RESUMO
O desenvolvimento tecnológico e científico ocorrido no último século, em especial na área da saúde, acarretou aos seres humanos uma maior expectativa e qualidade de vida. No entanto, a história recente demonstrou a que custo a humanidade atingiu o atual grau de evolução em âmbito médico, farmacológico e terapêutico. Tem-se notícia de que os estudos com células-tronco tiveram início na década de 1960, sendo que, no que concerne especificamente às células-tronco embrionárias, as pesquisas foram publicas tão somente a partir de 1998. Tendo em vista as divergências existentes em sua utilização, diversos países proíbem ou possuem alguma restrição no que se refere às pesquisas com células-tronco embrionárias, o que também revela a ausência de uniformidade acerca das possíveis vantagens decorrentes de seu uso. No Brasil, os experimentos se iniciaram apenas no ano de 2010, a demonstrar um certo atraso do país com relação aos estudos com células-tronco embrionárias. A fim de regulamentar a matéria, foi editada a Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005, igualmente conhecida como Lei de Biossegurança, que foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Após intensos e acalorados debates por diversos setores da sociedade, a Suprema Corte brasileira, ao julgar a ADI 3.510/DF, acabou por declarar constitucional o dispositivo legal que permite a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e medicinais. A partir de então foram constituídas empresas especializadas na coleta e armazenamento de material biológico, fazendo surgir novas relações jurídicas até então inexistentes, bem como problemas decorrentes da falha na prestação desses serviços, a ensejar a responsabilização civil pelos danos materiais, morais, estéticos e, eventualmente, pela perda de uma chance. A permissão expressamente conferida pelo Poder Judiciário para a pesquisa com células-tronco embrionárias, considerando a mácula histórica da humanidade, faz surgir indagações relacionadas às questões éticas e eventuais riscos erigidos de sua utilização deliberada. A incipiente normatização acerca do tema, bem como a possível ausência de fiscalização dos laboratórios que se dedicam a tais pesquisas, podem acarretar violações a direitos fundamentais inerentes à dignidade de qualquer indivíduo, repetindo a trágica história nazista quando da realização de cruéis experimentos com seres humanos.
Palavras-chave: Células-tronco embrionárias, pesquisas, questões éticas, responsabilidade civil, riscos.
INTRODUÇÃO
Não é recente o interesse da humanidade em encontrar o ‘elixir da longa vida ou da imortalidade’. Desde a mitologia grega, com o manjar dos deuses do Olimpo, até a mitologia nórdica, cujas maçãs de um pomo poderiam dar vida eterna aos deuses, passando pelas lendas que envolvem as fontes da juventude, sempre houve uma contínua busca pela manutenção da saúde e da vida.
Ao lado da mitologia e das lendas que perpassaram milênios, hodiernamente a humanidade se depara com a realidade das pesquisas científicas que envolvem as células-tronco embrionárias, que possuem uma grande capacidade de diferenciação e transformação em qualquer outra célula do corpo humano, inclusive, podendo formar outro ser humano por completo.
Percebe-se, portanto, que atualmente não é mais preciso recorrer à ficção para quiçá encontrar a imortalidade, uma vez que a tecnologia hoje à disposição da humanidade já proporciona uma palpável possibilidade de, ao menos, prolongar-se a vida a níveis até então inimagináveis.
O presente trabalho tem por escopo, inicialmente, definir, classificar e relatar as origens das células-tronco, para depois adentrar especificamente numa de suas espécies, as células-tronco embrionárias, que ganharam papel de destaque no Brasil, quando da edição da Lei de Biossegurança, objeto de acalorados debates por vários setores da sociedade, em especial das classes científicas e religiosas.
Em seguida, serão expostos os fundamentos jurídicos que embasaram o pedido de inconstitucionalidade da referida norma pelo Procurador-Geral da República, bem como os principais pontos da ratio decidendi do acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal, ao declarar constitucional e, consequentemente, permitir as pesquisas com as células-tronco embrionárias, desde que observadas determinas condições expressamente estabelecidas na Lei de Biossegurança.
Ademais, considerando o atual contexto normativo e jurisprudencial, serão consignadas as novas relações jurídicas surgidas em decorrência das pesquisas com células-tronco embrionárias, mormente a responsabilidade civil das empresas especializadas em coleta e armazenamento de material biológico, tendo em vista eventual falha na prestação desses serviços.
