Introdução
Esse trabalho reflete o resultado de uma das etapas de minha pesquisa, que está sendo desenvolvida no mestrado, sobre o processo histórico da criminalização do aborto provocado no Brasil. Trata-se, portanto, de um trabalho introdutório e fragmentário, o qual busca esboçar as bases necessárias ao desenvolvimento de uma pesquisa mais ampla, a qual tem como ponto fundamental a análise de autos criminais tramitados na vigência do Código Criminal de 1890, envolvendo mulheres acusadas pela prática de auto aborto na cidade de Florianópolis.
Por meio de revisões bibliográficas, buscou-se elucidar alguns dos contextos histórico-sociais tidos como centrais à criminalização do auto aborto, na tentativa de resumir as principais contribuições acadêmicas já realizadas à temática.
Abordagem teórica
A ascensão do paradigma científico e a ênfase nas diferenças sexuais
Até a Revolução Científica ocorrida no século XVII, as diferenças sociais existentes entre os homens e as mulheres não eram justificadas pela natureza ou pelo sexo. A lógica era inversa: seus corpos é que expressavam a realidade social. Imperava o modelo do sexo único ou das homologias sexuais, dando-se relevância à semelhança e não a diferença entre os corpos.
Martins (2004) aponta que mesmo com a renovação dos estudos anatômicos no Renascimento, as diferenças sexuais continuaram sendo pautadas a partir da analogia, não existindo uma nomeação própria para os órgãos genitais femininos. Isto não significa, contudo, que os anatomistas não vissem as diferenças entre os sexos, contudo para eles, elas não pareciam ter significado.
O novo modelo das diferenças sexuais começou a ser formulado no início do século XVIII, quando o corpo passou a ser um novo campo de redefinição das relações de gênero (2004). Os conhecimentos a respeito das diferenças humanas ganharam visibilidade pois adquiriram um significado político. Não se trata, portanto, da “descoberta” das diferenças humanas, mas de sua ressignificação2.
A ascensão do paradigma científico foi contemporânea aos movimentos e debates pelos direitos civis das mulheres travados ao longo dos séculos XVII e XVIII na Europa3. A partir deste processo, os elementos do corpo feminino, antes considerados meros elementos, passam a adquirir significados, sendo manipulados pelo desejo de conformar as estruturas sociais baseadas na desigualdade.
A ênfase na definição da diferença sexual e na predestinação do corpo feminino à maternidade tem sido percebida como um fenômeno visível entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX (ROHDEN, 2009). Ao passo que se buscava na observação da natureza explicações causais para a realidade social, atribuía-se ao método científico o manto da neutralidade e da objetividade, ignorando que a própria ciência estava a emergir carregada de sentidos.
A tradução do paradigma científico no Brasil e o discurso médico sobre a sexualidade feminina
A ebulição destas novas ideias europeias irá repercutir no Brasil, sendo alvo de conflitos, discussões e teorizações. Apesar de também estarem presentes em outras áreas, as ideias positivistas tiveram forte impacto na construção dos discursos médicos, inclusive no que diz respeito à mulher. A partir do desenvolvimento de técnicas e estudos do corpo feminino, busca-se circunscrever a mulher à maternidade, restringindo-a a sua sexualidade reprodutora (BROTTO, 2010). Neste processo, a consolidação da Ginecologia e da Obstetrícia enquanto ramos da medicina, parece ter sido fundamental. Para avançar em suas pesquisas, os ginecologistas precisavam cada vez mais observar e intervir nos corpos femininos – o que não era bem visto socialmente, de forma que os médicos estrategicamente buscaram se aliar ao discurso moral, que até então os condenava4. Assim, através da descoberta de elementos particulares ao corpo feminino iniciou-se um jogo de definições, no qual os médicos iam além da observação clínica e da formulação de teorias - prescreviam comportamentos e normatizavam condutas, incorporando preceitos morais e religiosos. A medicina, desse modo, desenhou a maternidade científica inscrita no corpo feminino, o qual deveria seguir com rigor as indicações médicas para cumprir com êxito sua missão.
