"However provocative and generative it may be to treat law as literature, we must never forget that law is not literature"
Paul Gewirtz, Narrative and Rhetoric in the Law, p. 5.
O movimento Direito e Literatura suscita olhares intrigantes sobre a discursividade normativa. Paul Gewirtz, professor de Direito na Universidade de Yale, em New Haven, nos Estados Unidos, que fora assessor de Thurgood Marshall na Suprema Corte (1971-1972), e que colaborou ativamente com a administração Bill Clinton, propõe que se contemple o Direito como manifestação de trocas lingüísticas, episódios narrativos e artifícios retóricos. O Direito seria também performance, explicação, fragmento de estória, ou mesmo toda uma história. O mistério que envolve o tribunal do júri, e a atuação de advogados, promotores, testemunhas e peritos pode bem ilustrar a assertiva. Essa narratividade que se encontra implícita na lei e nos problemas do Direito, especialmente quando tomados em sua dimensão cotidiana, expressivamente dolorida e fática, provocam o interesse e a curiosidade. Parece que todo mundo sabe ou intuiu muita coisa de Direito; opina-se sobre qualquer questão jurídica.
Observa-se simpatia mediática para com temas jurídicos, voyeurismo legalista que emula espectadores putativos de cortes judiciais imaginárias (cf. GEWIRTZ, 1996). A premissa é comprovada nos Estados Unidos da América, país que vê a multiplicação de programas de televisão que reproduzem salas de justiça. Encena-se o teatro do Direito. O jurídico torna-se espetáculo. Tais programas, que têm juízes imaginários (ou reais) como árbitros histriônicos conquistam audiências, dividem opiniões, provocam as reações mais inusitadas. O Direito transforma-se em novela de televisão ou em programa de auditório, isto é, law as soap opera and game show (cf. PORSDAM, 1999, pp. 89 e ss.). The People´s Court programa televisivo norte-americano que é transmitido desde 1981 alvanca sucesso imediato, seguido por outros programas, a exemplo de Divorce Court, L.A. Law, Judge Judy, Night Court (cf. PORSDAM, cit., p. 92).
Retoma-se religião nacional, o Direito, fato que havia sido observado por Aléxis de Tocqueville, embora em outros tempos, sob outras circunstâncias, e com propósitos efetivamente muito distintos. Tocqueville, o célebre juiz e viajante francês, observou que "o mais difícil para um estrangeiro compreender nos Estados Unidos é a organização judiciária. Não há, por assim dizer, acontecimento político em que não ouça invocar a autoridade do juiz; e daí conclui naturalmente que nos Estados Unidos o juiz é uma das primeiras forças políticas" (2005, p. 111). Essa fixação norte-americana com problemas jurídicos é também o que pode justificar o interesse que mantém os livros de John Grisham e de Scott Turrow na lista dos mais vendidos, dos mais discutidos e dos mais adaptados para versões cinematográficas.
Gewirtz observa que narrativa e retórica invadem o nicho do Direito; da invasão transforma-se o invadido na feição e imagem do invasor: narrativa e retórica tornam-se o próprio Direito (cf. GEWIRTZ, 1996). Não se trata de retomada da tradição sofística, e do questionamento da objetividade e da verdade, como fios condutores de argumentação centrada no floreio e na beleza intrínseca, modos de pensar divorciados da realidade, da ética e da eficácia, e que galvanizaram toda a crítica metafísico-platônico-aristotélica que abominou relatividade de Protágoras e de Górgias. A intuição de Gewirtz não é novidade para quem percebe no Direito referencial perene de usos da linguagem e de problemas e técnicas na produção oral e escrita. Mas é iconoclasta para o leitor ingênuo, que ainda acredita em metáforas de neutralidade e em dragões chineses de objetividade. Porém é para esse leitor inocente, no entanto, que o Direito também se destina; e a confiança que aquele primeiro deposita neste último tem como fonte um conjunto de crenças, que não são necessariamente individuais e idiossincráticas; são convencionais, e de aceitação comum (cf. FISH, 2003, p. 321), nesse sentido de que "(...) o direito é sempre uma força autorizada, uma força que se justifica ou que tem aplicação justificada (...)" (DERRIDA, 2007, p. 7).
