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O princípio constitucional da igualdade e o necessário fortalecimento da Defensoria Pública no Brasil

Agenda 05/09/2007 às 00:00

Hoje é comum falar em cidadania, sem antes refletir sobre o real sentido da palavra. Muito além do exercício pleno dos direitos políticos, cidadania consiste na faculdade de ver assegurado pelo Estado o cumprimento da tarefa igualitária e distributivista, sem a qual não há democracia nem liberdade [01]. Lamentavelmente, o que presenciamos é uma distância abissal entre a justiça distributiva (e igualitária) e a população pobre. O desrespeito aos direitos fundamentais é tamanho que levou o Professor Fábio Konder Comparato a afirmar: "Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção ‘e’ significa ‘ou’, se o ‘caput’ de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário. (...) Ela (a Constituição) continua a existir materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas livrarias (na seção de obras de ficção, naturalmente), suas disposições são invocadas pelos profissionais do Direito no característico estilo ‘boca de foro’. Mas é um corpo sem alma." [02]

Partindo da máxima aristotélica segundo a qual as pessoas em situação desigual devem ser tratadas desigualmente, na medida de sua desigualdade, a Constituição da República de 1988 trouxe o seguinte comando, abrindo o capítulo referente aos direitos e garantias fundamentais: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade." Trata-se da cristalização do princípio da igualdade real, para alguns isonomia material ou ainda igualdade na lei. Paulo Bonavides preleciona que "a importância funcional dos direitos sociais básicos, assinalada já por inumeráveis juristas do Estado social, consiste pois em realizar a igualdade na Sociedade; ‘igualdade niveladora’, volvida para situações humanas concretas, operada na esfera fática propriamente dita e não em regiões abstratas ou formais de Direito." [03]

Mas afinal, o que significa, no Brasil de hoje, igualdade real entre os indivíduos? Preferimos a definição do Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Marcelo Galuppo, segundo o qual o princípio da igualdade pode ser entendido "como um princípio que permite a maior inclusão possível dos cidadãos nos procedimentos públicos de justificação e aplicação das normas jurídicas e de gozo dos bens e políticas públicas, que pode ser fundamentado na dimensão lingüística do direito e que desempenha a função básica de permitir a sobrevivência democrática de uma sociedade pluralista." [04]Em outras palavras, há situação de igualdade quando as pessoas estão inseridas num quadro de distribuição de justiça pelo poder público, de forma que possam efetivamente influenciar as decisões políticas e gozar das prerrogativas descritas na lei.

Hoje a lógica é a seguinte: quem pode pagar imposto de renda paga. Quem não pode está isento. Quem é deficiente físico tem (ou deveria ter) facilidade no acesso aos prédios públicos e aos meios de transporte. Quem não pode pagar um advogado, tem direito à assistência jurídica da Defensoria Pública. E assim por diante. Logo, sob o paradigma do Estado Social garantidor do bem estar da coletividade (Welfare State), fez-se necessária a intervenção do Poder Público no sentido de outorgar à pessoa pobre a possibilidade de acesso à denominada ordem jurídica justa (isso envolve naturalmente o reconhecimento de que a pessoa carente, via de regra, é hipossuficiente técnica, jurídica e economicamente em relação a certos atores sociais, como as instituições financeiras). Deu-se origem, então, à "igualdade niveladora" que passou a ser denominada pela doutrina como igualdade material, real ou substancial (em contraposição à igualdade perante a lei, o que corresponde a um tratamento análogo de todos, desprezando suas diferenças).

Traçada a correlação inicial entre Defensoria Pública e isonomia real, surge outra questão: a quem se dirige o comando constitucional da garantia de igualdade (referente, no caso, à instrumentalização do acesso à justiça da pessoa carente)? Não há dúvidas de que o ônus recai incondicionalmente sobre todas as manifestações do Poder Público (diga-se: Poder Legislativo, Executivo e Judiciário). O primeiro cuida da elaboração normativa, fixando diretrizes a serem cumpridas pelo administrador. O segundo, gestor do interesse coletivo, desenvolve políticas públicas para tornar efetivo o preceito constitucional. Por fim, o terceiro, a princípio inerte, é acionado quando o Executivo ou o Legislativo inviabilizam o exercício de alguma prerrogativa constitucional. Curial trazer à baila a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da questão:

"O princípio da isonomia, que se reveste de auto-aplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica - suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio - cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade." [05]

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Reconhecer a importância da Defensoria Pública no acesso da população carente à justiça é verificar que, num País de miseráveis, cuja maioria esmagadora nunca teve sequer acesso à internet (79%, segundo dados do IBGE) [06], é no mínimo pueril sustentar a vigência de um Estado Democrático de Direito. Afastado da democracia, o Brasil é a terra da dicotomia sócio-econômica. E cada vez mais longe do Direito estaremos, enquanto as classes economicamente desfavorecidas continuarem privadas do exercício efetivo do direito de ação.

