Com o fortalecimento dos precedentes, solidificados por meio de um sistema, a cultura jurídica, jurisprudencial e acadêmica brasileira navega por águas, digamos, transformadoras.
O modelo imposto pelo Novo Código de Processo Civil, já não tão novo assim, reforçando a preocupação há algum tempo existente em relação à concretização do princípio constitucional da segurança jurídica e a pacificação das relações sociais, perpassa pelo respeito e obediência aos precedentes criados, principalmente, pelos tribunais superiores.
Segundo a lei (1), os juízes e tribunais observarão os precedentes ditos, vinculantes, além de, pelo apego a prudência, se guiarão pelos precedentes superiores e dos órgãos de cúpula a que estiverem vinculados, ainda que não qualificados provenientes dos tribunas de vértice.
A questão está longe de ser simples e fomenta intensos debates acadêmicos.
Ora, o que vem a ser um precedente? Os juízes e tribunais deverão aplicar os precedentes aos casos análogos em matéria de direito, indistintamente? E as questões fáticas que não se assemelham, não merecem relevo? São algumas das indagações que faço.
Há certa preocupação em um sistema que dá força absoluta e prevê a criação de decisões vinculantes advindas dos tribunais superiores, pois as teses lá firmadas impõem uma aplicação para todos juízes e tribunais.
A par disso, sabemos que, sequer a lei é capaz de abranger ou regular todas as situações possíveis aptas a ocorrer dentro do seu espectro fático.
A sociedade e as relações sociais se revelam altamente complexas, razão pela qual o país possui um arcabouço imenso de normas, e contando.
Como então esperar que uma decisão judicial, proferida nos autos de determinado processo, tenha o condão de regular todas as questões de direito análogas, sendo que cada caso concreto revela inúmeras particularidades? Operadores do direito sabem o quanto cada processo é permeado de detalhes.
Aliás, segundo a tradição jurídica romano-germânica que sempre imperou no Brasil, precedente, jurisprudência, não é lei, tampouco fonte primária do direito. O que se deve respeitar, acima de tudo, é a lei.
A jurisprudência não é fonte formal autônoma do direito, limitando-se a interpretar leis já existentes, não criando direito novo. (2)
Aliás, a função primordial do Poder Judiciário é aplicar a lei, e não legislar, função essa atípica que diz respeito apenas as suas questões internas, materializadas pela elaboração do regimento interno dos tribunais.
Mas chegou-se a um ponto, que os precedentes formados em caráter vinculante, ditos qualificados, pelas cortes de cúpula adquiriram uma autoridade superior as normas legais, algumas vezes chegando a atribuir interpretação legal de forma contrária ao seu texto. Podemos citar como exemplo a relativização da taxatividade do rol do artigo 1.015, do CPC. (3)
Nesse julgado, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por relativizar a letra, de clareza solar, da lei, atribuindo recorribilidade imediata a decisões não recorríveis naquele momento processual. Reforça-se, precedente não é lei, tampouco tem aptidão para revogá-la.
Em outros termos, os precedentes vinculantes, proferidos principalmente pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, atingiram um status legal, contrariando a própria lei em tese em alguns casos. São os famosos julgados contra legem, não raros em nosso país.
Mas porque se atribuiu força absoluta aos precedentes criados pelos tribunais superiores? Como uma tese seria capaz de regular milhares de casos análogos espalhados pelo país?
Ao impor um sistema de precedentes pronto, sem a devida maturidade jurídica e social necessária ao seu recebimento, com certa aproximação dos modelos jurídicos da common law, o CPC se esquece das diferenças de cada modelo jurídico, e, para isso, devemos refletir sobre a definição de precedente.
Pela etimologia da palavra, precedente quer dizer algo que precede; ocorrido previamente; anterior. Ora, aplicando o seu significado no mundo jurídico, seria alguma decisão judicial anterior, já prolatada, já ocorrida.
Em outras palavras, precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido. (4)
É o que ocorre, inclusive, no sistema judicial norte americano, uma sentença, por exemplo, é prolatada sem “saber” que pode ser utilizada como fundamento de sentença futura. Nessa esteira, há de ser valorizado, também, o precedente persuasivo.
