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Fontes do Direito Penal:

necessária revisão desse assunto

Agenda 21/09/2007 às 00:00

Tendo em vista a relevância que contam nos dias atuais os princípios jurídico-penais assim como a importância do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que possui força supralegal (STF, RE 466.343-SP; STF, HC 90.172-SP), parece bastante oportuno revisar inteiramente o assunto fontes do Direito penal.

A doutrina clássica distingue a fonte de produção ou substancial ou material (quem pode criar o conjunto de normas que integra o Direito; quem é o sujeito competente para isso) das fontes formais (fontes de cognição ou de conhecimento ou de exteriorização desse Direito), que se dividem em fontes formais imediatas (lei etc.) e mediatas (costumes, jurisprudência, princípios gerais do Direito etc.). Essa classificação deve ser revisada. De qualquer modo, parece certo que os tratados e convenções internacionais configuram fontes imediatas, na medida em que exprimem normas de criação do Direito.

No âmbito específico do Direito penal, o assunto fontes deve partir de uma premissa muito relevante que é a seguinte: é fundamental distinguir o Direito penal incriminador (que cria ou amplia o ius puniendi, ou seja, que cuida da definição do crime, da pena, das medidas de segurança ou das causas de agravamento da pena) do Direito penal não incriminador (conjunto de normas penais que cuidam de algum aspecto do ius puniendi, sem se relacionar com o crime, a pena, as medidas de segurança ou com o agravamento das penas). O primeiro (Direito penal incriminador), no que se refere à sua origem (isto é, à sua fonte), é muito mais exigente (e restrito) que o segundo.

No que diz respeito ao Direito penal incriminador (conjunto de normas que cuidam do delito, da pena, da medida de segurança ou do agravamento das penas) somente o Estado está autorizado a legislar sobre Direito penal. Em outras palavras: ele é o único titular da criação ou ampliação do ius puniendi, logo, cabe a ele a produção material do Direito penal objetivo (ou seja: cabe ao Estado a criação das normas que compõem o Direito penal incriminador).

Capacidade legislativa dos Estados membros: por meio de lei complementar federal os Estados membros (quando concretamente autorizados) podem legislar sobre Direito penal, porém, somente em questões específicas de interesse local (CF, art. 22, parágrafo único).

No que diz respeito às fontes formais (como se exterioriza formalmente o Direito penal) faz-se mister distinguir as fontes formais do Direito penal em geral da fonte formal e única do Direito penal incriminador (que é a lei).

As fontes formais (ou imediatas) do Direito penal em geral são: a Constituição e seus princípios, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e seus princípios, a legislação escrita e seus princípios e o Direito Internacional não relacionado com os direitos humanos e seus princípios. A fonte formal (ou imediata) do Direito penal incriminador (que cria ou amplia o ius puniendi) é exclusivamente a lei. Os costumes, nesse contexto, são fontes informais do Direito penal. A doutrina e a jurisprudência, por último, configuram fontes formais mediatas.

A diferença entre fontes imediatas e mediatas é a seguinte: enquanto as primeiras revelam o direito vigente (Constituição, Tratados, leis) ou tido como tal (costumes), as segundas explicam ou interpretam e aplicam as primeiras.

A lei como fonte formal única, exclusiva e imediata do Direito penal incriminador: no que diz respeito às normas que criam ou ampliam o ius puniendi a única e exclusiva fonte de exteriorização é a lei formal (lei ordinária ou complementar), escrita, cujo conteúdo é discutido, votado e aprovado pelo Parlamento. Por força do nullum crimen, nulla poena sine lege nenhuma outra fonte pode criar crimes ou penas ou medidas de segurança ou agravar as penas (ou seja: nenhuma outra fonte pode criar ou ampliar o ius puniendi).