Por fim, será feita uma breve reflexão acerca de algumas questões éticas e dos riscos oriundos das pesquisas com células-tronco embrionárias, notadamente diante da possível ausência de fiscalização nos laboratórios que, ao atuarem às escondidas e a pretexto de alcançar desenvolvimento tecnológico, podem resultar em violação a direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, a exemplo do que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial.
1 - CÉLULAS-TRONCO, SUA ORIGEM E CLASSIFICAÇÃO
As primeiras pesquisas relacionadas às células-tronco tiveram início na década de 1960, tendo como precursor o cientista britânico John B. Gordon, ao substituir o núcleo celular existente no óvulo de um sapo, pelo núcleo de uma célula intestinal madura, constatando que o DNA da célula madura e diferenciada permanecia com as informações necessárias ao desenvolvimento de todas as células do corpo, sendo que o óvulo continuou a se desenvolver normalmente.
No ano de 2012, John B. Gordon, aos 79 (setenta e nove) anos de idade, foi agraciado pelo Prêmio Nobel de Medicina, em Estocolmo, na Suécia. A premiação foi ao mesmo tempo ofertada pelo Instituto Karolinska, ao japonês Shinya Yamanaka (50), pela descoberta, em trabalhos separados por 44 (quarenta e quatro) anos de distância temporal, de que células adultas podem ser ‘reprogramadas’ para se tornarem imaturas e pluripotentes, ou seja, capazes de se especializar em qualquer órgão ou tecido corporal, como nervos, músculos, ossos e pele (GLOBO NOTÍCIAS, 2012).
Tem-se notícia de que as pesquisas com células-tronco se iniciaram no Brasil em 2001, quando da criação do Instituto Milênio de Bioengenharia Tecidual, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O mencionado instituto foi criado com o escopo de fortalecer os estudos acadêmicos e tecnológicos, objetivando a produção de abordagens terapêuticas inovadoras, com o uso de tecnologia celular para o reparo de órgãos e tecidos (ZORZANELLI, 2016).
As células-tronco são erigidas a partir da fecundação do espermatozoide com o óvulo, quando do surgimento do zigoto que, após ser objeto de mitoses, resulta em uma ‘bola de células’, que se diferenciam originando os folhetos germinativos, diferenciando-se novamente em tecidos e órgãos do organismo. Essas células originadas das mitoses do zigoto são as células-tronco, que também são chamadas de células-mãe ou células estaminais (MORAES, 2022).
Referidas células possuem uma enorme capacidade de se transformar em qualquer célula do corpo humano, podendo, assim, replicar-se várias vezes, o que as difere das demais células do organismo. São classificadas em células-tronco adultas ou não embrionárias, células-tronco induzidas, e células-tronco embrionárias.
O presente estudo tem por precípuo objeto as células-tronco embrionárias, notadamente em virtude de sua alta capacidade de diferenciação e de transformação em qualquer tipo de célula, de modo que possui relevante função no que concerne à regeneração de tecidos, podendo conter o avanço de determinadas doenças ou, até mesmo, encontrar a sua cura, além de outras diversas funções terapêuticas e medicinais, utilizadas em benefício do ser humano.
2 - CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS
As primeiras pesquisas com células-tronco embrionárias humanas foram publicadas no ano de 1998, pela equipe do Prof. James A. Thomson, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos. Há também relato de que o cientista John D. Gearhart, da Universidade Johns Hopkins, realizou em 1998 pesquisas com células tronco fetais humanas (GOLDIM, 2002).
No Brasil, o primeiro registro de utilização das células-tronco extraídas de embriões foi em 2010, para curar lesões de uma fêmea de lobo-guará, atropelada por um caminhão. O tratamento durou quatro meses, metade do tempo previsto para a recuperação do animal (MAGALHÃES, 2022).
As células-tronco embrionários, da mesma forma como é externada a sua denominação, são aquelas encontradas nos embriões, aproximadamente 05 (cinco) dias após a fecundação do espermatozoide com o óvulo. Assim, formam-se no começo do desenvolvimento embrionário, bem como se destacam pelo processo chamado de ‘diferenciação celular’, apresentando alta capacidade de se transformar em qualquer tipo de célula. São classificadas em totipotentes e pluripotentes.
As totipotentes são células-tronco embrionárias que podem originar tanto um organismo totalmente funcional, como qualquer tipo celular do corpo, inclusive, todo o sistema nervoso central e periférico (GAGE, 2000). Correspondem às células do embrião recém-formado e têm potencial para originar até mesmo as células do folheto extraembrionário que formarão a placenta, contudo, são efêmeras e desaparecem poucos dias após a fertilização (ROBEY, 2000).
