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Considerações sobre a obra “O que é uma Constituição?” de Ferdinand Lassale

Agenda 28/04/2023 às 15:21

O precursor da social-democracia alemã faz uma contundente crítica ao processo de formação da Constituição jurídica, explicando quais são os fatores reais do poder.

  1. Uma breve introdução das abordagens sobre os conceitos de Constituição

Apesar de todos terem uma noção intuitiva do que é uma Constituição, torna-se bastante complexo formular de forma hermética uma resposta capaz de satisfazer os mais diversos campos do saber.

Assim, é necessário delimitar um foco de estudo para tentar analisar tal questionamento de forma mais eficiente, prova disso é que, tradicionalmente, a Constituição tem sido definida basicamente através de três sentidos: jurídico, político e sociológico.

No sentido jurídico, no qual Hans Kelsen é seu precursor, simplificadamente, a Constituição é o conjunto de normas fundamentais que exterioriza os elementos essenciais de um Estado. No sentido político, com Carl Schimitt, de forma geral, a Constituição é a decisão política fundamental, não se confundindo com as leis constitucionais. E por fim, há a dimensão sociológica, cujo precursor é Ferdinand Lassale, e cujo conceito será o alvo de estudo nesse fichamento.

  1. Pelo olhar sociológico, o que é uma Constituição?

Segundo Lassale, há uma grande dificuldade entre as mais diversas áreas, desde as conversas informais até os jurisconsultos, para responder de forma essencial a essa questão.

Por um lado, para os não especialistas do Direito, quase que sempre, responder-se-á a tal indagação tentando mostrar as folhas de uma constituição, ou seja, de forma concreta. Todavia, tal forma de responder é insuficiente, visto que, não é capaz de apreender o sentido global, objetivo e subjetivo, desse questionamento. Já por outro lado, o Direito define a Constituição como "a lei fundamental e limite do poder do Estado, proclamada pelo país e na qual se baseia a organização do Direito Público dessa nação"1, mas isto também não é capaz de captar a resposta mais ampla, visto que não responde a essência constitucional, não é possível saber se determinada Constituição é boa ou ruim, isto é, não há paradigmas nesse conceito.

  1. Lei e Constituição

Em seu livro, Ferdinand Lassale tenta através do método da descrição construir de forma nítida o conceito de Constituição. Para tal, inicia sua lógica pautando-se na comparação entre a Lei e a Constituição, problematiza essa questão, e, paulatinamente vai subsidiando seu pensamento para, de fato, alcançar o conceito a respeito da Lei Magna.

Mas então, o que difere ou assemelha a Lei da Constituição?

"A lei é a forma moderna de produção do Direito Positivo. É o ato do Poder Legislativo, que estabelece normas de acordo com os interesses sociais. Não constitui, como outrora, a expressão de uma vontade individual, pois traduz as aspirações coletivas."2

Paulo Nader coaduna-se assim com diversos estudiosos das Ciências Jurídicas, bem como com a mesma interpretação de Lassale, qual seja, de que as leis são mutáveis de acordo com a situação histórico-social vigente. Eles querem dizer que apesar das leis terem uma elaboração intelectual que exige uma técnica específica, elas não têm por base os artifícios da razão, mas sim os anseios da sociedade.

Já a Lei Maior, a Lei das Leis, não tem tanta mutabilidade, "uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de maior solidez que uma lei comum."3, e por isso, Lassale chega a criar um termo novo, a Constituição será referenciada agora como lei fundamental, no intuito de diferenciá-la da lei comum. Nesse âmbito a lei fundamental deve obrigatoriamente ser uma lei básica que constitua o verdadeiro fundamento das outras leis, sendo a mesma o mecanismo capaz de suprir e engrenar as leis subjacentes, tal lei deve ter, no âmago, uma fundamentação, pois, caso contrário, não regeria a lei da necessidade.

Da exigência de fundamentação é possível inferir que há algo, "uma força ativa" que faz com que a Constituição e por consequência todas as leis e instituições jurídicas sejam da forma que são e não de outra maneira. A força ativa que Lassale se refere são os fatores reais do poder.

