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Adulteração de sinal identificador de veículo automotor:

Alterações promovidas pela Lei 14.562

A Lei 14.562, de 26 de abril de 2023, promoveu relevantes modificações no que concerne ao crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor, previsto no art. 311 do CP, ora ampliando seu alcance, ora criando tipos penais. O presente artigo se propõe a trazer reflexões sobre essas mudanças.

Inicialmente, a matéria foi tratada no Projeto de Lei da Câmara dos Deputados de nº 5.385/2019, o qual já contemplava uma redação bastante semelhante àquela constante da lei posteriormente publicada. Nesse projeto, a preocupação maior era com a inclusão, no âmbito do art. 311, de veículos não categorizados como automotores. Em sua justificativa ao projeto, o parlamentar responsável pela elaboração sustentou que “situações recentes têm demonstrado que a Lei penal já não mais comporta uma série de outros crimes que tem por finalidade a receptação de veículos não categorizados como automotores, como reboques, monoblocos dentre outros”.1 O parlamentar, inclusive, citou uma decisão do STJ, assim ementada: “ (…) a conduta imputada aos recorrentes — adulteração de placa de semirreboque — é formalmente atípica, pois não se amolda à previsão do artigo 311, caput, do Código Penal, de modo que, em atenção ao princípio da legalidade, é de rigor o trancamento da ação penal quanto ao delito em análise. (...)”.2

Em que pese essa pretensão, fato é que o projeto de lei foi além, trazendo a lume comportamentos periféricos em relação à efetiva adulteração de sinal identificador de veículo automotor, como, por exemplo, a aquisição de veículo adulterado e a posse de instrumentos destinados à adulteração.

Ao final da tramitação na Câmara dos Deputados, restou aprovado o substitutivo apresentado ao projeto original, com o qual guardava bastante semelhança. Encaminhou-se a matéria ao Senado Federal que, por emenda, apenas acresceu outros objetos materiais ao tipo penal (veículos elétricos e híbridos). Estabeleceu-se, assim, a redação final, posteriormente sancionada e publicada.

Iniciando a análise do resultado desse processo legislativo, desde logo se ressalta o substancial acréscimo nas elementares típicas do caput do art. 311:

Antes da Lei 14.562/2023

Após da Lei 14.562/2023

Art. 311. Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento: (Redação dada pela Lei nº 9.426, de 1996)

Art. 311. Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas combinações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente: (Redação dada pela Lei nº 14.562, de 26 de abril 2023 – DOU 27.04.23)

A definição dos contornos e da extensão do tipo penal, como atividade hermenêutica, exige que seja enfrentado o seguinte questionamento: qual é o objeto de tutela no art. 311 do CP?

Topograficamente, o tipo se encontra localizado no Título X, que trata dos crimes contra a fé pública, mais precisamente no Capítulo IV (De Outras Falsidades). Busca-se tutelar a autenticidade e a confiabilidade dos sinais identificadores de veículos, seja para a licitude das relações de compra e venda de tais bens, seja para o próprio exercício da fiscalização dos órgãos públicos. Nesse sentido, nos parece adequado sustentar o bem jurídico tutelado como a fé pública.

A adulteração e a remarcação de sinais identificadores fazem com que a confiança difusamente depositada nessa forma de controle seja abalada, justificando-se a conclusão. Ademais, esses atos de alteração material também prejudicam o exercício da almejada fiscalização da cadeia de aquisições. A supressão dos sinais, ao seu turno, afeta unicamente esse poder fiscalizatório, mas ainda pode ser apontada como uma forma de lesão à fé pública.

Quanto ao objeto material do crime, antes tínhamos “número de chassi ou qualquer sinal identificador”. Houve acréscimo na nova redação, que passa a prever “número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador”. Tal modificação nos parece apenas cosmética, considerando que os arts. 114 e 115 do CTB (Lei nº 9.503/1997) já dispõem sobre quais são os sinais identificadores de veículos: numeração gravada no chassi ou monobloco e placas dianteira e traseira.3 Ademais, o preciosismo do legislador, ao descrever em minúcias as hipóteses casuísticas, não importou inovação fática, pois já eram elas contempladas, de uma forma ou de outra, pela expressão genérica “ou qualquer outro sinal identificador”, que denota fórmula clássica de interpretação analógica ou intra legem. Ressalte-se que a cor de um veículo não é sinal identificador, mas mera característica, assim como não o são os elementos distintivos não oficiais, acrescidos ao veículo por particulares, como adesivos afixados na lataria (porr exemplo, o escudo de um time de futebol.4