Por sua vez, as células-tronco embrionárias pluripotentes são capazes de originar qualquer tipo de tecido, entretanto, não possuem o potencial de criar um organismo completo, formando a massa celular interna do blastocisto depois dos quatro dias de vida e participam da formação de todos os tecidos do organismo (ROBEY, 2000). Também estão presentes em indivíduos adultos, conquanto em menor número, podendo originar células do sangue, ossos, cartilagem, músculos, pele e tecido conjuntivo, por exemplo, quando extraídas da medula óssea (GAGE, 2000).
As pesquisas realizadas em células-tronco embrionárias ainda são incipientes, demandando um contínuo e aprofundado estudo dos cientistas. Sabe-se, outrossim, que os benefícios decorrentes de sua utilização são enormes, mormente em benefício da vida e da saúde dos seres humanos.
No entanto, não há dúvida de que alguns riscos são erigidos de sua deliberada utilização, causando preocupação e uma certa cautela dos estudiosos, motivo pelo qual infindáveis discussões surgiram em torno de sua aplicação, em especial nas áreas médica e terapêutica.
Insta consignar que as células-tronco embrionárias, quando de sua retirada, acabam por destruir totalmente o embrião do qual decorrem, de modo que a sua pesquisa ainda não é mundialmente aceita de maneira uniforme, uma vez que considerada um atentado à vida humana.
Destarte, inúmeros países proíbem ou possuem alguma restrição no que concerne à pesquisa com células-tronco embrionárias, a exemplo de Portugal, Alemanha, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Reino Unido, Áustria, Bélgica, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda e Suécia (LINO, 2022).
Destaca-se que no Brasil também não foi diferente, precipuamente depois da edição da Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005, intitulada como Lei de Biossegurança, que objetivou regulamentar o uso das células-tronco embrionárias, provenientes de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que atendidas determinadas condições e unicamente para fins de pesquisa e terapia.
A norma editada fez surgir acalorados debates entre diversos setores da sociedade, alguns contrários e outros favoráveis à utilização das células-tronco embrionárias para pesquisas nas áreas médica e terapêutica, de modo que acabou sendo inevitável o ajuizamento de ação a fim de questionar a constitucionalidade da referida lei, que foi objeto de controle abstrato por meio da ADI 3.510/DF.
3 – LEI DE BIOSSEGURANÇA – ADI 3.510/DF
A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510/DF, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, teve por objeto especificamente o art. 5º da Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), que está assim redigido:
Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Ao perscrutar o citado dispositivo legal, constata-se que procurou o Legislador autorizar as pesquisas com células-tronco embrionárias, contudo, com a observância de determinadas cautelas, notadamente objetivando o respeito à vida intrauterina que ainda irá se desenvolver.
Não obstante, conforme alhures mencionado, acalorados debates foram travados por diversos segmentos da sociedade, especialmente entre as classes científicas e religiosas, com ambos os lados externando substanciosos e convincentes fundamentos, aqueles favoráveis e estes contrários à utilização das células-tronco embrionárias, motivo pelo qual restou necessário, inclusive, que fossem agendadas incontáveis audiências públicas com o escopo de fornecer elementos aos julgadores acerca do tema sub examine.
O Procurador-Geral da República, na sua função de Fiscal da Ordem Jurídica, em síntese, utilizou os seguintes argumentos a fim de justificar a inconstitucionalidade da norma:
a utilização em pesquisas ou terapias de células-tronco embrionárias coletadas de embriões para fertilização in vitro, ainda que sejam posteriormente descartados, violaria o direito à vida e o princípio da dignidade humana, tutelados, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, da Constituição Federal de 1988;
o início da vida humana dar-se-ia na formação do zigoto, produto da fecundação do óvulo com o espermatozoide;
as células-tronco são responsáveis pela produção das proteínas e enzimas que permitirão ao embrião a formação de tecidos que se diferenciam e se renovam ao longo da vida;
a Lei de Biossegurança seria inconstitucional por retirar o embrião da tutela constitucional, em desconsideração à vida humana ali existente.
A despeito dos louváveis fundamentos esposados pelo Procurador-Geral da República, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o artigo 5º da Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), permitindo as pesquisas com células-tronco embrionárias, desde que observadas as condições preceituadas na norma.