Não se entende, claramente, a razão de se atribuir a qualificação de precedente vinculante apenas aos proferidos pelos tribunais superiores, tampouco a qualidade de precedente vinculante dentro de determinado tribunal de segundo grau somente como sendo a orientação do plenário ou do órgão especial ao qual estiverem vinculados.
Ora, decisão proferida por turma do STJ em determinado recurso especial não possui caráter vinculante. Mas decisão de recurso especial afetado como repetitivo possui.
Qual é o critério para a vinculatividade? Órgão composto, dentro de determinado tribunal, por um maior número de julgadores? Entendo que nenhum colegiado seja mais qualificado que outro em razão do número de julgadores.
Fato ratificador, é que as turmas dos tribunais, em regra, são compostas por três julgadores.
Concluindo-se que três magistrados são o suficiente para um debate jurídico apto a prolação de uma decisão tida por justa e fundamentada, não sendo necessário recorrer ao órgão especial ou ao plenário de determinado tribunal para que essa decisão seja investida de qualidades dignas de observação, vinculante ou persuasiva.
É de se dizer, temos de valorizar os precedentes persuasivos, fora do rol do artigo 927, do CPC. Pois não é a quantidade de julgadores que reveste de qualidade e legitimidade uma decisão, mas a sua relevante fundamentação a ser utilizada em casos análogos.
Tanto assim o é, que na maioria dos países que utilizam algum sistema de precedentes, não há a prévia “taxação” de determinadas decisões judicias como sendo de estrita observação, mas sim o poder e a força de sua argumentação, fundamentação apta e legítima a orientar casos futuros, mesmo quando a decisão venha dos órgãos judiciais de cúpula.
A jurisprudência é o conjunto de precedentes vinculantes e persuasivos, atestando que um conjunto reiterado de decisões, em que pese não proferidas por órgãos de cúpula, merecem o prestígio pela importância de seu conteúdo e linha argumentativa no bojo de determinada corte de justiça.
Por certo, devemos atribuir importância as decisões vinculantes, contudo não se deve engessar o magistrado, que vive com proximidade o caso concreto, ao proferir a sua decisão, baseada na lei ou até mesmo em outra sentença, quando o quadro fático assim o permita.
Para ser considerada um precedente, a decisão, de que grau for, deverá transcender o caso concreto.
Diz-se isso, pois o que foi decidido em uma determinada sentença, a título de exemplo, certamente retornará ao judiciário em novo processo, como novas partes, novo pedido, mas com mesma causa de pedir.
Nesse caso, o que impediria o magistrado fundamentar sua sentença com base em sentença anteriormente proferida por outro juiz? Se aquela for relevante do ponto de vista argumentativo, nada.
Ao incorporar fundamentos da common law em um país com uma cultura jurídica totalmente alinhada, até então, com a civil law, poderia se colocar em cheque, de determinada maneira, a independência do magistrado, constitucionalmente garantida.
O stare decisis ora imposto, deve ser entendido com cautela de modo a não ir de encontro com a própria finalidade do sistema, há anos amadurecida. Vale relevo, o fato de que a Separação e Independência de Poderes impera no Brasil.
Com essas afirmações, não se nega a importância da jurisprudência coesa e estável, ao passo que as relações sociais avançam de modo implacável e acelerado, não tendo a lei como acompanhar tais mudanças.
Porém, há de se preservar a independência e entendimento do juiz perante a lei, principalmente no caso concreto por ele sentenciado, o qual, por certo, pode subir para um tribunal superior fixar uma tese acerca do direito que se repete, ao largo das peculiaridades de cada caso, e, até mesmo, em determinadas ocasiões, da própria lei.
Não se trata de uma revolta com as alterações impostas pelo sistema, mas sim de uma limitação jurisdicional do magistrado de primeira e segunda instância ao aplicar a legislação pertinente, sendo compelido a emplacar teses firmadas em precedentes vinculantes, como se não houvessem particularidades em casos análogos, além de propor uma infalibilidade do julgador que compõe os tribunais superiores.