O sinal identificador adulterado, remarcado ou suprimido se refere a veículo automotor, elétrico, híbrido, ou veículo destinado ao engate em outros, como o reboque ou o semirreboque. Esse acréscimo colmata a lacuna que fora apontada pelo STJ sobre reboques e semirreboques, como visto, e ainda acrescenta outras espécies de veículos, adequando-se, assim, ao preceituado no art. 96, I, do CTB. Saliente-se, por oportuno, que a aplicabilidade do art. 311 do CP não se limita aos veículos de que trata o CTB, ou sequer aos veículos terrestres. Quadriciclos, motos de enduro e outros veículos não precisam ser emplacados, mas possuem sinais identificadores, como chassis. O mesmo ocorre com veículos náuticos, como o jet-ski, e aeronaves. Esses veículos podem figurar como objeto do delito em estudo, já que a norma nada menciona em sentido contrário, além de inexistirem limitações hermenêuticas a essa conclusão.5

Além das já existentes, criou-se outra ação nuclear, consistente no verbo “suprimir”, ao lado das condutas de “adulterar” e “remarcar”. Ou seja, o tipo, que já era plurinuclear, teve o seu alcance incrementado.

Adulterar significa ordinariamente modificar, introduzir alteração (ao sinal identificador). Remarcar, por sua vez, é uma modalidade específica de adulteração, em que se atribui novo sinal identificador, em substituição total ao já existente. Havia quem sustentasse que o corte de chassi (entre outras hipóteses assemelhadas), com eliminação do sinal identificador, mas sem sua substituição, era conduta que não se subsumiria à norma do art. 311 (que não abarcava a supressão).6 Em refutação, afirmava-se que a amplitude do verbo “adulterar” contemplaria qualquer forma de alteração do sinal, inclusive a supressão, sendo certo que o STJ chegou a acolheu tal raciocínio, por maioria.7 De todo modo, o acréscimo do comportamento de “suprimir” sepulta essa celeuma. Contudo, ela se mantém relevante para o conflito intertemporal de normas, uma vez que – se reconhecido que o corte do chassi era conduta atípica – a nova lei é prejudicial, ao passo em que não há alteração na punibilidade para quem interpretava o verbo adulterar de forma ampla.

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Outrossim, muito se discutia sobre a tipicidade de eventual adulteração temporária do sinal identificador em placas de veículos. Como exemplo, imaginemos a hipótese de um município em que é imposto rodízio de veículos por final do número de placa: buscando burlar o rodízio e transitar fora do dia permitido, o proprietário do veículo, com uma fita adesiva, transforma um número três (3) em um número (8).

Parte da doutrina sustentava que a alteração, por ser transitória,8 e, até mesmo, grosseira, afastaria a incidência do tipo penal do art. 311 do CP. O STJ, porém, entendeu que a conduta subsumir-se-ia ao crime em comento, pois o tipo penal não faz nenhuma distinção entre a adulteração ser definitiva ou transitória. Consta da decisão da Corte o seguinte trecho: “(…) a norma contida no art. 311 do Código Penal busca resguardar a autenticidade dos sinais identificadores dos veículos automotores, sendo, pois, típica, a simples conduta de alterar, com fita adesiva, a placa do automóvel”.9

Nos parece acertada a posição do STJ, considerando que a adulteração temporária vulnera o bem jurídico tutelado, na medida em que dificulta, ou mesma impede, fiscalização dos órgãos públicos, como em infrações feitas por radares. Não nos parece procedente o argumento de que tal adulteração seria grosseira, uma vez que facilmente perceptível ictu oculi, pois a fiscalização nem sempre se dá de forma presencial, bastando a capacidade de fraudar imagens captadas por radares, ou de iludir a observação pessoal, mas breve, de um carro em movimento, em que a percepção da falsidade por parte do agente público é bastante dificultada. Assim, se possível o atingimento do bem jurídico tutelado através da adulteração, não há se falar em atipicidade por ausência de lesividade (falsidade grosseira).

