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O Estatuto do Nascituro. Entre ideologias e realidades sobre a dignidade humana

Agenda 08/03/2023 às 14:19

O projeto de lei "Estatuto do Nascituro" causa, até o momento, divergências, ideológicas, na sociedade e entre os congressistas. Para os defensores do Estatuto, a vida é o bem (jurídico) mais importante para a espécie humana. Para as pessoas contrárias ao Estatuto, a vida é o bem (jurídico) mais importante para a espécie humana, todavia, pode ser relativizada em cada caso. A "relativização" é ponderável, em cada caso concreto. Por exemplo, no caso de risco de gravidez para a gestante, o aborto é permitido. Estupro, a mulher, por condições emocionais, do momento do estupro, da fase gestacional, do nascimento e participação da gestante no desenvolvimento do novo ser humano na vida extrauterina, vivencia, diuturnamente, sofrimentos emocionais. O motivo, justificável, para o aborto. Feto anencefálico também dá direito ao aborto.

Há uma terceira linha de pensamento, ideológico, sobre o direito de aborto. Trata-se da plenitude da mulher sobre o seu próprio corpo. É a autonomia da vontade da mulher sobre o seu corpo, sem quaisquer imposições, permitir ou não, pelo Estado ou pela sociedade.

A vida é o bem jurídico nuclear de qualquer ordenamento jurídico, principalmente quanto aos direitos humanos. No entanto, os direitos humanos consideram quaisquer direitos como não absolutos. No caso de uma pessoa tentar matar alguma pessoa, esta tem o direito de se defender, dentro da proporcionalidade. Proprietário tem o direito de defender o seu imóvel seja pela própria iniciativa, sempre de forma proporcional — atira na cabeça ou pelas costas não há proporcionalidade diante da "ameaça" —, ou provocar o Judiciário com ação possessória (turbação, em caso de manutenção, esbulho, para reintegração de posse, e turbação para casos de inquietação e desassossego). Os direitos humanos, infelizmente, são interpretados erroneamente pelas pessoas sem pleno conhecimento; outras pessoas, por intenções utilitaristas, mesmo conhecendo os fundamentos dos direitos humanos, produzem "descontextualizações". As "descontextualizações" podem ser criações por conteúdos mentirosos ou por conteúdos omissivos. No "omissivo", há informação correta, mas omite o contexto. Por exemplo, muito difundido, o auxílio-reclusão é "licença para matar e ganhar dinheiro com a morte". O  auxílio-reclusão é para os dependentes do apenado e, importantíssimo, tal direito somente é concedido quando o apenado (segurado) tenha contribuído com o INSS nos últimos 24 meses (pelo menos) e ser considerado de baixa renda.

Alhures, a vida é o bem jurídico protegido e alçado como base estruturadora de qualquer ordenamento jurídico. Cada país, pelas suas ideologias, relativizam o direito à vida, o conceito sobre o valor da vida. Por exemplo, Aiatolá do Irã diz que envenenamento de meninas é crime que deve ser punido com morte. No Brasil não existe "pena de morte", salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX (art. 5º, XLVII, "a", da CRFB de 1988).

Os defensores do Estatuto do Nascituro difundem vídeos do momento do aborto. O feto é dilacerado. Também asseveram que o sistema nervoso formado permite que o feto, no momento do aborto, sinta dores. Temos poderosas objeções para o não aborto e manutenção da dignidade do feto.

Se a vida é o valor supremo, e o  Estatuto do Nascituro é a defesa do bem jurídico indefeso, o feto, a vida deve ter proteção, do Estado e da sociedade. A República Federativa do Brasil repudia tortura e tratamento desumano ou degradante. Pois bem, perspectiva sobre não tortura ao nascituro. É cediço aos profissionais da área de saúde que a subnutrição causa sofrimento ao nascituro, compromete o seu desenvolvimento orgânico de forma sadia. A fome na gestante é sentida pelo feto. A fome na gestante gera emoções negativas, desde suas próprios emoções ao seu bem-estar e o bem-estar do nascituro. Ambos, gestante e feto, encontram-se "agonia".

A vida é o bem jurídico primordial do ordenamento pátrio. "Saúde" é dever do Estado (art. 6°, da CRFB de 1988), e o povo deve exigi-la dos "representantes do povo". O Estado, através das políticas públicas, pelos gestores públicos, deve assegurar "à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação" ("caput", do art. 227, da CRFB de 1988). 