  1. Os fatores reais do poder

"Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade constituem essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade, determinando que não possam ser, em substância, a não ser como efetivamente são."4

Para contemplar de forma mais clara o que seriam tais "forças ativas", Ferdinand utiliza-se de um exemplo fictício mas bastante didático. É suposto um incêndio devastador na Prússia e dessa forma, não há mais nenhum exemplar das leis do país. Com isso, Lassale questiona como se daria a construção, ou talvez, a reconstrução, da coleção legislativa da Prússia, e nesse ínterim, propositalmente, ele demonstra que a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena burguesia e a classe operária são exemplos de fatores reais do poder, isto é, todos eles regem o país, e, portanto, sintetizam a Constituição.

Apesar de até aqui parecer que o conceito de constituição, numa perspectiva sociológica, começa a se robustecer, surgem outras problemáticas ainda mais intrigantes que são suscitadas por Lassale: a questão de como a Constituição jurídica é construída e a comparação entre o poder organizado e o desorganizado. Seu intuito, posteriormente a tais colocações é o de retomar com embasamento completo o que seria uma Constituição real e efetiva.

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O precursor da social-democracia alemã faz uma contundente crítica ao processo de formação da Constituição jurídica, afirma que os fatores reais do poder são transcritos para uma linguagem escrita e assim abandonam sua simplicidade e passam a ser o verdadeiro Direito, ou seja, passam a ser os fatores jurídicos. A crítica do estudioso reside, precisamente, em como esse processo é conduzido: uma pequena parcela de proprietários exclui, de forma peculiar, todo o restante da sociedade do desfrute das mais diversas benesses.

Tal análise de Lassale é corroborada por estudiosos contemporâneos como Roberto Lyra Filho:

"O discurso competente, em que a ciência se corrompe a fim de servir à dominação, mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente, mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é mais favorável, e tratam de impô-la aos demais, com todos os recursos de que dispõem (órgãos de comunicação de massas, ensino, instrumentos especiais de controle social de que participam e, é claro, com forma destacada, as próprias leis)." 5

A outra importante análise de Lassale diz que o poder organizado, como por exemplo, o poder do Exército, apesar de menor que o poder do povo (poder desorganizado), tem mais efetividade, pois o poder do povo, apesar de muito mais numeroso, não é fácil de ser articulado e assim, torna-se um poder menos forte.

Mesmo assim, constantemente com o Exército a vencer, não há vitaliciedade nas relações de poder.

"Essas questões explicam como um poder menos forte, mas organizado, pode manter-se durante muitos anos, sufocando o poder muito mais forte, mas desorganizado, do povo, até que um dia a população cansada de ver os assuntos nacionais tão mal administrados e de saber que tudo é praticado contra a sua vontade e contra os interesses gerais da Nação, levanta o seu ódio contra o poder organizado, opondo-lhe a sua formidável supremacia, embora desorganizada." 6

Roberto Lyra também cita que a dominação-subordinação entre as formas de poder não são perpétuas.

“Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e, conscientizados nisso, os que carregam o peso da opressão, abrem espaço à contestação da ideologia oficial" 7

  1. Breve história constitucionalista e a sabedoria constitucional

Canotilho, importante estudioso sobre a Constituição, afirma que:

"As constituições escritas são uma criação da época moderna. É evidente, porém, que todas as sociedades politicamente organizadas, qualquer que sejam as suas estruturas sociais, possuem certas formas de ordenação susceptíveis de serem designadas por Constituição." 8

Lassale defende justamente isso, a ideia de que "Não é possível imaginar uma Nação onde não existem os fatores reais do poder"9, ou seja, onde não tenha existido um conjunto de normas, uma Constituição. Para exemplificar, ele cita a subordinação do povo aos nobres na França Medieval mesmo sem a existência de qualquer documento escrito.

Os dois autores entram em compasso mais uma vez quando ratificam que se pode atribuir aos tempos modernos, não a origem da Constituição real e efetiva, mas sim, a origem da Constituição escrita.

E essa Constituição escrita surgiu devido, justamente, a transformações nos elementos reais do poder. Por exemplo, a Constituição feudal na qual os nobres tinham destaque e o príncipe tinha seu poder limitado por essa nobreza dará lugar a uma nova Constituição, da época do Absolutismo. Por quê? Porque transformações ocorreram: a população aumentou, a burguesia nasceu, o príncipe, estrategicamente, se distanciou dos nobres, tudo isso, são mutações que fazem com que a nova forma de poder vigente elabore por escrito uma nova Lei Magna no intuito de buscar a legitimidade.