Perceba-se que a Lei nº 14.562 não alterou esse panorama. Ou seja, a posição esposada pelo STJ continua válida. Contudo, agora ela repercutirá não apenas na adulteração ou na remarcação transitória, mas também na supressão. Nesse contexto, se alguém retira a placa do seu veículo para fazer uma viagem breve sem ser multado e, ao chegar ao seu destino, recoloca-a, há o crime do caput do art. 311 do CP.

O § 1º do art. 311 não sofreu nenhuma modificação estrutural. O § 2º, entretanto, foi sensivelmente alterado, com a inclusão de comportamentos que anteriormente ficavam impunes ou que eram punidos através de discutíveis soluções interpretativas, como no caso da condução de veículo automotor com sinal identificador adulterado, sem que houvesse a possibilidade de determinar sua origem, hipótese, para muitos, de atipicidade e, para outros, de reconhecimento do crime de receptação.

Antes da Lei 14.562/2023

Após da Lei 14.562/2023

§ 2º. Incorre nas mesmas penas o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996)

§ 2º. Incorrem nas mesmas penas do caput deste artigo: (Redação dada pela Lei nº 14.562, de 26 de abril 2023 – DOU 27.04.23)

I – o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial; (Incluído pela Lei nº 14.562, de 26 de abril 2023 – DOU 27.04.23)

Sem correspondente

II – aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput deste artigo; ou (Incluído pela Lei nº 14.562, de 26 de abril 2023 – DOU 27.04.23)

III – aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado. (Incluído pela Lei nº 14.562, de 26 de abril 2023 – DOU 27.04.23)

O inciso I do § 2º traz uma conduta que já era incriminada (funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial). A esse modelo comportamental, foram agregados outros dois.

O inciso II passou a responsabilizar criminalmente “aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput deste artigo”. Ou seja, ao erigir um ato preparatório do tipo penal do caput à qualidade de ato executório de um tipo penal autônomo, entendeu, o legislador, que essa conduta, por si só, já representa um risco ao bem jurídico tutelado. Não se trata de algo estranho no âmbito dos crimes contra a fé pública, dada a redação dos artigos 291 (petrechos para a falsificação de moeda) e 294 (petrechos de falsificação) do CP. Aqui, estamos diante de evidente situação de novatio legis in pejus.

A alteração mais relevante, todavia, foi aquela que se deu sobre o inciso III do § 2º. Agora, são criminalizadas expressamente as condutas de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, manter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado.

Observa-se que o legislador criou tipo penal autônomo para aquele indivíduo que conduz veículo adulterado ou remarcado. Aqui o legislador não repetiu o verbo “suprimir”. Surge, então, a seguinte pergunta: é crime a conduta do agente que conduz veículo que, embora emplacado, teve a placa retirada?

Como premissa devemos enfrentar o questionamento se retirar a placa de um veículo automotor é crime e, como já visto, a resposta é positiva.

Poderíamos, em uma leitura apressada, conjecturar uma interpretação mais restritiva, no sentido de que apenas a supressão de letras ou números da placa seria conduta criminosa. Sem embargo, tal argumento se mostra desarrazoado. Se o agente que recorta (suprime) o chassi do veículo realiza conduta (hoje) indiscutivelmente criminosa, dado o núcleo “suprimir” – ou, mesmo a forma mais ampla, “adulterar” – presente no caput do art. 311 do CP, devemos aplicar o mesmo raciocínio à retirada da placa, pois ambos, chassi e placa, são sinais identificadores previstos na norma.

Voltemos ao caso do indivíduo que conduz veículo em que a placa foi retirada. Aqui, devemos refletir se a previsão dos vocábulos “adulterado” ou “remarcado”, apenas, omitindo-se a palavra “suprimido”, importará prejuízo à subsunção da conduta. Duas orientações se mostram sustentáveis.

A primeira orientação, seguindo uma interpretação literal, pode sustentar que a não reprodução, no inciso III do § 2º, do vocábulo “supressão”, afasta a subsunção da conduta do indivíduo que conduz veículo com placa retirada (suprimida). Para essa tese há uma distinção de sentido entre “adulterar” e “suprimir”. Dito de outra forma, as possibilidades de sentido do “adulterar” não se sobrepõem ao “suprimir”, pois o legislador, ao enumerar tais condutas de forma separada, teria pretendido atribuir significados diversos. Assim, “adulterar” significaria qualquer forma de alteração do sinal original, salvo a remarcação e a supressão. Manteríamos, com isso, a diferença de sentido entre esses núcleos verbais, o que impediria a adequação típica da conduta daquele que conduz veículo com placa suprimida ao § 2º, III, do art. 311.