Nesse breve porém intenso período vivenciado na Defensoria Pública Mineira, presenciamos atônitos o que há de mais excludente em matéria de direitos civis. A título de exemplo, vimos um sem número de carentes digladiarem com empresas de telefonia. A cena se reproduzia diariamente: diante da Juíza comparecia, de um lado, uma senhora idosa, cuja pensão de aposentadoria não ultrapassava um salário mínimo e, do outro, a concessionária representada por seus advogados. A primeira lutava em vão para provar que não poderia ter dado causa a uma conta telefônica correspondente a dez vezes o valor de seu ganho mensal. O desfecho era o mesmo: como nenhuma falha era detectada no sistema telefônico, a Juíza via-se sem condições de julgar o mérito. Extinguia o feito sob o argumento de que necessitaria de perícia técnica, não permitida no procedimento sumaríssimo do Juizado Especial. Dezenas de pessoas voltaram para casa com a dívida pendente, o nome negativado perante órgão de restrição ao crédito e com uma certeza: justiça não é para pobre.

Outro exemplo: dois estudantes procuraram a Defensoria Pública para solucionar um caso peculiar. Fizeram inscrição para concurso público do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e, na condição de surdos, requereram a presença de intérprete de Libras (prerrogativa assegurada pelo edital e pela Lei Federal nº 10.436/02). A fundação organizadora do concurso informou que, se ambos sabiam ler e a avaliação seria escrita, não havia fundamento para disponibilizar o referido intérprete. A decisão (vinda de instituição de grande credibilidade em Minas Gerais), a um só turno, denotou absoluto desconhecimento da cultura dos surdos e das particularidades lingüísticas que envolvem o grupo, redundando em violação explícita dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Por último, fazemos menção à mais inepta decisão judicial de que já tivemos notícia. A mesma se refere ao caso do jogador do São Paulo Futebol Clube Richarlyson Barbosa Felisbino. O mesmo, supostamente homossexual, foi vítima de grave discriminação em programa televisivo de rede nacional. Moveu processo criminal contra o responsável e teve seu pedido negado de pronto pelo Sr. Manoel Maximiano Junqueira Filho, Juiz de Direito titular da nona vara cível da Comarca de São Paulo. Dentre algumas justificativas invocadas para negar o pleito, vale transcrever os seguintes trechos: "Quem se recorda da ‘copa do mundo de 1970’, quem viu o escrete de ouro jogando (Félix, Carlos Alberto, Brito, Everaldo e Piaza; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivelino), jamais conceberia um ídolo seu homossexual. (...) Quem vivenciou grandes orquestras futebolísticas (...) não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol. (...) Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. (...) Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o ‘sistema de cotas’, forçando o acesso de tantos por agremiação... (...) O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade do pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal..." [07]

Os exemplos são pontuais. Retratam com precisão o devaneio de igualdade entre as pessoas, cultivado por muitos. Noutro passo, evidenciam alarmante paradoxo da sociedade brasileira. Explicamos: nunca o Congresso editou número tão expressivo de leis protetivas das minorias [08]. Temos o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, lei que assegura prerrogativas aos deficientes físicos, dentre outras. Não obstante, ainda somos obrigados a presenciar flagrantes ilegalidades cometidas contra essas mesmas minorias que o Estado busca proteger.

Ora, se não faltaram leis, o que deu errado? Será a chamada anomia, ou seja, a inflação legislativa que conduz à inutilidade do ordenamento jurídico? Ou será a falta de uma estrutura administrativa que assegure a fiel observância da Constituição por parte dos membros dos Poderes Constituídos? Teria o apetite eleitoreiro falado mais alto e conduzido à apresentação de projetos de lei para inglês ver? Não descartamos nenhuma hipótese.

O fato é que, enquanto o Legislativo protagoniza espetáculos televisivos nas CPI’s (o que dá um ar de legitimidade para estas comissões), aquela senhora que outrora voltou para casa com a conta de telefone, continua devendo. Os referidos estudantes permanecem perplexos e Richarlyson lutando contra o preconceito. Assiste razão a Celso Antônio Bandeira de Mello quando diz que "Uma norma ou um princípio jurídico podem ser afrontados tanto à força aberta como à capucha. No primeiro caso expõe-se ousadamente à repulsa; no segundo, por ser mais sutil, não é menos censurável." [09]

Já se acreditou, com base na (falsa) idéia da democracia racial pregada por Gilberto Freire [10], que as relações raciais existentes no Brasil seriam menos opressivas do que as que caracterizam outros países em que houve escravidão, por várias razões históricas e culturais, dentre as quais o grau elevado de miscigenação que teria levado à inexistência de uma rígida separação entre as raças [11] (se é que é possível classificar ‘branco’, ‘negro’, ‘vermelho’, como raças distintas, o que também já se revelou um equívoco histórico).