O que acaba de ser dito expressa o conteúdo do chamado princípio da reserva legal ou princípio da reserva de lei formal. Reserva legal é um conceito muito mais restrito que legalidade (que é um conceito amplo). A única manifestação legislativa que atende ao princípio da reserva legal é a lei formal redigida, discutida, votada e aprovada pelos Parlamentares. Essa lei formal é denominada pela Constituição brasileira de lei ordinária, mas não há impedimento que seja uma lei complementar que exige maioria absoluta (CF, art. 69).

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Constituição Federal: a Constituição Federal constitui fonte imediata ou direta do Direito penal (em geral), mas ela não pode definir crimes ou penas ou agravar as existentes. Essa função, por força do nullum crimen, nulla poena sine lege é exclusiva da lei ordinária ou complementar.

Os Tratados e Convenções internacionais tampouco podem cumprir esse papel. Recorde-se (como vimos acima) que os Tratados internacionais são firmados pelo Chefe do Executivo (Presidente da República). O Parlamento apenas referenda o Tratado, mas não pode alterar o seu conteúdo. Ou seja: não se trata de conteúdo que seja redigido, discutido e votado pelo Parlamento. Admitir que Tratados internacionais possam definir crimes ou penas significa, em última instância, conceber que o Presidente da República possa desempenhar esse papel. Com isso ficaria esvaziada a garantia política e democrática do princípio da legalidade (da reserva legal).

Medidas provisórias: no que concerne às normas penais incriminadoras (as que definem crimes, penas, medidas de segurança ou que agravam as penas), exclusivamente a lei penal formalmente redigida, discutida e aprovada pelo Parlamento (garantia da lex populi) é que serve de instrumento para essa finalidade. Em relação às normas penais não incriminadoras, conseqüentemente, admite-se a medida provisória como fonte formal do Direito penal. Em conclusão: a lei, por emanar do poder que encarna a soberania popular, conta com um plus de legitimidade política, diante de outras fontes. Sendo norma escrita, retrata uma segurança jurídica frente à arbitrariedade e ao ius incertum.


Como dizia o Marquês de Beccaria, Cesare Bonessana, "só uma norma procedente do poder legislativo, que representa toda uma sociedade unida pelo contrato social, pode limitar a sagrada liberdade do indivíduo, definindo os delitos e estabelecendo as penas". Sendo a lei formal a única e exclusiva fonte imediata do Direito penal incriminador (o que cria ou amplia o ius puniendi), não podem cumprir esse papel a lei delegada nem os princípios jurídico-penais nem os costumes.

Leis delegadas: considerando-se que as leis delegadas são elaboradas pelo Presidente da República (CF, art. 68), parece muito evidente que elas não servem de fonte para o Direito penal incriminador. Aliás, referidas leis não podem versar sobre direitos individuais (CF, art. 68, § 1º, II). Daí se infere que não podem cuidar da definição do delito nem das suas conseqüências jurídicas.

Princípios jurídico-penais: os princípios jurídico-penais, que são extraídos dos textos constitucionais, internacionais ou legais, constituem fontes formais imediatas do Direito penal (em geral), mas tampouco podem definir crimes ou penas ou medidas de segurança ou agravar penas. Os princípios ganham força a cada dia na nossa jurisprudência, mas não podem substituir a lei formal como fonte única do Direito penal incriminador.

Os costumes são "normas" de comportamento que as pessoas obedecem de maneira uniforme e constante (requisito objetivo), com a convicção de sua obrigatoriedade jurídica (requisito subjetivo). No âmbito penal, os costumes, como fontes informais, jamais podem criar crime ou pena ou medida de segurança ou agravar a pena. Podem, entretanto, beneficiar o agente (em casos específicos – cf. RT 594/365). Exemplo: imagine um costume indígena de praticar relação sexual com a adolescente logo após sua primeira menstruação. Mesmo que ela conte com treze anos de idade, não há que se falar em delito (nem em presunção de violência). Esse costume seria invocado pelo juiz para a absolvição do agente (por se tratar de fato atípico).