Uma segunda orientação possível se coaduna com o sentido mais amplo atribuído ao núcleo verbal “adulterar”. Em tipos mistos alternativos, é comum que o legislador se valha de um verbo com sentido mais amplo (como adulterar), buscando exaurir condutas, mesmo quando os sentidos se sobrepõem, a fim de que nada fique de fora do âmbito do tipo, de modo que, quando uma das especificações é omitida, o significado genérico do verbo mais abrangente acaba por encampar a lacuna.

Pensamos que, devido a essas duas possibilidades interpretativas, temos aqui a norma que mais gerará debates e divergências, até que amadureça doutrinária e jurisprudencialmente o exato sentido da incriminação.

Adotando-se a primeira orientação, isso significa que conduzir veículo automotor sem placa será uma conduta atípica? Novamente tal questionamento deve ser observado com cautela. Antes das inovações promovidas pela Lei nº 14.562, havia quem autuasse o condutor de um veículo com sinal identificador adulterado no crime de receptação (dolosa ou culposa), concepção que cremos equivocada. Entendiam alguns aplicadores do direito que, nessas circunstâncias, o veículo poderia ser considerado produto de crime, mesmo que não fosse demonstrada sua origem. Não estamos aqui falando daquele veículo em que se comprovava a existência de um roubo, de um furto ou outro delito prévio, tendo ele como objeto. Nessa hipótese, a receptação seria óbvia. Cuidamos da situação em que a adulteração ou remarcação do sinal identificador impedia a descoberta da origem da coisa. Mesmo falecendo essa demonstração, muitos consideravam que o veículo era produto de crime. Mas qual crime? O do art. 311 do CP. Assim, não existindo como imputar a adulteração ao condutor, pois desconhecia-se a identidade do adulterador, responsabilizava-se aquele que estava na direção do veículo automotor por crime do art. 180 do CP.

Outros juristas, com os quais concordamos, discordavam dessa ótica, sustentando que o veículo adulterado não era produto, mas objeto material de crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor e, por conseguinte, não haveria como sustentar crime de receptação, por falecer a elementar “produto de crime” do art. 180 do CP. Produto de um crime é aquilo que se arrecada através da empreitada criminosa e o veículo não é uma vantagem conquistada através do crime. A vantagem, nesse caso, seria imaterial (a burla à fé pública), o que não ingressa no conceito de produto de crime.

E qual é a relação disso com a direção de veículo com sinal identificador suprimido, para quem entende que esta conduta não é contemplada pelo § 2º, III, do art. 311? Ora, ao caput do dispositivo foi incluído o núcleo suprimir. Destarte, o veículo com sinal identificador suprimido pode ser considerado – por aqueles que assim já pensavam – produto do crime do caput do art. 180 do CP e, pela outra vertente, mero objeto material desse crime. Para quem adota essa segunda vertente, a conclusão inafastável é pela atipicidade da conduta (essa é a posição por nós assumida como correta). Contudo, para aqueles que criam na existência de um produto de crime prévio, persiste a possibilidade de reconhecimento da receptação, desde que o condutor não seja o próprio autor da supressão (hipótese em que o crime será o do caput do art. 311).

Estabelecidas tais compreensões, surge uma pergunta que a muitos inquieta: há crime em encobrir sinais identificadores ou conduzir um veículo com os sinais identificadores encobertos? Tem-se aqui o exemplo do sujeito ativo que cola adesivo na placa, não para transformar um símbolo alfanumérico em outro, mas para escondê-lo. Pensamos que se trata de uma hipótese clara de adulteração, que, como visto, é um verbo com acepção bastante ampla. Encobrir (seja com um adesivo, um pedaço de cartolina ou qualquer outro expediente) é uma forma de ocultação, que não se confunde com a supressão, de modo que essa forma de adulteração permite o reconhecimento tanto do caput do art. 311, quanto do seu § 2º, III.10

E se o condutor, ao passar por um radar de fiscalização de velocidade, curva seu corpo na motocicleta por ele guiada e tapa a placa com a própria mão? Seria essa hipótese também uma adulteração temporária? Parece-nos que esse comportamento não integra o modelo de conduta proibido pela norma. Adulterar algo pressupõe uma afetação material dos símbolos alfanuméricos, seja pela aderência ou pela supressão. Gestos não aderem ao sinal ou o suprimem, restando, assim, evidenciada a atipicidade.