A ratio decidendi que resultou na conclusão adotada pela Suprema Corte, restou concentrada principalmente nos seguintes pontos:
prevalência da autonomia da vontade, da igualdade, do planejamento familiar, da vida digna e da liberdade de expressão intelectual e científica, da laicidade do Estado brasileiro, e desde que observadas as cautelas na condução das pesquisas e na realização das terapias;
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a Constituição Federal não define quando inicia a vida humana e não se pronuncia sobre a vida pré-natal, bem como não tutela todo e qualquer estágio da vida humana como bem jurídico autônomo;
a inviolabilidade da vida que está consagrada no artigo 5º da Constituição Federal respeitaria exclusivamente o individuo personalizado;
a vida é tutelada simultaneamente nos seus sentidos notarial, biográfico, moral e espiritual, mas a Constituição Federal, ao tratar dos direitos individuais, refere-se tão somente ao indivíduo-pessoa;
o pré-embrião foi excluído da condição de nascituro, uma vez que teria apenas uma mera probabilidade de nascer;
a utilização das células-tronco embrionárias para a pesquisa e tratamento de pessoas, não apenas tutela o direito à vida, como também assegura a existência digna aos indivíduos que esperam por tratamento e cura de doenças;
a regulamentação do uso de células-tronco embrionárias, por meio de parâmetros objetivos pré-definidos, não traria qualquer vício de inconstitucionalidade, ao revés, seria medida essencial à tutela da autonomia privada e à garantia do desenvolvimento responsável da ciência;
as pesquisas com células-tronco embrionárias são fundamentais à tutela do direito à saúde;
nas células-tronco embrionárias só haverá vida se ocorrer a intervenção humana mediante a fertilização in vitro; o que se diferencia do aborto, cuja interrupção é por intervenção humana da vida no útero.
Dessa forma, encontra-se hodiernamente pacificada no Brasil a questão relativa à utilização das células-tronco embrionárias para fins medicinais e terapêuticos. No entanto, considerando o dinamismo e a complexidade das relações sociais, verifica-se hoje o surgimento de alguns problemas que decorrem e estão intrinsicamente ligados à declaração de constitucionalidade da referida norma, precipuamente no âmbito da responsabilidade civil.
4 – DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES JURÍDICAS ORIGINADAS DA UTILIZAÇÃO DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS
A declaração de validade da norma relativa à utilização das células-tronco embrionárias, acabou por originar relações jurídicas até então inexistentes no Ordenamento Jurídico brasileiro e que agora estão sendo enfrentadas pelo Poder Judiciário.
A partir de então foram constituídas inúmeras empresas especializadas na prestação de serviços de coleta e armazenamento de material biológico, cuja atividade normalmente é exercida durante e após o parto, quando da retirada do cordão umbilical e da placenta.
A coleta e o armazenamento das células-tronco embrionárias têm por finalidade a preservação de material biológico, extraído da placenta e do cordão umbilical de neonatos, pelo regime da criopreservação, objetivando o futuro tratamento de patologias que eventualmente possam acometer o indivíduo.
Segundo informações constantes no 2º Relatório de Produção de Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário para Uso Autólogo (BSCUPA), publicado em 2011, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram armazenados no Brasil, até o ano de 2010, aproximadamente 45 (quarenta e cinco) mil unidades de sangue de cordão umbilical, sendo que apenas 8 (oito) foram utilizadas para transplante (RINALDI, 2013).
Revela-se natural que, ao longo do tempo, ocorram falhas na prestação desses serviços, como, por exemplo, quando o responsável pela coleta não comparece tempestivamente no momento do parto, quando o material biológico não é apropriadamente armazenado, ou quando o descongelamento é inexitoso acarretando a sua perda.
Não há dúvida de que é contratual a relação jurídica entre a empresa especializada e a pessoa física contratante, bem como que o regramento aplicável é o consumerista, devendo ser aplicado o microssistema normativo tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor.
Vale ressaltar que o art. 2º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC), define consumidor como sendo qualquer pessoa que contrata o serviço como destinatário final, de modo que a relação jurídica, malgrado possa ser ultimada por qualquer dos genitores, compreende a unidade familiar (pai, mãe e nascituro) como destinatária da contratação, exaurindo-se o serviço prestado na utilização do material biológico, não havendo qualquer escopo de circulação econômica ou repasse ao mercado de consumo. Por outro lado, nos moldes do art. 3º do CDC, resta indubitável a condição de fornecedora da empresa especializada.
