Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Produtos contrafeitos na sociedade de consumo: “sou consumidor, logo existo”

Agenda 26/03/2023 às 22:51

Segundo o dicionário Priberam, contrafação é o “ato ou efeito de contrafazer, de reproduzir ou imitar fraudulentamente uma coisa, em prejuízo do autor ou do inventor” (2021). É neste mesmo sentido que o STJ, em julgado cuja decisão foi publicada no informativo de jurisprudência n. 666, conceituou contrafação como “a reprodução, no todo ou em parte, de marca registrada, ou sua imitação, quando a imitação possa induzir confusão” (2020).

Em síntese, produtos contrafeitos são aqueles que imitam, copiam ou plagiam outros; é o que vulgarmente se denomina de “pirataria”, prática que, conforme se verá a seguir, é cada vez mais comum na sociedade de consumo, em que adquirir produtos é motivo de realização pessoal e de aceitação social.

Consumir, outrora, visava suprir às necessidades da existência humana; consumia-se, pois, era preciso comer e beber; adquiria-se roupas, produtos de higiene pessoal, moradia, dentre outros, pois havia necessidade de tanto. Atualmente, consome-se como forma de satisfação de padrões pessoais e sociais, isto é, adquire-se produtos visando o valor social que eles detêm, para assim estar em consonância com os padrões impostos pela sociedade de consumo (DEL MASSO, 2011).

Bauman, refletindo sobre a modernidade líquida, explica bem a sociedade de consumo como uma realidade em que os sujeitos inseridos se rendem aos padrões impostos em busca de identidade e individualidade, que na verdade são inexistentes:

Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência de consumidor – a dependência universal de compras – é a condição sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de “ter identidade”. Num arroubo de sinceridade (ao mesmo tempo em que acena para os clientes sofisticados que sabem como é o jogo), um comercial de TV mostra uma multidão de mulheres com uma variedade de penteados e cores de cabelos, enquanto o narrador comenta: “Todas únicas; todas individuais; todas escolhem X” (X sendo a marca anunciada de condicionador). O utensilio produzido em massa é a ferramenta da variedade individual. A identidade – “única” e “indivisível” – só pode ser gravada na substância que todo mundo compra e que só pode ser encontrada quando se compra. Ganha-se a independência rendendo-se (2001, p. 108).

O consumo traz, então, o pertencimento, que está associado à identidade de cada indivíduo: cada produto consumido traz, na identidade do consumidor, uma reação deste frente ao bem que possui, mergulhado num universo de produtos e serviços, que deseja adquirir. Já se sente, então, integrado ao sistema, mas se não pode adquiri-los fará parte de uma dissonância com o sistema vigente na sociedade de consumo (SILVA, 2014).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

“Parece que as imposições sociais de convivência estabelecem os mecanismos de integração social, sendo que o desrespeito traz o isolamento” (DEL MASSO, 2011, p. 30). Em outros termos, o mercado de consumo impõe ao consumidor padrões, e a sociedade os adota como forma de identidade do grupo; se o sujeito se amolda, pertence a ele, e, em caso contrário, estará alheio à realidade.

Concluindo, o consumo que outrora tinha por fundamento a sobrevivência, passa a encontrar seu fim nos desejos humanos, de satisfação e de aceitação, próprios e do meio em que vive.

Ocorre que se há procura, há demanda. Partindo-se deste pressuposto, e se valendo dele, o mercado tira proveito da sociedade de consumo, pois para se consumir é necessário pagar, e a finalidade mercadológica é a obtenção de lucro. Assim sendo, a ideia de sociedade de consumo é cada vez mais amplificada, alargada, pois quanto mais os fornecedores de produtos põem em circulação artigos diversos, que impõe novos padrões, maior a instigação do desejo dos consumidores de adquirirem:

O capitalismo inventa as necessidades, que se reproduzem de forma progressiva na sociedade, fazendo com que cada indivíduo tenha sonhos artificiais e necessidades que não fazem sentido, que não existem. O consumidor não tem a capacidade de analisar criticamente cada ato de consumo: “seria ele por necessidade ou por mera vontade?” A motivação para consumir nasce a partir de necessidade impostas pelo sistema capitalista (SILVA, 2014, p. 29).

Ressalta-se que aqui não se está advogando pela ideia de que apenas atualmente o consumo é praticado com fim, simplesmente, no desejo humano. O que se está a dizer é que na sociedade de consumo há, muito mais evidente, a necessidade da pessoa humana de se afirmar, por meio do consumo. Neste sentido, bem disse Silva (2014, p. 107), parafraseando Descartes, e com objetivo de retratar o cenário presente: “sou consumidor, logo existo”.

Artigos de luxo refletem informações sobre seu usuário, que os utiliza para transmitir mensagens de poder, status social e identificação (SANTOS, 2013). Acontece que nem todos – e na verdade a minoria apenas – têm condições socioeconômicas de atender aos padrões de consumo; basta se observar a discrepância entre o preço de um artigo, como, por exemplo, vestuário ou calçado, produzido por uma grife, cuja marca traz consigo “status social”, e outro cuja marca seja desconhecida. Neste contexto, a única via de acesso possível para satisfazer às necessidades de autoafirmação e de afirmação social é a contrafação.

Consigna-se que o fator econômico não é o único que leva consumidores a adquirir produtos contrafeitos. Nas lições de Santos, “os consumidores ávidos de experimentar novos produtos são os mais predispostos à compra de falsificações, já que, por via de um preço mais acessível, satisfazem o seu desejo assim como a necessidade de novas experiências” (2013, p. 22); o que se percebe é que, de fato, o fator da possibilidade econômica influência na aquisição de produtos contrafeitos. Porém, há também o fator da comodidade econômica, quando o consumidor embora tenha acesso e possibilidade de adquirir produtos autênticos, opta pelo falsificado por motivos de conveniência, visando gastar menos.

Enfim, na sociedade de consumo, em que se consome para existir enquanto indivíduo, e para ser aceito pelo meio, prega-se que vale tudo, inclusive, adquirir falsificações, imitações, produtos contrafeitos.

REFERÊNCIA

BAUMAN, Zygmunt. Trad. Plínio Dentzien. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DEL MASSO, Fabiano. Curso de direito do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

PRIBERAM. Dicionário, 2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/Contrafa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 15 mar. 2023.

SANTOS, Claudino C. Contrafação ou a motivação que nos conduz. Orientador: Pedro Ferreira. 2013. Dissertação (Mestrado) - Escola Superior de Porto, Porto, 2013.

SILVA, Daisy Rafaela da. O consumo na pós-modernidade: efeitos nas classes “D” e “E”. Campinas: Alínea, 2014

STJ. Informativo n. 666, 2021 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisar&livre=1.719.131-MG&operador=e&b=INFJ&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 14 jun. 2022.

Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: joaogabrielfariaadvogado@gmail.com.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!