A medida que o paradigma positivista foi se consolidando, no final do século XIX, a classe médica foi adquirindo prestígio social, sendo vista como aquela que detém o conhecimento, que aplica e corporifica os avanços científicos. Afirmava, assim, seu monopólio profissional, reivindicando para si o conhecimento e o controle sobre o feminino. Neste processo, os médicos iniciaram um verdadeiro movimento contra as práticas abortivas e a criminalização das mulheres que as realizavam, escrevendo teses, artigos na imprensa e manifestações públicas. Estas campanhas eram justificadas pelas obrigações da “natureza feminina”, das quais as mulheres não podiam abdicar, sob pena de ameaçaram a perpetuação da espécie e o progresso do país5. Também eram frequentes as referências ao aborto enquanto depravação moral, visto que a prática representava a dissociação do ato sexual da finalidade reprodutiva, podendo ser utilizada como manobra para esconder relações extraconjugais.
Entre médicos e juristas: a criminalização do aborto provocado no Código Penal de 1890
O direito penal brasileiro também acompanhou as novas tendências teóricas da época. A chamada “Nova Escola Penal”6, fundada pelas teorias de Cesare Lombroso7, aproximou o Direito e a Medicina, assumindo um caráter tipicamente utilitarista e segregacionista no Brasil. Essa articulação de saberes irá estruturar todo o sistema penal brasileiro (ANDRADE, 2011; GOÉS, 2016) e, por conseguinte, terá consequências na criminalização das mulheres, inclusive no que diz respeito ao aborto. Em nome de um “interesse coletivo”, o Estado autodeclara seu poder de intervir no privado e até mesmo desnudar, tocar e vasculhar o corpo alheio – condutas próprias da atividade médica.
O Código Penal de 1890, apesar de manter a tradição liberal, foi atravessado por estas teorias, respondendo a uma demanda por maior criminalização e controle social dos particulares. Estas influencias tiveram impacto sobre o controle da sexualidade feminina, visto que somente com o Código Penal da República que a mulher passou a ser criminalizada pelas práticas abortivas realizadas em seu próprio corpo8.
Apesar da nova tipificação legal, médicos e juristas pareciam insatisfeitos com o tratamento conferido à matéria, não sendo raras as manifestações reivindicando legislação específica para o aborto. Os médicos, em especial, denunciavam o alto número de abortos praticados9, inclusive dentre as famílias ricas, e reclamavam da impunidade10. Já dentre os juristas, o tema era bastante mencionado e frequentemente discutido em comentários ao Código Penal (HENTZ, 2003).
A criminalização do aborto provocado no Judiciário
Se a problemática do aborto já estava presente nas teses médicas e nas doutrinas jurídicas desde a segunda metade do século XIX, é na virada para o século XX que parece suceder uma crescente vigilância e intervenção do Poder Judiciário sobre o corpo e a sexualidade feminina (ROHDEN, 2003; VAZQUEZ, 2014)11. A partir de pesquisas documentais, Rohden (2002) concluiu que tanto as teses médicas das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro quanto os processos judiciais sobre aborto, tramitados entre os anos de 1890 e 1940, tinham como ponto fundamental o crescimento e o desenvolvimento do país, de forma a destacarem a importância da função reprodutora da mulher à nação. Em sentido semelhante foram as conclusões de Vázquez (2014), para quem os processos criminais sobre aborto e as falas presentes neles se revelaram intimamente vinculadas ao discurso médico-científico sobre o comportamento feminino.
Vázquez (2014) ainda sugere que diante da dificuldade de se comprovar empiricamente as causas que levaram ao abortamento, defesa e acusação teriam buscado se utilizar de fundamentos considerados científicos para revestirem seus argumentos. Deste modo, disputavam a imagem social das indiciadas, buscando demonstrar sua normalidade ou suas patologias, frente à dita “natureza feminina”. As acusadas, do mesmo modo, pareciam tentar demonstrar sua adequação aos papeis sociais, muitas vezes usando-os como justificativas para o delito e, não raro, procuravam corroborar com os estereótipos femininos de ignorância e emotividade como estratégias de absolvição.
