivo do Direito Penal, mas necessário também que o usuário, peça fundamental e integrante do mecanismo existente no crime de tráfico, seja tratado e restaurado física e psquicamente, assim como o meio familiar e social em que está inserido.

Por fim, verifica-se que a Justiça Restaurativa tem um papel de suma importância na construção de um novo cenário social, apresentando referenciais teóricos para o desenvolvimento de políticas públicas multidisciplinares realmente efetivas no tratamento dispensado aos usuários e dependentes químicos, transformando, ainda que a longo prazo, a triste realidade social.

REFERÊNCIAS

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https://www.tjpr.jus.br/documents/14797/7836487/Manual+JR+-+NUPEMEC+TJPR.pdf

https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614

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