E assim, finalmente, a Lei das Leis só poderá ser considerada apropriada a determinada nação se estiver condizente, em sua essência, com os fatores de poder que conduzem o território. Quando a Lei Magna escrita não corresponder a Lei Magna real é porque o círculo da legalidade não coincide com o da legitimidade, assim, a questão será só de tempo para que os conflitos ocorram e a folha de papel desmorone perante a Constituição real e efetiva.

  1. O poder invencível da Nação

Aqui, mais uma vez Lassale tece as disparidades entre um poder organizado e um poder desorganizado, descrevendo novamente a superioridade do Exército frente ao povo e de diferenças que já mencionei nos tópicos anteriores. Todavia, dessa vez o autor abre uma lacuna para essa que parecia ser uma constante, povo sendo derrotado pelo Exército. Ele diz que existem casos isolados, situações históricas de grande emoção, em que o sentimento nacional é fomentado, e, com esforços extremos, consegue vencer o pequeno poder organizado do Exército.

Roberto Lyra, mais uma vez emparelha-se com Lassale ao dizer:

“Há condições sociais que favorecem a conscientização: elas emergem quando as contradições de uma estrutura social se agravam e a crise mais funda torna claros os contrastes entre a realidade e as ideologias. A crise econômica e, mais amplamente, a crise social determinam rachaduras nas paredes institucionais e rompem o verniz das ideologias.” 10

Mas daí, dessa mesma lacuna, Lassale também pondera que para tal oportunidade de mudança das formas de poder tornar-se concreta, faz-se necessário transformar o exército de forma radical, de modo a não voltar a ser meio de repressão do rei contra a Nação. E segundo Lassale, talvez devido às experiências da Revolução Prussiana isso não ocorreria pois os servidores do exército são práticos e oportunos já os servidores do povo são teóricos e só se mobilizam quando já estão ameaçados, assim para estes últimos o aumento de suas vozes só aumenta a quantidade de tiros recebida.

  1. Considerações

Destarte, conclui-se que a indagação do autor sobre “O que é uma Constituição?” seria, principalmente, o de construir a idea de que a Constituição não se limita as leis escritas. De forma categórica, a Carta Magna somente tem por alicerce os fatores reais e efetivos do poder que regem determinada sociedade. Dessa forma, ele também contrapõe a ideia de que a “folha de papel” por si só é suficiente, pelo contrário, ela não tem durabilidade se não traduz os fatores de poder que atuam na realidade social.


Referências Bibliográficas

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política?

PARK, Thais Hae Ok Brandini. Dicionário Jurídico, 2ª ed., Editora Cronus, São Paulo, 2010.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito, 32ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito?,19ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006.

CANOTILHO, José Gomes. Direito Constitucional., Parte I, Capítulo III, Estrutura e Função da Constituição.

http://www.protasiovargas.com.br/bdpv/tex/id/Texto%2034.htm. Acessado no dia 22/08 às 10h00min


  1. PARK, Thais Hae Ok Brandini. Dicionário Jurídico. 2ª ed. São Paulo: Cronus. 2010. .71.

  2. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito, 32ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. P. 146

  3. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política?, P. 32.

  4. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política?, P. 34-35.

  5. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito?,19ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006. P. 20

  6. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política? P. 47.

  7. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito?, 19ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006. P. 21

  8. CANOTILHO, José Gomes. Direito Constitucional., Parte I, Capítulo III, Estrutura e Função da Constituição. P. 59. http://www.protasiovargas.com.br/bdpv/tex/id/Texto%2034.htm. Acessado no dia 22/08 às 10h00min

  9. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política? P. 48

  10. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito?,19ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006. P. 2

Sobre o autor
Jonathan Alves de Oliveira

Técnico do Ministério Público de Pernambuco, mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela UFPE, graduado em Direito pela UFPE, em Engenharia Ambiental pela UNINASSAU, com Pós graduação em Direitos Humanos (Instituto CEI), Pós Graduação em Direito Público (Faculdade Legale), Pós Graduação em Ciência Criminais (CERS), Pós Graduação em Direito Administrativo (Universidade Anhanguera-Uniderp).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Jonathan Alves. Considerações sobre a obra “O que é uma Constituição?” de Ferdinand Lassale. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7240, 28 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103291. Acesso em: 22 dez. 2024.

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