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Médicos podem comercializar produtos?

Agenda 17/03/2023 às 17:42

Falamos anteriormente, nesta coluna, sobre os “médicos empresários”, abordando a pluralidade de papéis que o médico pode (e deve) assumir em sua vida e carreira, como qualquer outro profissional liberal. E a nossa abordagem acabou despertando uma dúvida latente em grande parte da classe médica: a comercialização de produtos aos pacientes é permitida? Embora seja uma questão aparentemente simples, trata-se na verdade de um assunto delicado, que merece uma análise bastante cuidadosa.

 Quando se fala em comercialização de produtos, no sentido estrito do termo, já é possível visualizar as barreiras éticas existentes em relação ao exercício da medicina. Em primeiro lugar, temos a previsão do art. 58 do Código de Ética Médica, que veda expressamente ao médico o exercício mercantilista da medicina. O mesmo entendimento pode ser identificado de maneira ainda mais clara no inciso IX do Capítulo I, que trata dos princípios fundamentais:

 IX – A medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.

 A proibição prevista no CEM é totalmente razoável, e justificável. Pois considerando a confiança depositada no médico pelo paciente, e sua ampla submissão ao profissional no ato médico, seria um total contrassenso permitir que o médico lhe ofertasse algum produto, em um contexto de tratamento de enfermidade, ou até mesmo de risco à vida. É uma situação em que, literalmente, o paciente compraria qualquer coisa. Já do lado do médico, temos um inegável conflito de interesses. Portanto, a disposição do CEM é assertiva e necessária. 

 Portanto, é expressamente vedado ao médico comercializar produtos a seus pacientes (o que inclui medicamentos) durante o exercício do ato médico. Contudo, conforme exposto inicialmente, a questão não é tão simples.

 Embora exista a referida vedação à comercialização de produtos e medicamentos no exercício do ato médico, esta proibição não afeta, por exemplo, a livre prescrição de medicamentos e produtos, sem que exista um claro contexto mercantil. Pelo contrário, trata-se de uma prerrogativa inarredável do médico, nos termos do Inciso II do Capítulo II do Código de Ética Médica, que trata dos direitos do médico:

 II – Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.

 No mesmo sentido, os médicos podem utilizar livremente medicamentos e produtos durante o exercício do ato médico, repassando os custos destes, aos pacientes. Como exemplo, podemos citar a administração de medicamentos e uso de insumos em pequenos procedimentos cirúrgicos, realizados em clínicas particulares. O mesmo vale para medicamentos de difícil administração pelo próprio paciente. Tais situações não representam comercialização ou venda de produtos, nem mesmo infração ética.

 Outra situação permitida eticamente é o repasse de produtos, pelo médico a seus pacientes, ainda que não os utilizando durante o exercício do ato médico, como citado mais acima. Contudo, é ético desde que o médico o repasse no valor exato da aquisição, ou seja, sem obter lucro. Podemos citar como exemplo os oftalmologistas, que fornecem lentes de contato para seus pacientes. A regra também se aplica a certos medicamentos de difícil acesso, caso o médico os possua na clínica.

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 Verificamos que a situação é bem mais abrangente e complexa do que aparenta, à primeira análise. Nos casos mais acima apresentados, embora haja a entrega do medicamento mediante pagamento pelo paciente, não há barreira ética porque não existe objetivo mercantilista, ou conflito de interesses. O único foco é o paciente, e a preservação ou melhora de sua saúde.

 Por outro lado, há um claro impedimento em outras situações, mesmo sem que o médico não forneça algo ao paciente, e receba dele alguma contrapartida. É o caso da indicação de medicamentos e produtos, de empresas que ofereçam contrapartidas ao médico, pela indicação. Tal conduta é expressamente vedada nos artigos 68 e 69 do CEM. A prática já foi objeto de inúmeros escândalos, sendo prevista e tratada também no art. 1º da Resolução CFM 1.595/2000:

 Art. 1º - Proibir a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos ou equipamentos de uso na área médica.

 Contudo, é cada vez maior o assédio de propagandistas e representantes de laboratórios junto aos médicos, com a finalidade de induzi-los a indicar seus produtos. E neste ponto, cabe ao médico ter uma grande cautela em sua conduta, pois ainda que ele acredite que o medicamento ou produto seja o melhor para a saúde de seu paciente, o fato de aceitar uma contrapartida do fornecedor para realizar a oferta, causa um claro conflito de interesses, que pode causar reflexos não só éticos, mas também civis e penais para o médico. Isso sem falar no pior dos reflexos, que é a perda do foco na saúde do paciente. E por fim, há ainda o risco de sua exposição negativa na mídia, caso o médico seja envolvido em uma investigação ou reportagem sobre o tema, o que pode abalar a confiança de seus pacientes e destruir sua imagem e reputação.

 Se a oferta de medicamentos e produtos de terceiros mediante a contrapartidas e vantagens já é vedada, obviamente, o mesmo se aplica a produtos e medicamentos produzidos pelo próprio médico, que sejam eventualmente comercializados a seus pacientes, com o objetivo de lucro. Pois segundo o CEM, o ato médico deve ser totalmente desvinculado de qualquer atividade comercial, sob pena de emprego de atitude deontologicamente reprovável. 

 Por outro lado, nada impede que um médico exerça suas atividades junto aos seus pacientes, e paralelamente, de forma totalmente desvinculada, empreenda no setor da saúde, com o desenvolvimento de tecnologias, medicamentos e produtos. A propósito, não há profissional melhor para desenvolver tais atividades do que os próprios médicos, desde que preparados, bem assessorados, atentos às possibilidades de conflitos de interesse, e conscientes das barreiras éticas existentes. Seu conhecimento técnico, aliado à experiência adquirida com a vivência diária junto aos pacientes, pode fornecer uma bagagem ímpar para o desenvolvimento de novas tecnologias e inovações, que atendam aos interesses dos pacientes e da sociedade.

 Neste caso, o que não pode faltar é transparência e ética. Pois embora o médico possa desenvolver suas atividades empresariais livremente, ele não deve envolver tais atividades com o ato médico praticado junto a seus pacientes, sob pena de recair nas atitudes deontologicamente reprováveis anteriormente apontadas.

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 No ato médico, o único interesse do profissional deve ser a preservação ou melhora da saúde do paciente, sem que algo corrompa este direcionamento único e obrigatório. Portanto, o profissional que exerce a atividade médica e também empreende de forma mercantil no setor da saúde, deve manter suas atividades 100% separadas e distintas, pois a confusão entre a o ato médico e as atividades mercantis cria um inevitável conflito ético, moral e legal, e seus efeitos podem ser devastadores para a carreira do médico.

 

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

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