A despeito de haver divergência acerca do tema, considerando que as relações jurídicas formadas ainda são recentes, pode-se dizer que os contratos de prestação de serviços de coleta e armazenamento de células-tronco embrionárias, resultam apenas em obrigação de meio à empresa especializada e não de resultado, cabendo tão somente, a fim de excluir a responsabilidade civil, a demonstração de que, ao longo de todo o processo, foram adotadas todas as medidas e técnicas adequadas ao procedimento médico (REsp 992.821/SC, STJ, 2012).
Por sua vez, devidamente demonstrada a responsabilidade civil da empresa especializada, tendo em vista a comprovação de falha na prestação dos serviços de coleta e armazenamento do material biológico, deve haver o integral ressarcimento dos danos materiais, morais e estéticos eventualmente sofridos e despendidos pelo consumidor ante a infringência contratual. Da mesma forma, conquanto haja divergência jurisprudencial, podem ser encontradas decisões aplicando ao caso a Teoria da Perda de uma Chance, considerando que restou frustrada a expectativa de uma vantagem futura (Apelação 0121698-24.2007.8.19.0001, TJ/RJ, 2012).
5 – DAS QUESTÕES ÉTICAS E DOS RISCOS NAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS
Os avanços tecnológicos, em especial os relacionados às áreas médica, farmacológica e terapêutica, desde o início do século passado até os dias atuais, tiveram um imensurável desenvolvimento, proporcionando longevidade e uma melhor qualidade de vida aos seres humanos.
Sabe-se, contudo, que tal evolução científica é resultado de intensos estudos que, conforme demonstrado pela história recente, utilizam-se de técnicas e métodos questionáveis, violando os mais básicos direitos inerentes à existência digna de qualquer indivíduo, a exemplo dos fatos notoriamente conhecidos que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial.
Os seres humanos, a época não pertencentes à intitulada casta germânica, foram objeto das mais variadas experiências, cruel e sadicamente realizadas a pretexto de se obter a cura das patologias que acometiam os soldados alemães. A despeito de ter sido um importante marco histórico para a ciência, uma vez que trouxe reflexos positivos que até hoje influenciam as áreas médica e farmacológica, não há dúvida das reiteradas e graves violações ao princípio basilar da dignidade da pessoa humana.
Eram inúmeras as atrocidades ocorridas nos campos de concentração nazista, citando-se como exemplo as praticadas em Dachaun (Sul da Alemanha), ao mergulharem os prisioneiros despidos em temperaturas abaixo de zero, obrigando as vítimas a ficar de pé ou deitadas, nuas, ao ar livre, no auge do inverno, de nove a quatorze horas, sendo que, ao falecerem, os seus respectivos órgãos eram retirados e enviados ao Instituto de Patologia de Munique, e os corpos eram descongelados a fim de posteriormente serem utilizados em técnicas experimentais com finalidades militares (RECKZIEGEL, 2013).
Destarte, considerando a enorme mácula histórica no que concerne às pesquisas científicas realizadas na área da saúde, alguns questionamentos devem ser aventados especificamente em relação aos experimentos com células-tronco embrionárias. Atualmente, com o expresso aval da Suprema Corte brasileira, conquanto devam ser respeitadas determinadas condições, diversos laboratórios têm se dedicado ao estudo e, quiçá, de forma duvidosa ante incipiente fiscalização erigida pela legislação vigente.
Faz-se mister ressaltar que a clonagem, cujo estudo é altamente questionável ante os reflexos morais e éticos que podem impactar a sociedade, também decorre das pesquisas com células-tronco embrionárias. Assim, a indagação que surge é no sentido de saber se os laboratórios médicos, às escuras e de forma velada, não estão direcionando todos os seus esforços na obtenção de um clone humano.
A imensidão territorial do país e, conforme antes mencionado, a ainda incipiente fiscalização erigida pela legislação de regência, poderá ser um incentivo à pesquisa celular objetivando não apenas a clonagem de seres humanos, mas também de outros experimentos científicos que sequer podem ser imaginados pela sociedade atual, que estão sendo realizados às escondidas a pretexto de se alcançar um maior desenvolvimento nas áreas médica, farmacológica e terapêutica.
Os fatos históricos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial não podem ser nunca olvidados, de modo que a vigilância deve ser constante para que o exemplo nazista não se repita nos dias atuais. Por óbvio, o desiderato da humanidade é a busca de uma vida longeva e saudável, contudo, a sua obtenção não pode ser um fim em si mesmo, alijando-se os princípios fundamentais e basilares que devem tutelar todo e qualquer indivíduo.