Se por um lado as reivindicações de médicos e juristas sugerem que mesmo com o enrijecimento da lei penal, o aborto continuou sendo utilizado como método de controle de natalidade pelas mulheres das mais diversas classes sociais, por outro as pesquisas processuais apontam que o controle judicial da prática não parecia ser muito efetivo, tendo em vista o baixo número de denúncias e inquéritos policiais e o alto índice de arquivamento por falta de provas.
Neste sentido, a pesquisa de Vazquez (2014) se mostra reveladora. Em que pese o amplo recorte temporal realizado12, de todos os processos analisados, nenhum incorreu em pena de prisão em regime fechado para a acusada. Destacou-se, ademais, outro ponto curioso: os processos iniciados no final do século XIX chegaram à fase do Tribunal do Júri, sendo, portanto, julgados, enquanto que a maioria dos processos do século XX prescreveram, sendo esquecidos pela justiça. Concluiu-se, assim, que apesar dos discursos criminalizadores e do endurecimento dos dispositivos penais sobre o aborto induzido, as mulheres indiciadas não eram condenadas à prisão e, por vezes, as ações penais sequer chegavam a ser processadas até o fim.
A ausência de condenação, no entanto, não significava necessariamente a existência de uma omissão estatal. Na verdade, ela parecia estar circunscrita em uma política pedagógica de envergonhamento e humilhação das acusadas, que resultava no seu isolamento social e no seu confinamento no lar, como forma de ensiná-las o seu lugar, de acordo com os papéis de gênero.
Ademais, as pesquisas nos revelaram que a maior parte das denunciadas eram consideradas pardas e viviam em baixas condições sociais, sendo que muitas trabalhavam como domésticas13. Por outro lado, o discurso médico denunciava a realização de práticas abortivas entre as famílias mais abastadas, revelando que as mulheres da burguesia também cometiam o delito. Isto nos leva a supor que o controle estatal estava direcionado às mulheres do meio popular, seja porque elas tinham menos acesso à informação, realizavam o aborto em suas próprias casas e não podiam pagar pelo silêncio dos médicos, seja talvez porque a política criminal estivesse destinada justamente à parcela pobre e negra da população. Neste aspecto, é possível cogitar que sobre as mulheres negras houvesse uma maior desconfiança, tendo em vista o estigma que recaía sobre a sua sexualidade, considerada muitas vezes mais “intensa” e “animal”14, ao passo que o aborto estava associado a prática sexual sem finalidades reprodutivas. Quais sejam as razões, supõe-se, a partir das pesquisas estudadas, que os médicos exerciam o controle sobre as mulheres mais ricas, através do acompanhamento clínico, da prescrição de comportamentos e até da imprensa, enquanto que a polícia e o judiciário eram quem se encarregava da vigilância e da normatização das mulheres pobres.
Conclusões
A criminalização do aborto se revela inscrita em um contexto histórico-social bastante específico e recente. Não parece ter sido resultado de pressões de instituições religiosas, tampouco de preocupações com vida intrauterina, mas sim de uma demanda pelo controle da sexualidade feminina. De modo geral, é possível perceber que ela estava assentada em uma onda conservadora, incorporada pelo paradigma científico, dentro de um projeto político maior, no qual a limitação e o controle da ocupação dos espaços públicos pelas mulheres parecia ser necessária.
A partir das poucas pesquisas processuais existentes sobre o tema, é possível especular a existência de uma política criminal voltada para as mulheres das camadas mais baixas da população, sobretudo às mulheres negras. Os estudos que se utilizaram de fontes da área médica demonstram a frequência em que o aborto provocado era denunciado pelos médicos enquanto método contraceptivo popular entre todas as classes sociais, inclusive entre mulheres de famílias abastadas. Por outro lado, as pesquisas que se utilizaram de processos criminais tramitados na vigência do Código Penal de 1890 apontam a existência de um perfil entre as mulheres acusadas. Eram praticamente todas pardas ou negras, pobres e solteiras. Fica evidente, assim, o contraste entre o discurso médico e as práticas judiciárias. Soma-se a isso o fato de que a maior parte dos autos processuais analisados pelas autoras (ROHDEN, 2003; VAZQUEZ, 2014) foram arquivados. O judiciário parecia se utilizar de outras estratégias estatais de punição, desvinculadas da condenação e do cárcere, que buscavam, através da exposição e da humilhação, impor o bom desempenho dos papéis atribuídos ao gênero feminino às mulheres negras das classes mais baixas.