Há contradições dos defensores da dignidade no Estatuto do Nascituro e a dignidade extrauterina. A vida é o bem primordial, principiológico no ordenamento pátrio, fato. Ao reexaminar, a dignidade não é absoluta. Para a vida intrauterina, toda proteção do Estado; extrauterina, é cada qual por si. Séculos de fome no Brasil; séculos de agonias para gestantes e nascituros. Um Brasil cujo ar verte agonia e indiferença diante das agonias de outros compatriotas. É a realidade! Durante a pandemia de 2020, o agronegócio lucrou muitíssimo, enquanto a maioria do povo brasileiro ficou na "agonia da fome". Os programas sociais, para os seres humanos brasileiros entre "mínimo existencial" e o abismo da miséria, são atacados desde quando se pensou na possibilidade de o Estado socorrer os miseráveis.

Desde o início da colonização, a assistência ao menor abandonado era responsabilidade dos Conselhos municipais em último caso. Pelos Alvarás de 1775 e 1783 e pelas Ordenações do Reino, ficou estabelecido que as Câmaras deveriam destinar a oitava parte de seus rendimentos para a criação dos expostos, obrigação esta insistentemente recusada pela alegação de falta de recursos. 

Em sua pesquisa sobre a criança abandonada Maria Luiza Marcílio confirma esta responsabilidade já nas Ordenações Afonsinas, sendo mantidas nas Manuelinas e Filipinas e ratificadas pelos Alvarás Régios de 22 de agosto de 1654 e 22 de dezembro de 1656, leis que definiam ainda de que meios poderiam dispor para cumprir tal obrigação,  utilizando-se de rendas próprias e se necessário da criação de um imposto, a "Finta dos Enjeitados", para o subsídio da manutenção dos expostos. Contudo, 

'até o final da vigência das Ordenações do Reino, em geral as municipalidades brasileiras cumpriram com relutância e contragosto tão difícil e importante função [...]. Quase sempre houve omissão, negligência, falta de interesse ou de assistência às crianças.'

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A ideia clássica dos liberais são invocadas para se condenar os tributos, como se estes fossem "roubos" dos trabalhadores. Ocorre, por maldade ou desconhecimento, que pensadores como John Locke e Adam Smith pensaram nas desigualdades sociais e como combatê-las. Locke, a distribuição do excedente. Smith, tributação aos abastados.

A tributação é talvez o tema mais polêmico da atualidade, sendo a prescrição de níveis punitivos o principal instrumento aplicado para reverter a desigualdade. Como tal, é visto como uma intervenção distorcida no mercado e um afastamento dos princípios do “livre mercado”. Smith não prescreveu tributação punitiva , mas o que se perdeu é que ele elogiou o sistema tributário britânico, embora impusesse o dobro de impostos per capita do que o francês. No entanto, “o povo da França… é muito mais oprimido pelos impostos do que o povo da Grã-Bretanha”. Por que? Porque os impostos eram distribuídos de forma menos equitativa, caindo desproporcionalmente sobre os pobres.

Uma distribuição justa de impostos era a chave para a solidez da economia inglesa em Smith. Os ricos, afirmou, deveriam ser tributados “algo mais do que proporcionalmente” à sua riqueza. “A desigualdade da pior espécie” era quando os impostos deviam “cair muito mais pesadamente sobre os pobres do que sobre os ricos”. As razões não eram morais. Impostos ruins eram simplesmente economia ruim. (1)

É necessário, no século XXI, recorrer aos filósofos iluministas para saber se é ou não "justo" distribuir riquezas, criar programas sociais, tributar os mais ricos para a sociedade, por intermédio do Estado, garantir dignidade para todos os brasileiros? Se pensarmos em Ayn Rand, em seu livro A Virtude do Egoísmo, cada ser humano é dono de si e somente fará, agirá quando quiser, sem imposição, por normas e/ou por pressões sociais. Disso, a sentença, de que a felicidade individual é a autopossessão, a liberdade de agir ou não. Soa, maravilhosamente, como "direito natural", ou seja, contra o utilitarismo. Por estudos em comportamentos humanos, a apatia tem profundas relações com a educação seja familiar, na comunidade, pelas instituições de ensino. Os defensores do Estatuto do Nascituro possui uma essência: ideologia. Várias ideologias se convertem: religiosa, política, econômica.

Moralmente, o aborto é um crime. Pela ética, quanto à autopossessão do gênero feminino, o aborto é um direito. Moral tem a ver com ideologia religiosa, seja qual for. Ética não se baseia, unicamente, na ideologia religiosa, mas num conjunto de ideologias (política, econômica etc.). Como o artigo é sobre a mulher cisgênero, e poderia ser sobre o Buk Angel, no conceito de gerar vida humana intrauterina — recomendo ler Biodireito e Bioética. O valor da vida e seu direito no "Cilindro da Vida" — , é moralmente, como "normal", a gravidez de mulher cisgênero, contudo, "imoral" a gravidez de homem transexual — nasceu com o sexo biológico mulher, contudo, psicologicamente, considera-se a pessoa como do gênero feminino. Eticamente, a gravidez e o amamentar de homem transexual não é "moral" ou "imoral"; é "amoral".