O magistrado, seja de que grau for, não pode ser penalizado por entender o caso diferentemente de como entenderam os órgãos responsáveis pela produção dos precedentes vinculantes.
Aos juízes e tribunais pátrios não é dado construir a lei, tampouco se pode impor uma restrição, uma amarra a judicatura, pois se nem a lei é capaz de cobrir todas as lacunas da relação jurídica por ela alcançada, quiçá teria esse condão um precedente judicial, ainda que vinculante.
Nocivo para o sistema judicial e para os jurisdicionados, não é a não observância do magistrado ao julgar pautando-se na lei, deixando de aplicar um precedente vinculante por imposição de particularidades de um caso concreto.
O é a alteração jurisprudencial repentina e sem alteração social relevante que a imponha, promovida pelas cortes superiores em casos que o entendimento resta por anos consolidado. Vale lembrar que jurisprudência é segurança.
Julgadores das cortes de vértice, acostumados a condenar publicamente a “desobediência” dos tribunais de segundo grau, são aqueles que alteram a jurisprudência superior, por anos construída, de forma abrupta, pautados em razões pouco explicadas.
Por certo, as decisões de juízes e tribunais devem buscar orientação nos precedentes, propulsores da uniformização e aptos a evitar a jurisprudência lotérica, dando segurança e clareza ao jurisdicionado de como se comportar nas suas relações jurídicas.
O que limita e engessa o sistema, é uma determinação prévia de observância de determinadas espécies de julgados, prolatados pelas cortes superiores, retirando, em certa medida, a liberdade interpretativa dos juízes e tribunais que possuem um contato próximo com as partes e com as nuances processuais e extra processuais existentes.
Merece lembrança, o fato de que o STF e o STJ não possuem a qualidade de tribunais de revisão, tampouco consubstanciam a terceira e quarta instância revisora de julgados no sistema judicial nacional.
São cortes com a função de proteger e garantir a vigência do direito constitucional e infraconstitucional, tanto é que um dos maiores, senão o maior, impedimento do acesso a elas se revela na impossibilidade de reanálise de fatos e provas.
Provas essas, sempre determinantes para o deslinde de qualquer decisão judicial final, como sentenças e acórdãos, além de produzidas, descartadas e valoradas com a proximidade necessária pelas instâncias de primeiro e segundo grau.
Por tudo isso, reforça-se, louvável a iniciativa, materializada pelo CPC, na tentativa de aperfeiçoamento de um sistema de observância aos precedentes vinculantes, nascidos no “andar de cima”.
Porém, o comportamento dos juízes e tribunais na sua função de julgar e atrelados na independência constitucional/funcional, mostra que o sistema merece reparos e amadurecimento, ao passo que a introdução de um sistema de precedentes pronto e que deu muito certo em países como Inglaterra e Estados Unidos pressupõe a observância de fatores outros, que não a estrita e incontestável obediência a decisões proferidas por tribunais superiores.
A título de evolução do sistema, nos Estados Unidos, existem mais de trinta técnicas para se fazer a distinção do caso concreto para o precedente (distinguishing), além do menor número de leis, principalmente de normas constitucionais (7 artigos e 27 emendas recebidas ao longo de 236 anos de vigência).
Sendo muito superior o número de normas constitucionais e infraconstitucionais, a atividade judicante se revela mais delicada, apta a atrair maior complexidade na interpretação e julgamento de casos, o que denota uma desproporcionalidade na imposição de observância estrita de teses fixadas sobre o direito comum, mas não nos fatos e provas, e direito é fato e prova.
Portanto, a desejável equiparação dos sistemas não se revela possível, merecendo um maior amadurecimento antes de críticas públicas aos julgadores que deixam de aplicar precedentes vinculantes, ao passo que não o fazem por paixão a desobediência, mas com base na análise do caso, tendo sempre por bem a aplicação da orientação vinculante quando caiba fazê-lo.
Art. 927, CPC
LEONARDO GRECO, Instituições de Processo Civil, Vol. I, 5ª ed., Forense, p. 51/52
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DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, Novo Código de Processo Civil Comentado, Editora JusPodivm, 2ª ed., 2017, p. 1519/1520.