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A possibilidade de inversão do ônus da prova em demanda fundada em erro médico (relação consumerista)

Agenda 27/02/2023 às 11:58

Em se tratando de uma relação civil, a regra geral a ser aplicada em relação ao ônus da prova, é a estatuída pelo Código de Processo Civil, mais especificamente a do art. 373, incisos I e II, que dispõe ser de incumbência do autor o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito, enquanto se mostra dever do réu a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Em complemento o §1º do mesmo artigo, prevê a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus probatório, nas oportunidades em que houver previsão legal ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.

Nas precisas lições de Fredie Didier Jr., as opções legislativas pela “inversão” do ônus da prova (opes legis), não passariam de exceção à regra geral em relação ao ônus da prova, vejamos:

Rigorosamente, não há aí qualquer inversão; há, tão somente, uma exceção legal à regra genérica do ônus da prova. É, pois, igualmente, uma norma que trata do ônus da prova, excepcionando a regra contida no art. 373 do CPC. Por conta disso, é também uma regra de julgamento: ao fim do litígio, o juiz observará se as partes se desincumbiram dos seus respectivos ônus processuais, só que, em vez de aplicar o art. 373 do CPC, aplicará o dispositivo legal específico. (Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória / Fredie Didier Jr., Paulo Sarna Braga e Rafael Alexandria de Oliveira 16. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2021, p. 141)

Nesse sentido, é o julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que explicita sobre a relativização da regra de distribuição estática do ônus da prova no Código de Processo Civil, com a abertura de espaço aos princípios da cooperação, da boa-fé, da lealdade e, especialmente, da igualdade substancial, que se retirados da exceção do §1º, do art. 373, do CPC (distribuição dinâmica).

Veja-se:

PROCESSO CIVIL. ERRO MÉDICO. PERÍCIA MÉDICA. HIPOSSUFICIÊNCIA TÉCNICA. ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO. CABIMENTO. 1. O artigo 373 do Código de Processo Civil estabelece, de forma apriorística, a incumbência das partes com relação ao ônus da prova: ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito (inciso I); e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II). 2. A regra supra é relativizada pela distribuição dinâmica do ônus da prova prevista no § 1º do mesmo artigo 373, onde o comando valorativo principiológico ínsito alinha-se aos princípios da cooperação, da boa-fé, da lealdade e, sobretudo, à igualdade substancial, a fim de direcionar o maior encargo probatório àquele que tenha maior aptidão para obter as provas necessárias ao deslinde do caso. 3. A inversão do ônus da prova está devidamente fundamentada na presença do requisito de hipossuficiência técnica dos autores e na condição de fragilidade frente ao debate apresentado, notadamente porque a prova pericial é de substancial importância nos casos que cercam as discussões sobre erro médico e porque o réu tem maiores condições de provar a inexistência de nexo de causalidade, entre as condutas comissivas/omissivas de seus agentes e os danos suportados pelo familiar dos demandantes. 4. Recurso conhecido e provido. (Acórdão 1314165, 07431996420208070000, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 27/1/2021, publicado no DJE: 11/2/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

Ou seja, em algumas hipóteses o legislador se antecipa e prevê que em razão do direito em litígio ou da imprescindibilidade de promoção da igualdade substancial no processo, há necessidade de que a inversão do ônus probatório seja possível desde o início e esteja prevista normativamente, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor.

Aduz o art. 6º, do CDC, que são direitos básicos do consumidor: (...) VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência.”

Sobre o direito à inversão do ônus da prova, assim dispõe a doutrina, vejamos:

O reconhecimento do direito à inversão do ônus da prova não é automático. Está condicionado à verificação, pelo juiz da causa (inversão ope iudicis), da presença, alternativamente, dos requisitos autorizadores, a saber: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor (Interesses difusos e coletivos / Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade. – 9. ed. – São Paulo: MÉTODO, pág. 517, 2019).

Quando a lei não tem previsão expressa acerca da inversão do ônus da prova, somente as peculiaridades da causa são móveis para a redistribuição, desde que fundamentada a decisão e preenchidos os requisitos da impossibilidade ou excessiva dificuldade no cumprimento do encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário (art. 373, §1º, CPC).

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Em outro norte, na grande maioria das demandas consumeristas, se encontra sedimentada a possibilidade de inversão do ônus da prova, sendo praticamente a regra em tais demandas, tendo em vista que nos litígios em questão, o consumidor quase sempre se encontra em uma posição de hipossuficiência em relação ao fornecedor, ou é fácil a comprovação da plausibilidade de suas alegações (inciso VIII, do art. 6º, do CDC).