CONCLUSÃO
A idealização de uma vida sempre saudável é, sem sombra de dúvida, um dos principais objetivos almejados por qualquer indivíduo. No entanto, tal finalidade deve estar em consonância com postulados éticos e morais, que não podem ser colocados de lado a pretexto de se atingir o grau máximo de desenvolvimento tecnológico nas áreas médica, farmacológica e terapêutica.
A história recente deve servir de exemplo a não ser seguido pelas futuras gerações, uma vez que o ser humano não mais pode ser utilizado como um mero objeto e, por consequência, vítima de atrocidades em prol da ciência como um fim em si mesmo.
A ficção outrora existente e intangível, hodiernamente foi substituída pela realidade palpável de uma diferenciação celular, que poderá, inclusive, formar outro ser humano por completo, seja para simplesmente armazenar órgãos vitais a serem transplantados, seja para suceder uma pessoa que já não mais possui condições físicas de sobrevivência.
As pesquisas com células-tronco embrionárias não mais podem ser olvidadas, principalmente diante das consequências decorrentes de seus estudos que, acaso não sejam satisfatoriamente regulamentados e fiscalizados, poderão acarretar numa continua e imperceptível alteração dos princípios éticos e morais, que não mais servirão de paradigma para as gerações futuras, em detrimento de toda a sociedade.
Não obstante alguns países ainda apresentarem resistência à permissão de pesquisas com células-tronco embrionárias, no Brasil o atual contexto fático e legiferante não mais possibilitará retrocesso, precipuamente diante do expresso aval da Suprema Corte, do qual resultou novas relações jurídicas até então inexistentes no Ordenamento Jurídico brasileiro.
Sabe-se que são inúmeros os benefícios provenientes do estudo das células-tronco extraídas de embriões humanos, entretanto, ainda se revelam desconhecidos todos os riscos de sua utilização, seja intrinsicamente ao indivíduo, seja no que concerne à sociedade como um todo, que, conforme anteriormente relatado, poderá sofrer uma profunda transformação em seus valores sociais.
Destarte, devem os Países, as organizações não-governamentais e os cidadãos, ficarem sempre vigilantes para que os estudiosos não ultrapassem as barreiras da ética e da moral, em especial para que não realizem pesquisas às escuras, violando direitos fundamentais que foram arduamente conquistados ao longo da história.
A mitologia e a ficção foram hoje substituídas pela concreta possibilidade de se atingirem resultados que sequer podem ser mensurados, que dependerão apenas do esforço responsável do ser humano em proporcionar aos seus pares uma vida mais saudável ou, talvez num futuro distante, a imortalidade tão sonhada desde os tempos mais remotos.
Nesse contexto, almeja-se que a serenidade prevaleça nas relações sociais, em especial quando da obtenção dos resultados decorrentes das pesquisas com as células-tronco embrionárias, bem como que não se repitam os graves erros e imperdoáveis do passado, que nos faz questionar a que ponto pode chegar o ser humano para atingir os seus questionáveis objetivos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 - Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.
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John B. Gordon - Nascido no ano de 1933 em Dippenhall, na Grã-Bretanha, concluiu o doutorado na Universidade de Oxford (1960) e o pós-doutorado no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Atualmente é professor emérito de Biologia do Desenvolvimento no Departamento de Zoologia da Universidade de Cambridge e gerencia um instituto que leva o seu nome voltado à pesquisa sobre câncer e biologia do desenvolvimento.
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Shinya Yamanaka – Nasceu no ano de 1962 em Osaka, no Japão. Formado em medicina (1987), possui especialização em cirurgia ortopédica, bem como é PhD pela Universidade de Osaka (1993). Trabalhou no Instituto Gladstone, em São Francisco, nos Estados Unidos, onde se realizam pesquisas sobre doenças cardiovasculares, virais e neurológicas. Atualmente é professor na Universidade de Kyoto.
STJ, REsp 992.821/SC, Relator Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/8/2012, DJe 27/8/2012.
TJ/RJ, Apelação 0121698-24.2007.8.19.0001, Relator Desembargador Luciano Rinaldi, Sétima Câmara Cível, Julgado em 23/5/2012, DJe 29/5/2012).
ZORZANELLI, Rafaela Teixeira. Pesquisa com células-tronco no Brasil: a produção de um novo campo científico. Scielo, 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/hcsm/a/HpHtsFVjQLN8RTVBFWzzZMh/#:~:text=O%20desenvolvimento%20de%20pesquisas%20com,Minist%C3%A9rio%20da%20Ci%C3%AAncia%20e%20Tecnologia.>. Acesso em: 14 dez. 2022.