Referências bibliográficas
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VAZQUÉZ, Georgiane Heil. Sobre as Mulheres e o Aborto: notas sobre leis, medicina e práticas femininas. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, dez. 2014, p. 146-162.
Doutoranda e mestra em História do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), sob a orientação do Profº. Dr. Diego Nunes.︎
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Segundo Rohden (2009), as descobertas científicas só fazem sentido dentro de um contexto social propício, no qual elas respondem a demandas sociais. Nas palavras da autora, “só se chegou à constatação de que os corpos de homens e mulheres eram diferentes na sua natureza quando houve um clamor social para isso” (2009, p.31).︎
Rohden (2009) explica que o processo de urbanização provocou um forte sentimento de ameaça às estruturas sociais da época, inclusive no tocante às relações de gênero, o que levou a um movimento conservador de redefinição e reafirmação das bases da diferença, bem como da desigualdade entre os sexos.︎
Quando os estudos médicos a respeito da sexualidade foram publicados no Brasil, a Igreja Católica reagiu fortemente. Escreveu-se inúmeras cartas pastorais buscando atacar e ridicularizar o caráter científico dos saberes sobre a sexualidade (DOS SANTOS, 2014).︎
Quanto aos deveres da mulher com a sociedade, os discursos médicos da época são esclarecedores. A título de exemplo, o médico Antônio Costa Júnior, afirmou em sua obra “o produto da concepção normal não pertence só à mãe, ele pertence também ao Estado, do qual virá fazer parte e como tal, este deve zelar por sua vida. A prática do aborto criminoso é um crime por excelência anti-social [sic], pois que suprime o indivíduo, membro da família, de que se compõe o Estado” (1911, apud ROHDEN, 2003, p. 67).︎
No Brasil, pode-se dizer que o principal expoente foi o médico Raimundo Nina Rodrigues (GOES, 2016).︎
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Médico italiano, conhecido como fundador da Criminologia Positivista, através da sua principal obra “O Homem Delinquente” (1876).︎
O Código Criminal anterior (1830) criminalizava apenas terceiros que realizassem práticas abortivas no corpo feminino, mas não tipificava os casos em que a própria gestante dava fim a concepção. O tipo criminal do “auto aborto”, assim, foi uma das inovações legais presentes no Código Penal de 1890.︎
Entre eles destacou-se o Dr. Antônio Costa Júnior, quem apresentou um dos trabalhos mais completos da época sobre aborto (ROHDEN, 2003). Em sua tese, o autor afirma a universalidade da prática, compartilhada por todos os povos, “civilizados” e “incultos”, em razão de um mal comum: a “depravação moral” (2003).︎
A título de exemplo, no início do século XX a Academia Nacional de Medicina encaminhou ao Parlamento da República, uma moção solicitando uma legislação especial para o crime de aborto. Dentre as medidas sugeridas, estavam a vigilância das chamadas casas de partos, a notificação da autoridade sanitária em caso de aborto e mortinatalidade, tal como ocorria com doenças infectocontagiosas, e o direito do médico clínico em violar o segredo profissional e depor perante a justiça (SILVA, 2012).︎
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Tanto Rohden (2003) quanto Vazquez (2014) buscaram analisar processos criminais envolvendo aborto, a partir do final do século XIX, porém não encontraram material necessário à pesquisa. Rohden (2003), por exemplo, em consulta ao Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, não encontrou nenhum registro entre os anos de 1890 e 1901.︎
A autora realizou sua pesquisa historiográfica com inquéritos e processos penais envolvendo aborto e infanticídio, tramitados entre os anos de 1896 e 1978, nos Campos Gerais, no Estado do Paraná.︎
Destaca-se o fato de que o Código Criminal de 1890 foi promulgado logo após a abolição da escravatura no país (1888). Muitas das mulheres negras que moravam nas zonas urbanas continuaram a desempenhar tarefas doméstica, na suposta condição de mulheres livres (DA SILVA, 2015).︎
Estes estigmas são compartilhados, por exemplo, por Spix e Martius e Charles Expilly em seus relatos de viagem ao Brasil (SOIHET, 2003).︎