Volto para Gewirtz, para quem o exame do Direito enquanto excerto de narrativa e produto da retórica poderia engendrar significados diferentes, e insuspeitos. Cogita-se da relação entre narrativas e a teoria e a argumentação jurídicas. Analisa-se como juízes, advogados e promotores constroem as mais variadas estórias. O Direito afastar-se-ia da busca kantiana da verdade, tomado à luz da subjetividade e da relatividade. E de modo analógico, a lembrança do existencialismo francês, a propósito de que "escrever é, pois, ao mesmo tempo desvendar o mundo e propô-lo como uma tarefa à generosidade do leitor" (SARTRE, 2006, p. 49). E na medida em que revelado pela escrita o Direito, assimilado ao ato de escrever, suscita também revelação do mundo, cujo conteúdo é enviado ao destinatário, plasmado na miríade de atores jurídicos que há.
O Direito cairia refém da relatividade da narrativa. Convincente. Tanto melhor. Inadequada. Fazer o quê? Como recontá-la? Vale qualquer recurso. E como remendá-la? São os embargos de declaração, na existência de previsão legal, que também não é universal, o que retoma a indelicada questão da negação da cientificidade do Direito. Verifica-se como estórias são problemáticas em julgamentos. Fatos e versões fundem-se na narrativa de quem afirma e se diluem na fala de quem contesta. Decisões judiciais são prenhes de retórica, para Paul Gewirtz, de modo que a autoridade do julgamento não é definida tão-somente pela autoridade do julgador. Ele precisa convencer. Gewirtz propõe que se preste mais atenção nos fatos do que nas regras que capturam os fatos. Sugere que olhemos menos para a substância, e mais para a forma. E a receita não acena necessariamente com gongorismo jurídico ou barroquismo burocrático. Na narrativa jurídica a forma dá essência à coisa, e a sugestão é de linhagem garantida: radica na tradição discursiva do direito romano.
Gewirtz insiste que devamos nos preocupar menos com as idéias e mais com o modo como estas últimas são comunicadas. Propõe retorno à análise das formas. Questiona como o Direito é encontrado, mas também quer entender como é feito. Propõe leitura do Direito como artefato cultural, em tradição da antropologia relativista que remonta a Franz Boas, para quem determinada sociedade não seria eventualmente melhor ou pior do que outra; são indiferentes, justamente porque são diferentes. E porque o Direito é artefato cultural, em sua forma também escrita, seria examinado adequadamente a partir de ferramentas da teoria literária, a exemplo do sempre recorrente conceito de leitor ideal.
Embora, bem entendido, Gewirtz reconheça que Direito e Literatura não sejam exatamente iguais, enquanto campos do saber, especialmente porque há diferenças entre sentidos estéticos e pragmáticos. Se por um lado o Direito presta-se para coagir, a Literatura, reconheça-se, não o faz. Pelo menos em princípio. Não se pode dizer que todo leitor de A Cabana do País Tomás transformou-se em abolicionista convicto, na medida em que ordenado por Harriet Beecher-Stowe para que cerrasse filas ao lado dos boys in blue de Abraham Lincoln. No entanto, reconheça-se, a Literatura é veículo para a revolução, exemplifico com uma carta de Antonio Gramsci sobre o futurismo italiano, tal como reproduzida em excerto de Leon Trotsky, a propósito da relação entre luta revolucionária e prática literária (cf. TROTSKY, 2007, p. 107 e ss.).
Convergem as duas grandezas, Direito e Literatura, no entanto, quando se percebe que essas duas realidades culturais expressam-se por meio de realidade que moldam, mesmo quando se transita em âmbito de ficção. Assim, ainda segundo Gewirtz, a questão mais importante radicaria na constatação de que textos jurídicos também demandam interpretações. Gewirtz indaga a respeito de papeis desempenhados por autores e leitores, na criação do sentido dos textos. Indiretamente, retoma-se à imagem de obra aberta, identificada por Umberto Eco, a propósito de concepção de um "centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis" (ECO, 1968, p. 41) ou mesmo assenta-se na compreensão de comunidades interpretativas, organizadas em torno de grupos vinculados a determinados nichos de exegese (cf. WEST, 1988, p. 129).
Gewirtz insiste que Direito e Literatura também se aproximam na medida em que se possa promover o comprometimento em se agrupar pessoas originárias de campos diferentes de estudo, na busca de objetivos comuns. A argumentação é traço ordinário nos textos jurídicos e literários, e até nos textos normativos; é que esses últimos contam com argumento auxiliar, e por vezes eficiente, identificado pela sanção. Juizes, advogados, promotores, professores argumentam o tempo todo. A técnica do convencimento é objeto de discussão, do mesmo modo que é a essência do que se diz e se faz. E o que faço aqui é exemplo de esforço argumentativo. Metanarrativa, a linguagem que fala dela mesma.