De qualquer maneira, quanto aos índios, não é correto concluir que a vida deles está regida exclusivamente pelos seus costumes. O homicídio praticado por índio, ainda que tenha como vítima outro índio, configura, em regra, um fato punível de acordo com o Direito penal nacional e, por isso mesmo, deve o autor responder por ele normalmente. Aliás, em regra a competência, nesse caso, é da Justiça estadual (Súmula 140 do STJ).

Fontes formais mediatas: duas são as fontes formais mediatas (que explicam ou interpretam ou aplicam as fontes imediatas ou informais): doutrina e jurisprudência.

1º) Doutrina: a função da doutrina (opnio doctorum) consiste em interpretar as fontes formais imediatas do Direito penal. Não conta com caráter vinculante, mas muitas vezes acaba bem cumprindo seu papel de evitar a improvisação e o arbítrio, oferecendo conceitos coerentes que muito contribuem para a sistematização do Direito.

2º) Jurisprudência: a decisão reiterada dos juízes e tribunais num determinado sentido forma a jurisprudência, que muitas vezes não só é fonte formal do Direito como inclusive "criadora" dele (por exemplo: quem afirma no Brasil que só existe crime continuado quando as infrações não se distanciam mais de um mês umas das outras? A jurisprudência. Logo, essa regra foi criada pela jurisprudência. É lógico que não é uma posição ortodoxa afirmar que o juiz "cria" o Direito, porém, na prática, é isso o que ocorre (muitas vezes) e inclusive é legítima essa função do juiz, desde que ele atue no âmbito do vazio legislativo (para suprir suas lacunas).

3º) Súmulas vinculantes: sendo as súmulas vinculantes uma parte da jurisprudência consolidada do STF, também elas constituem fonte mediata do Direito penal. Embora vinculantes, não possuem força de lei nem emanam do Poder Legislativo. É por isso que não podem ser classificadas como fonte imediata do Direito penal.

Súmula é a síntese ou o enunciado de um entendimento jurisprudencial extraída (extraído) de reiteradas decisões no mesmo sentido. Normalmente são numeradas. Desde a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) as súmulas podem ser classificadas em (a) vinculantes e (b) não vinculantes. Em regra não são vinculantes. Todas as súmulas editadas pelo STF até o advento da Lei 11.417/2006 não são vinculantes. Para serem vinculantes devem seguir rigorosamente o procedimento descrito nessa Lei, de 19.12.2006, que regulamentou o art. 103-A da CF (inserido na Magna Carta pela EC 45/2004).

Competência do STF: somente o STF pode aprová-las; nenhum outro tribunal do país pode fazer isso. Se o STF quiser transformar alguma súmula já editada (não vinculante) em vinculante, terá que seguir o novo procedimento legal.

Súmula vinculante e súmula impeditiva de recurso: a vinculante só pode ser emitida pelo STF; a impeditiva de recurso é qualquer súmula criada pelo STF ou STJ. Por força da Lei 11.276, de 07.02.2006, que alterou o art. 518 do CPC, "O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal" (art. 518, § 1º, do CPC); a súmula vinculante vincula sobretudo o juiz (que é obrigado a respeitá-la); a impeditiva não limita (não engessa) a atividade jurisdicional, podendo o juiz decidir contra a súmula; caso, entretanto, decida de acordo com seu sentido, não caberá sequer o recurso de apelação.

Aprovação por 2/3 dos membros do STF: para edição ou revisão ou cancelamento de uma súmula vinculante exige-se quorum qualificado (dois terços: leia-se: oito Ministros do STF). A súmula vincula os demais órgãos do Poder Judiciário (vincula todos os juízes, os tribunais e até mesmo as Turmas do próprio STF) assim como a administração pública, direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Fontes do Direito Penal:: necessária revisão desse assunto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1542, 21 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10375. Acesso em: 18 dez. 2024.

Mais informações

Texto resultante da fusão de uma série de dois artigos do autor.

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