Outro ponto que merece enfrentamento é o elemento subjetivo do tipo do inciso III. O legislador o descreveu como “devesse saber”, o que a doutrina costuma apontar como uma referência ao dolo eventual, ressalvada a opinião de alguns autores sobre a ausência de correlação entre o termo e a espécie de dolo.11 Caso se adote a posição majoritária, no entanto, cumpre indagar: caso o agente efetivamente saiba da condição do veículo ou seja, caso atue com dolo direto? Tal conduta seria atípica em virtude de a norma usar unicamente a expressão “devesse saber”? Ou o dolo direto estaria abrangido implicitamente pelo mesmo inciso III?

Questionamento semelhante foi respondido pelo STF, ao tratar da receptação qualificada (art. 180, § 1º, do CP, tipo penal que serviu de inspiração ao § 2º, III, do art. 311).12 Na ocasião, decidiu-se que, ao prever, o legislador, apenas figura do dolo eventual (de menor gravidade), a figura abarcaria também o dolo direto (de maior gravidade). Logo, seguindo o mesmo raciocínio, o tipo subjetivo do inciso III abrange tanto o dolo eventual quanto o dolo direto. Frise-se, aliás, que não há modalidade culposa de adulteração de sinal identificador de veículo automotor e figuras correlatas.

Outro ponto interessante versa sobre os veículos oriundos de leilões, comprados como sucatas, embora frequentemente mantenham-se operacionais. Existem atos normativos que exigem, nessas alienações, que o leiloeiro inutilize placas e a parte do chassi correspondente ao VIN (número internacional de verificação do veículo), consoante art. 16, § 2º, da Resolução do Contran nº 623/2016, ou, ainda, que o chassi seja recortado e recolhido, como ordena o art. 3º da Portaria Pres-Detran-RJ nº 3.929/2008. Essa mesma portaria, aliás, que se restringe a motocicletas, exige que aquelas leiloadas na condição de sucata sejam prensadas (art. 4º). Visa-se a evitar que veículos produtos de crimes (roubo/furto/estelionato etc.), em perfeitas condições de uso, sejam “esquentados” como supostas sucatas compradas em leilões, passando a transitarem livres de fiscalização nas vias.

Embora, no caso de leilões, a supressão do sinal identificador seja um imperativo legal – logo, não constitui crime –, trafegar com esses veículos (que deveriam estar prensados, na normativa fluminense, o que, ao menos, somente poderiam ter suas peças reaproveitadas, mas não poderiam ser novamente usados como veículos, na resolução do Contran) constituiria, a princípio, mera infração administrativa. Contudo, para aqueles que interpretam o verbo “adulterar” no § 2º, III, de forma ampla, incorporando também a supressão (a divergência interpretativa já foi exposta), haverá crime, ainda que a adulteração (supressão) inicial seja lícita, posto que a condução de veículo com chassis recortado (uma forma de adulteração), que vulneraria o bem jurídico.

Assim como no caput, o bem jurídico tutelado no § 2º, III, é a fé pública. Conduzir um veículo adulterado ou remarcado é uma conduta que se assemelha com a de uma pessoa que não falsificou documento algum, mas o utiliza para a finalidade à qual se destina. No uso de documento falso, perceba-se, não se nega que o bem jurídico tutelado é a fé pública.

É possível o reconhecimento de concurso de crimes entre o crime de receptação e a adulteração de sinal identificador de veículo automotor (caput e § 2º)? Sim, desde que demonstrada a existência de uma infração prévia (furto, roubo, estelionato, peculato etc.), cuja autoria não é daquele que se pretende punir pelo delito do art. 311 do CP. Isso porque a adulteração (ou a condução de um veículo adulterado) tem uma potencialidade lesiva que não se esgota no encobrimento do delito anterior, de sorte que não há como se defender a consunção entre os tipos penais. Perceba-se que aqui não se está defendendo a existência de receptação de veículo que seja produto de crime do art. 311 do CP, posição da qual discordamos enfaticamente, mas sim de outros delitos com existência devidamente comprovada.