Gewirtz pretende aproximar Direito e Literatura de modo que esta última possa alavancar aquele primeiro. Insiste, e reconhece, efetivamente, que Direito não é Literatura (GEWIRTZ, cit., p. 5). Segue, nesse aspecto, advertência de Wendy Nicole Duong, professora de Direito em Denver, para quem law is law and art is art – isto é, o direito é o direito e arte á arte (cf. DUONG, 2005, p. 1). No entanto, há multiplicação de estórias no discurso jurídico. Há profusão de narrativas. E não há privilégio da narrativa ficcional em desfavor das demais narrativas, como sugere a teoria narrativista em José Calvo, que evidencia Direito marcado por poder simbólico prenhe de conotações e denotações (cf. CALVO, 2002. p. 41). Estórias estão em competição permanente quando apresentadas em juízo. Julgar, nesse sentido, seria optar por uma das estórias, ou versões, ou por fragmentos e excertos, criando-se uma estória nova, que por sua vez será desafiada por novas versões. Trata-se de cadeia interpretativa, na imagem de Ronald Dworkin, para quem a prática jurídica é exercício de interpretação, que não se limita à compreensão de documentos particulares ou de textos normativos (cf. DWORKIN, 1985). Dworkin apresenta idéia convergente a Gewirtz, na medida em que propõe que se possa melhorar a compreensão do Direito mediante a comparação entre a interpretação jurídica e a interpretação que se faz em outros campos do conhecimento, a exemplo da Literatura, em particular.
A relação entre Direito e Literatura é problemática, o debate parece interminável. Admite-se, em princípio, esvaziamento do Direito, na medida em que se multiplica o uso da conjunção e, a exemplo de Direito e Economia, Direito e Ciências Sociais, Direito e Filosofia (cf. ARISTODEMOU, 1993, p. 158). A conjunção "e" poderia indicar, em tese, esgotamento do discurso jurídico tradicional, presentemente em vias de exaurir-se pela própria seiva, circunstância que se denomina topicamente de crise do Direito. Há também aspectos de semiótica que emergem, dado que não faz sentido a discussão do discurso político contemporâneo sem que se reconheça o poder da escrita normativa, dentro de determinado contexto lingüístico (cf. LEVINSON, 1981, p. 374). Há quem sugira complemento, no sentido de que a Literatura ensejaria compreensão relativa à atividade de atores jurídicos, especialmente quando se tratar de ficção escrita por advogados (cf. DOMNARSKY, 2003, p. 111). Mas aí nos afastamos da Literatura no Direito, buscando-se este último naquela primeira.
No palco do judiciário, cada um dos contendores apresenta a sua versão, temperada com provas, testemunhas e adereços de retórica. Gewirtz observa que estórias são apresentadas em modelo de perguntas e respostas. Especialmente, leva-se em conta a audiência, isto é, a quem incumbirá a escolha da melhor das estórias, ou a mais convincente, ou a mais justa, ou a mais eficaz, do ponto de vista econômico. E a questão, mais uma vez, é remetida à retórica clássica, especialmente porque retoma também o papel e a importância do orador, e seu comando a respeito das proposições que se refiram às coisas possíveis e impossíveis (cf. ARISTÓTELES, 2007, p. 31). Cuida-se do vínculo complicadíssimo entre o orador e auditório (cf. PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 20).
É por isso que se indaga a respeito da credibilidade do contador da estória, do narrador e, no caso, do advogado, ou de qualquer outro ator jurídico. Gewirtz aponta para questão não menos clássica, relativa à articulação adequada de emoções e imagens. Há obra literária de muita divulgação, best-seller, de Sidney Sheldon, A Ira dos Anjos, que toca objetivamente nesta questão. Jennifer Parker é a heroína do romance, promotora decaída, advogada ascendente, que em inesquecível cena do tribunal do júri manipulou imagens, afetando dramaticamente as emoções. Advogando para uma moça que perdera braços e pernas num acidente, Parker pede, como prova, para reproduzir fotografias em plenário. A parte adversa não discorda; afinal, fotografias não poderiam causar perigo algum. Embora sob protestos do advogado que acabei de mencionar, Jennifer Parker montou em juízo palco para exibição de um filme, que não deixa de ser fotografia, embora em seqüência. A hábil advogada demonstrou, em seguida, excertos de uma vida de quem não tinha pés e mãos, comprovando que qualquer dinheiro que lhe fosse pago a titulo de prejuízos não cobriria a desgraça da perda dos membros. Afinal, a ofendida ganharia dinheiro suficiente para a compra de sapatos e anéis, que jamais poderia utilizar, dado que não tinha pés para sapatos e nem dedos para anéis...