A realidade nos leva a crer que a exclusão social (não só dos pobres) no Brasil se dá por meio insidioso. Ou seja, formalmente existe um intrincado aparato estatal de proteção das minorias que, na prática, revela-se um modelo deficiente de distribuição de justiça. E a culpa é de quem? Voltamos a citar Daniel Sarmento pois o mesmo, com grande sensibilidade, observou que "os desníveis sociais existentes no Brasil têm uma dimensão verdadeiramente ‘pornográfica’ [12]." Será a Constituição um corpo sem alma?

Ora, se o abismo social é tão evidente, por quê a evolução da Defensoria Pública no Brasil caminha a passos tão lentos? Recentemente a instituição mineira amargou um movimento grevista de mais de 5 meses. Isso porque falta pessoal para composição dos quadros da Defensoria, diversos núcleos instalados no interior funcionam precariamente e um Defensor Público ganhava cinco vezes menos que um Promotor de Justiça! Sem demérito destes profissionais, que fique bem claro. Queremos demonstrar o prejuízo social decorrente da desvalorização de uma instituição com potencial inimaginável, cujo fortalecimento propiciaria a inclusão política e jurídica de milhões de pessoas e possibilitaria reverter o nefasto quadro social exaustivamente traçado neste artigo.

Muito mudou, é preciso reconhecer. Mas lembremos que certas autoridades (não só em Minas Gerais) ainda insistem em desrespeitar a Constituição. Negam-se a aceitar a autonomia da Defensoria Pública, como se seu fortalecimento implicasse prejuízo para o Estado. Ignoram uma evolução legislativa e social que não tem mais volta. Prova maior é a alteração recente da Lei Federal nº 7.347/85, que possibilitou à Defensoria ingressar com a ação civil pública. Se a instituição tem poder, portanto, para reivindicar mudança nos planos de política pública, óbvio concluir que não existe qualquer tipo de vinculação da Defensoria Pública ao Poder Executivo.

Nessa linha de raciocínio, pasme, caro leitor: a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ingressou perante o Supremo Tribunal Federal, em 17 de agosto deste ano, com a ADI nº 3.943, arguindo a inconstitucionalidade da lei que inseriu a Defensoria como legitimada para propor ação civil pública. A postura é arbitrária e visa um retrocesso jurídico. Causa maior perplexidade por ser oriunda do Ministério Público, instituição incumbida justamente de proteger o cidadão. Voltamos a insistir: de que adianta tamanho número de leis protetivas das minorias?

Encerramos este texto lembrando as palavras do escritor mineiro Bartolomeu Campos Queiroz, que disse certa vez: "Cheguei à conclusão, em dois anos de convivência com os moradores de rua, de que a miséria leva à loucura." [13] A penúria arrasa o ser humano. Elimina sua personalidade. É preciso que o Estado Brasileiro se conscientize desse fato e entenda que Defensoria Pública forte é sinônimo de democracia, cidadania e liberdade. O contrário é Constituição sem alma, leis de todos os tipos, tão só no plano do ideal.


Notas

01 Nas palavras do mestre Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002., p. 343.

02 Fábio Konder Comparato. Uma morte espiritual. Folha de S. Paulo, caderno 1, p. 3, 14 de maio de 1998.

3 Op. Cit., p. 343.

04 Marcelo Campos Galuppo, Igualdade e Diferença, Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 173.

05 STF, Mandado de Injunção nº58/DF, Relator Ministro Carlos Velloso, decisão publicada em 19.04.1991.

6 Fonte: http://tecnologia.terra.com.br/interna, acesso realizado em 09.08.2007.

07 Sentença proferida em 05.07.2007, autos nº 936/07, em trâmite perante a nona Vara Criminal da Comarca de São Paulo/SP.

08 Registra-se que o sentido empregado para o termo "minorias" não é numérico, mas diz respeito àquela classe de pessoas historicamente excluídas e privadas de participação nas decisões político-sociais em razão de discriminações, como os portadores de deficiência física, idosos, índios, mulheres, negros, etc.

09 Celso Antônio Bandeira de Mello. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 3ª ed., 2005, p. 24.

10 Gilberto Freire. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro; José Olympio, 13ª ed., 1968.

11 Daniel Sarmento, A Igualdade Étnico-racial no Direito Constitucional Brasileiro: discriminação ‘de facto’, teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. Salvador: Jus Podium, 2006.

12Idem, p. 138.

13 Bartolomeu Campos Queiroz. Jornal da Unicamp. Caderno temático. Nº 165, agosto de 2001. Disponível em http://www.unicamp.br/unicamp.

Sobre o autor
Cirilo Augusto Vargas

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-MINAS. Ex-integrante do Projeto das Nações Unidas para Fortalecimento do Sistema de Justiça de Timor-Leste. Exerceu as funções de clerk perante a Suprema Corte do Estado do Alabama/EUA e de Defensor Público visitante perante a Defensoria Pública Federal do Estado do Alabama/EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Cirilo Augusto. O princípio constitucional da igualdade e o necessário fortalecimento da Defensoria Pública no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1526, 5 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10370. Acesso em: 23 nov. 2024.

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