No tocante ao concurso aparente de normas entre os tipos penais posicionados dentro da estrutura do art. 311, parece-nos claro que o caput do dispositivo prevalece sobre o § 2º, II, em uma relação de subsidiariedade, já que aquele representa uma forma mais intensa de afetação da mesma objetividade jurídica. Já em relação ao § 2º, III, pensamos que é este que prevalece, em detrimento do caput, dada a relação de crime-meio e crime-fim.

Por derradeiro, mister seja enfrentada a qualificadora inscrita no § 3º do art. 311, que prevê margens penais intensificadas quando os delitos dos incisos II e III do § 2º são praticados em atividade comercial, ainda que irregular ou clandestina (§ 4º), ou industrial.

Perceba-se que a qualificadora não incide sobre o caput do artigo 311 do CP. Nesse diapasão, se o dono de uma oficina é remunerado para realizar a adulteração, supressão ou remarcação, seu crime não será qualificado. Entrementes, se ele costuma assim agir para vender o veículo posteriormente, haverá a incidência da qualificadora, já que a conduta praticada não está no caput, mas no § 2º, III, do mesmo artigo.

E se o entregador de comida ou compras, ou o mototaxista, ou motorista por serviço de aplicativo (ou qualquer outra atividade assemelhada), usa um veículo adulterado ou remarcado na atividade remunerada? O delito é qualificado? Pensamos que sim. A expressão atividade comercial, usada pelo § 3º, possui acepção ampla, contemplando também a prestação de serviços.

Evidentemente, o texto não tem a pretensão de esgotar as discussões sobre o tema, que, imaginamos, serão intensas, tampouco enunciar verdades absolutas. Busca, em verdade, contribuir para o debate, levantando reflexões pontuais e argumentos favoráveis e contrários a possíveis soluções. Visa-se, assim, a promover o amadurecimento doutrinário necessário à segurança jurídica na aplicação da norma.


  1. O projeto original e sua justificação podem ser encontrados em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1816341&filename=PL%205385/2019.

  2. STJ, RHC 98.058-MG, 6ª Turma, rel. Min. Laurita Vaz.

  3. Com base na redação original do dispositivo, Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Delmanto Jr. e Fábio Delmanto sustentavam que a adulteração de placas não se prestava a caracterizar o delito em comento, porque “não se está adulterando sinal identificador obrigatório do veículo, mas mero sinal externo (placas), de forma que o veículo permanece sendo perfeitamente individualizado, bastando conferir o número do chassi não adulterado” (Código Penal Comentado, São Paulo: Saraiva, 2010. p. 886.). Essa lição não mais se sustenta, pois hoje o tipo penal é expresso ao mencionar as placas de identificação.

  4. Nesse sentido, Raquel Lima Scalcon. In SOUZA, Luciano Anderson et al. Código Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020. p. 1032.

  5. Cleber Masson, em ensinamento que reputamos equivocado, aparentemente limita a incidência do tipo aos veículos automotores mencionados pelo CTB (Direito Penal. São Paulo: Forense, 2018. p. 618).

  6. Nesse sentido, Cléber Masson (Direito Penal. São Paulo: Forense, 2018. p. 619)

  7. STJ, HC nº 480.670-SC, j. em 2.3.2020.

  8. Nesse sentido, André Estefam. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 4, p. 184.

  9. STJ, AgRg no REsp n. 1.327.888, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. em 11.03.2015.

  10. Convém trazer à baila a posição de Cléber Masson, para quem o verbo “ocultar” não é incriminado no art. 311 (Direito Penal. São Paulo: Forense, 2018. p. 619).

  11. Nesse sentido, por todos, Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 316-317. Em sentido contrário, Cleber Masson. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018. v. 2. p. 734.

  12. STF, HC nº 97.344-SP, rel. Min. Ellen Gracie, j. em 12.5.2009. No mesmo sentido, STJ, EREsp 772.086-RS, rel. Min. Jorge Mussi, j. em 13.10.2010. Em sentido contrário, encontramos uma decisão um pouco mais antiga do STJ (HC nº 109.780-SP, rel. p/ o acórdão Min. Nílson Naves, j. em 16.12.2008.

Sobre os autores
Bruno Gilaberte

Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direitos Fundamentais. MBA em Gestão da Segurança Pública. Presidente da Banca de Direito Penal do Concurso Público para Delegado de Polícia do Rio de Janeiro. Professor, autor de livros jurídicos e articulista.

Marcus Vinícius Lopes Montez

bacharel em Direito, pós-graduando pela Universidade Estácio de Sá

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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