Alcança-se, também, problema deontológico. Qual o compromisso do advogado com a verdade? Assertivas devem ser omitidas quando eventualmente falsas? E se a utilização de dados não verdadeiros contribui para o sucesso de uma estória, isto é, quando beneficia o cliente? E quanto ao magistrado, há também o dever de vínculo recorrente com a verdade, em prejuízo – eventual – para o desate do procedimento? Todo o direito das provas presta-se para regular como as estórias devem ser apresentadas (cf. GERWITZ, cit.).
Reaproxima-se do problema da verdade, a qual, especialmente no processo penal, "(...) real ou material, antes de ser um dogma, é um mito" (ARAÚJO, 2006, p. 155). E o que justifica a busca inconseqüente da verdade?
A Corte Européia de Direitos Humanos julgou recentemente o caso Jalloh v. Alemanha, no qual se pronunciou a respeito da obtenção de provas por meios ilícitos. Analogicamente, a proibição de se usar prova obtida pela utilização de emético, para que o indiciado vomitasse a droga que se suspeitava estivesse com ele, sugere a impossibilidade ontológica da utilização de inverdades, na busca de verdades formais. Trata-se do caso de um emigrante de Serra Loa que fora preso na Alemanha, acusado da venda de drogas. Com a chegada da polícia, engoliu um dos saquinhos que carregava. Levado a um hospital, lhe aplicaram remédios eméticos, provocadores do vômito, contra sua vontade, evidentemente. Após ter vomitado, o conteúdo fora apreendido pelas autoridades. Tinha-se prova obtida por coerção. O imigrante levou a questão à Corte Européia de Direitos Humanos, invocando direito de petição que qualifica um status activus (cf. FERNANDES, 2004, p. 156), obtendo decisão a seu favor, indicativa de que a prova fora ilicitamente produzida.
Gewirtz lembra-nos os limites decorrentes da admissão de confissões, enquanto narrativas, quanto ao problema de se monitorar e restringir a liberdade de quem confessa. Pode-se confessar uma falsidade, com objetivos claros. Por isso, parece, nem sempre a confissão seria a rainha das provas, especialmente se tomada em seu sentido narrativo. A veracidade da confissão não decorre, exclusivamente, do fato de que se confessa. Reporto-me, por exemplo, ao sistema de confissões seguido pelo modelo inquisitorial que campeou na Península Ibérica, em instâncias que percebiam na confissão uma necessidade concreta de aferição da verdade.
Buscas policiais, e seus resultados, também engendram narrativas. É o exemplo de inesquecível conto de Edgar Allan Poe, referente à busca de uma carta, não encontrada pela polícia, justamente porque fora colocada onde a polícia jamais procuraria, em local visível e de fácil acesso. Acareações também possibilitam momento riquíssimo de efeitos narrativos; as estórias se confrontam, e elementos psicológicos que procuram identificar leitura do corpo e das reações serviriam de parâmetros para identificação da versão mais plausível. Em tese. Problematizou-se que a verdade tem sido produzida de modo distinto, em âmbito específico de materialidade da linguagem, o que mais uma vez conduz o intérprete a tema da sofística (cf. FOUCAULT, 1996, p. 158).
No Direito Norte-Americano, ambiente no qual Paul Gewirtz desenvolve seus estudos, especialmente, do ponto de vista narrativo, a decisão judicial é epicêntrica, enquanto confluência de estórias, na formação da história; densifica-se o modo como a decisão foi alcançada. Explicativas e justificativas fazem parte da nova estória apresentada, plasmada pelo sentido de veracidade, outorgada pela decisão. Segundo Gewirtz, decisões judiciais exercem três funções. Do modo como definido pelo realismo jurídico, decisões judiciais, especialmente de tribunais superiores, acenam para demais juízes, advogados e público em geral, identificando o que o Direito seja, na vida real. É questão weberiana, referente à autoridade do julgado, vinculada à dominação legítima, típica de Estado Racional (cf. WEBER, 1999, p. 517 e ss.).