Já o caput do artigo 14, do CDC, ao disciplinar a responsabilidade do fornecedor pelo fato do serviço (acidente de consumo), como por exemplo, a situação retratada no título do texto, do erro médico em uma relação consumerista, assim dispõe:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Por se tratar de responsabilidade objetiva, ao consumidor lesado caberia, em tese, a demonstração do dano e do nexo de causalidade entre o serviço prestado e a conduta danosa para que estivesse caracterizada a responsabilidade do médico, consequentemente, a reparação dos danos.

Entretanto, em se tratando de erro médico com base em uma relação de consumo, surge uma problemática que, às vezes, é mal interpretada pelos operadores do direito, que é o fato de o Código de Defesa do Consumidor estabelecer que a responsabilidade dos profissionais liberais será apurada de forma “subjetiva”, ou seja, somente restará caracterizada a falha do serviço quando estiver comprovado o dano, nexo de causalidade, além da conduta imprudente, negligente ou imperita do profissional médico ou até mesmo com dolo (culpa lato sensu).

Assim, em algumas situações ocorre um erro hermenêutico orientado pela dificuldade em compatibilizar o estabelecimento da responsabilidade subjetiva no tocante aos profissionais liberais com a possibilidade de inversão do ônus da prova nas relações de consumo, o que, segundo a ótica de alguns, não seria possível.

Portanto, muito embora o Código de Defesa do Consumidor tenha instituído um sistema de responsabilidade, em regra, objetivo, no tocante aos profissionais liberais há exceção a tal modelo, é o que se extrai do §4º do artigo 14 do CDC.

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

A adoção do sistema de responsabilidade “subjetiva” pelo Código de Defesa do Consumidor em relação aos profissionais liberais, não implica, necessariamente, que ao autor cabe o ônus da prova constitutiva do seu direito, e ao réu, a prova de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, conforme dispõe a regra geral do artigo 373 do Código de Processo Civil.

Segundo as lições doutrinárias e a jurisprudência dominante, o fato de o CDC ter optado pela responsabilidade subjetiva no que se refere aos profissionais liberais, tem o condão de determinar a inversão do ônus da prova, isto é, não cabe ao autor fazer prova do erro médico, o profissional médico é que deve fazer prova de que o suposto erro médico e demais irregularidades nos protocolos médicos não existiram, ou que não foram a causa determinante do evento danoso.

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(...) importa ressaltar que o CDC, ao elencar a inexistência do defeito como uma das causas de exclusão da responsabilidade civil pelo fato do serviço (art. 14, §3º, I), atribuiu ao fornecedor o ônus da prova de tal excludente, o que equivale dizer que o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste. Vê-se, aqui, uma clara inversão legal (ope legis) do ônus da prova, em desfavor do fornecedor. (Interesses difusos e coletivos / Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade. – 9. ed. – São Paulo: MÉTODO, pág. 588, 2019).

A propósito, assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

(…) A responsabilidade do médico (CDC, art. 14, §4º) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações técnicas aplicáveis (AgRg no Ag 969.015/SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, j. em 7/4/2011, DJe de 28/4/2011). (…) Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp n. 2.001.746/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 3/10/2022, DJe de 21/10/2022.)

O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, já proclamou: “É possível a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC), ainda que se trate de responsabilidade subjetiva de médico, cabendo ao profissional a demonstração de que procedeu com atenção às orientações técnicas devidas” (STJ, AgRg no AREsp 25.838, 4ª Turma, relator Min. Luis Felipe Salomão, DJe 26/11/2012).

É forçoso convir, portanto, que o fato de o Código de Defesa do Consumidor ter optado pela instituição de um sistema de responsabilidade subjetiva no tocante aos profissionais liberais não afasta a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova.

Não há incompatibilidade na inversão da regra de julgamento somente porque houve a adoção de uma exceção à regra do sistema de responsabilidade objetiva previsto no CDC, não havendo qualquer impedimento de ordem prática ou processual.

Ademais, a inversão do ônus da prova regulada pelo Código de Processo Civil prevê exatamente isso, que ao réu cabe o ônus probatório de correção de sua conduta, com o consequente afastamento da tese autoral.

Destarte, a inversão do ônus probatório surge tanto da interpretação do artigo 14, §4º, do CDC, e do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, ao prever que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante a verificação de culpa (responsabilidade subjetiva), mas que cabe ao médico fazer prova da correção dos métodos e orientações técnicas utilizadas no serviço, quanto da norma do artigo 6º, inciso VIII, CDC, desde que presentes a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência técnica, econômica, jurídica ou probatória da parte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm;

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm;

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm;

Interesses difusos e coletivos / Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade. – 9. ed. – São Paulo: MÉTODO, 2019;

Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória / Fredie Didier Jr., Paulo Sarna Braga e Rafael Alexandria de Oliveira 16. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2021, p. 141;

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