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Isso reflete em outro problema de cunho moral. O aborto é imoral; a transexualidade também é imoral. Depreende-se: é possível criar Estatuo do Heterossexual como defesa da "normalidade" dos biológicos e emocionalmente "normais". Isto é, nasceu biologicamente mulher, os aspectos de "mulher"; nasceu biologicamente homem, os aspectos de "homem".

Notem. Os Estatutos têm ideologias de moralidade (religião). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida deve ser defendida pelo Estado e sociedade, pois sem vida não há espécie humana. No entanto, é hipocrisia defender vida, intrauterina, quando a vida, extrauterina, é mera condições para geração de riqueza. Não importa se miserável ou não. Aliás, campanhas de "Não dê esmola. Dê oportunidade" encerra "Esmola mantém a pessoa na sua condição de miserável. Oportunidade é trabalho. Trabalho é dignidade. Dignidade é gerar bens". A dignidade de uma pessoa está em sua condição de gerar bens; não é a dignidade existencial, anterior a qualquer convenção social ou do Estado. Há o "custo-benefício". Exemplo, os moradores de rua. Há moradores de rua que trabalham, outros não. Os que trabalham, contribuem com o consumismo, com a economia; os "ociosos", nada produzem, de "útil", para a sociedade. E se os "ociosos" necessitarem do Sistema Único de Saúde (SUS), oneraram os trabalhadores sejam moradores de rua "produtivos" ou não moradores de rua (moradores em edificações regularizadas pelas prefeituras).

Se a vida é o bem jurídico tutelado pelo Estado, como princípio do ordenamento jurídico, da consciência coletiva brasileira, o problema é muito mais abrangente do "vida uterina". Isso não quer dizer que o nascituro não deva ser protegido, mas quando há proteção da vida uterina e "vire-se como puder", na questão da vida extrauterina, a premissa de "valor da vida" é mera questão de "particularidade", e não "generalidade do valor da vida". Politicagem!

NOTA:

BOUCOYANNIS, Deborah. Contrary to popular and academic belief, Adam Smith did not accept inequality as a necessary trade-off for a more prosperous economy. Disponível em: https://blogs.lse.ac.uk/politicsandpolicy/adam-smith-and-inequality/

REFERÊNCIAS:

BBC BRASIL. Estudo indica que estresse da mãe afeta bebê no útero.  Disponível: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/07/110719_estresse_mae_feto_mv

BRASIL. Governo Federal. Ministério do Trabalho. Auxílio-reclusão: entenda como funciona esse benefício.  Disponível: https://www.gov.br/inss/pt-br/assuntos/auxilio-reclusao-entenda-como-funciona-esse-beneficio

BRASIL. Câmara dos Deputados.  Saiba mais sobre a tramitação de projetos de lei. Disponível: https://www.camara.leg.br/noticias/573454-SAIBA-MAIS-SOBRE-A-TRAMITACAO-DE-PROJETOS-DE-LEI

______________________.  Obstrução adia votação do Estatuto do Nascituro na Comissão da Mulher.  Disponível: https://www.camara.leg.br/noticias/928709-OBSTRUCAO-ADIA-VOTACAO-DO-ESTATUTO-DO-NASCITURO-NA-COMISSA....

_____________________.  Estatuto do Nascituro é aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação (ano 2013). Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/405803-estatuto-do-nascituro-e-aprovado-pela-comissao-de-financas...

______________________.  Projeto torna aborto crime hediondo.  Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/98223-projeto-torna-aborto-crime-hediondo/

_____. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Financiamento da Assistência Social no Brasil. Caderno SUAS, ano 3, nº 3, Brasília: 2008.

_______. Supremo Tribunal Federal (STF). Mês da Mulher: há onze anos, STF descriminalizou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.  Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503580&ori=1

GloboPlay.  Aiatolá do Irã diz que envenenamento de meninas é crime que deve ser punido com morte.  Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11424076/#:~:text=Jornal%20Hoje-,Aiatol%C3%A1%20do%20Ir%C3%A3%20diz%20...

Evidence. É mais do que cortisol: 6 hormônios que seu corpo libera quando está estressado.  Disponível em: https://www.farmaciaevidence.com.br/saude-integrativa-longevidade/e-mais-do-que-cortisol-6-hormonios...

Revista Debates em Psiquiatria.  A INFLUÊNCIA DO ESTRESSE NA GESTAÇÃO.  Disponível em:  https://revistardp.org.br/revista/article/download/356/313/1083#:~:text=Durante%20o%20estresse% 2C%20a%20ativa%C3%A7%C3%A3o,o%20trabalho%20de%20parto%20prematuro9

SOUZA, Simone Elias de.  OS socorros Públicos NO IMPÉRIO DO BRASIL 1822 a 1834. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/93420/souza_se_me_assis.pdf?sequen

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

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