Num segundo plano, ainda segundo Gewirtz, decisões judiciais disciplinam o processo decisional por meio de prestação pública de contas, relativas à própria decisão. De tal modo, seria instrumento de controle do erro, ou do máximo de erro permitido, bem como da corrupção, ou do mínimo de corrupção socialmente aceita, isto é, se a sociedade aceita alguma forma de peita, com o que não se concorda. Em terceiro lugar, para Gewirtz, decisões judiciais se prestam para persuadir a audiência de que o tribunal fez a coisa certa. No que toca à concepção narrativa da decisão jurídica, sua função é justificativa. Ela não se resolve e se justifica por seus próprios fundamentos. A decisão precisa ser fundamentada. A fundamentação é o cerne de sua narratividade. É da adequação da narrativa que emerge a autoridade do julgado. A boa decisão, do ponto de vista meramente retórico, é aquela que convence. Embora, mais tarde, reconheça-se, o conteúdo decisório provoque a mofa, o desprezo e o ridículo. É o caso de decisões emblemáticas da Suprema Corte Norte-Americana, a exemplo do definido nos casos Dred Scott, Plessy v. Ferguson e Lochner v. Nova Iorque. Naquele primeiro caso, Scott v. Sandford, 60 U.S., 393 – 1857, determinou-se que o escravo não poderia provocar prestação jurisdicional. No sendo deles, Plessy V. Ferguson, 163 U.S., 537-1986, pontificou a doutrina do "separados mas iguais". No último deles, Lochner v. Nova Iorque, 198 U.S., 45-1905, garantiu-se o liberalismo econômico, prescrevendo-se a impossibilidade da Administração regulamentar horas de trabalho. Todas essas decisões não vigem mais. Não qualificam precedentes. São estórias que fazem história, mas que não interpretam a realidade do mundo no qual vivemos. Sua historicidade dissolveu-se na imprestabilidade presente de aplicação. Ainda bem.
Gewirtz aponta certa ambivalência dos juízes, como elemento que caracteriza a ansiedade que se encontra em qualquer decisão judicial, o que sugere obscuridade, incerteza e apreensão em relação aos limites e alcance da própria autoridade. O que dá os contornos de validade a uma decisão, ainda no sentido narrativo, é a legitimidade de sua autoridade, o que se alcança e se determina a partir da linha argumentativa utilizada. Gewirtz observa que a autoridade de uma decisão também depende da habilidade que esta tenha de gerar acordo prospectivo. A parte perdedora deve-se conformar com o decidido, de modo que o sistema permaneça confiável. A confiabilidade decorre também do nível de plausibilidade do conteúdo decisório, dado que " (...) a persuasão é um tipo de demonstração, pois somos mais persuadidos quando consideramos a demonstração de uma determinada coisa", disse o Estagirita (ARISTÓTELES, cit., p. 21).
Assim, observa Gewirtz, decisões colegiadas ganham sentido especial quando também propiciam decisões concorrentes e divergentes. A linha narrativa ganha empolgação, colorido, a estória se completa e se desdobra em uma série de estórias, que compõem uma nova estória. É esta que conta, isto é, que vale. Múltiplas opiniões qualificam debate que marca a formação de um texto. Gewirtz aponta uma outra questão, delicadíssima, relativa à identificação da verdadeira autoria das decisões judiciais. É o caso do law clerck, figura do direito norte-americano que lembra nosso estagiário, ou o assessor de juiz ou de ministro, ou o analista judiciário. Não há como o magistrado redigir todas as decisões. A decisão, então, poderia, segundo Gewirtz, e nesse sentido, bem entendido, substancializar vários textos. Gewirtz está preocupado com a legitimidade da decisão judicial, no que se refere a sua concepção narrativa. A questão transcende, de modo que o ghost-writer poderia, nessa lógica, dissolver o nome de quem assine o texto, ou no sentido contrário.
Gewirtz também observa que o movimento Direito e Literatura conta com aceitação e empolgação do mesmo modo como a contemporaneidade tem prestigiado a crítica literária, em linhagem que remonta a Longino e a Aristóteles, e que presentemente transita entre formalistas russos, filólogos alemães, críticos da consciência, críticos do imaginário, críticos de fundamentação psicanalítica, sociólogos da literatura, lingüistas, semióticos, adeptos da análise poética da prosa, da crítica genética, entre tantos outros (cf. TADIÉ, 1992). Assume-se que embora não sendo Literatura, em sentido estrito, o Direito pode propiciar abordagem literária, nos sentidos ontológico e crítico. Assim, trocas lingüísticas aproximam-se de objetivos comuns, que captam a ambivalência do judiciário e as estratégias da argumentação dos advogados, duvidando-se, ainda mais uma vez, do sentido metafísico que o ocidente teima em outorgar à concepção de justiça, medida do poder de cada um, em visão absolutamente antagônica ao jusnaturalismo bem-comportado. Esse criticismo bem se afina com Nietzsche, em hermenêutica de suspeição que remonta à tradição sofística.
Referências Bibliográficas
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