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Atuação do Ministério Público no combate ao cooperativismo fraudulento

Agenda 09/05/2023 às 17:25
Resumo informativo: O presente trabalho tem por objeto a investigação científica acerca do papel do Ministério Público do Trabalho no combate à utilização fraudulenta das cooperativas para encobrir verdadeiras relações de trabalho. Serão apresentados parâmetros para aferição da fraude, além de estratégias para tornar a atuação do parquet eficiente
Palavras-chave: Cooperativismo fraudulento; Ministério Público do Trabalho; Atuação estratégica

Introdução

A Constituição da República de 1988, que representa um verdadeiro projeto de redemocratização da sociedade brasileira, elegeu a relação de emprego como formatação jurídica adequada para acomodar a prestação de serviços subordinado. É por meio dela que os trabalhadores conseguem acessar uma elevada gama de direitos fundamentais sociais trabalhistas e previdenciários relacionados na própria constituição e em legislações infraconstitucionais.

Não obstante, com escopo de afastar a incidência desse corpo normativo protetivo, não é incomum a utilização de subterfúgios aparentemente legais para mascarar verdadeiras relações de emprego. É o caso, por exemplo, do uso do cooperativismo fraudulento.

As fraudes nas relações de trabalho são condutas ardis que se propõem a encobrir verdadeiros vínculos empregatícios por meio de contratos civis formalmente válidos. Essas condutas fraudulentas têm por objetivo final a não aplicação da legislação social trabalhistas, o que ocorre, por exemplo, com a intermediação de mão de obra através de cooperativas irregulares.

Diante de um cenário de robusta identificação do cometimento dessa espécie de fraude, o Ministério Público do Trabalho deve atuar de forma estratégica e eficiente para cessar de imediato a irregularidade e evitar que ela ocorra novamente. Portanto, neste trabalho serão apresentados parâmetros para aferição da fraude, além de estratégias para tornar a atuação do parquet eficiente

A difusão do uso de cooperativas fraudulentas foi maximizada a partir da edição do art. 442-B, § único, da CLT, que afasta em abstrato a existência de vínculo empregatício entre o cooperado e a cooperativa ou o tomador dos serviços. Contudo, o referido dispositivo deve ser lido à luz da Constituição da República e de forma sistemática com os arts. 2º, 3º, 9º e 444, da CLT, além das Recomendações 193 e 198 (art. 4º, “b”) da OIT. Dessa forma, ante o princípio do contrato realidade, a identificação em um caso concreto da presença dos elementos caracterizadores do vínculo empregatício deve conduzir à inarredável declaração de existência da relação de emprego.

A construção desse silogismo perpassa pela ideia de que, embora o constituinte tenha incentivado o cooperativismo (arts. 5º, XVIII e 174, § 2º, da CF), foram fixados como fundamentos da República a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (arts. 1º, III e IV, da CF). Portanto, assim como referido por Kant, “o homem é um fim em si mesmo”, não podendo ser utilizado como instrumento para consecução de fins alheios, sendo transformado em mercadoria (Declaração de Filadélfia).

À luz dessas premissas, deve-se combater as cooperativas fraudulentas e estimular a criação e desenvolvimento de cooperativas lícitas. A verdadeira cooperativa é a sociedade criada por pessoas, com natureza civil, constituída para prestar serviços aos próprios associados e/ou terceiros (art. 4º, da Lei 5764/1971 c/c art. 2º, da Lei 12.690/2012).

A regularidade das cooperativas de trabalho pressupõe que o seu funcionamento seja regido de acordo com alguns princípios, a exemplo da adesão voluntária/livre e gestão democrática (art. 3º, I e II, da Lei 12.690/2012). Esse requisito é desrespeitado, por exemplo, quando se verifica que os cooperados não são convidados para assembleias, não participam da gestão da cooperativa e sua associação à cooperativa é fruto de imposição unilateral do tomador como condição para obtenção do trabalho.

Também deve ser observado, como requisito indispensável para licitude da cooperativa, a regra do “retorno das sobras líquidas do exercício (art. 4º, VII, da Lei 5764/1971). Deve haver, ainda, uma retribuição pessoal diferenciada (art. 2º, da Lei 12.690/2012), ou seja, o cooperado deve ter uma vantagem remuneratória em comparação com a prestação de serviços fora do sistema da cooperativa.

Por fim, a licitude da cooperativa demanda a existência do requisito da “dupla qualidade”, segundo a qual os cooperados devem, ao mesmo tempo, prestar serviços e serem clientes da cooperativa, usufruindo consequências desse duplo status.

Esses parâmetros são utilizados pela jurisprudência para aferir a licitude ou não das cooperativas, verbis:

UNICIDADE CONTRATUAL. RECONHECIMENTO DO VÍNCULO DE EMPREGO. COOPERATIVA. FRAUDE. Na hipótese, o Regional manteve a sentença em que se reconheceram a unicidade contratual e o vínculo de emprego com a primeira reclamada (FUNDEP), bem como se declarou a responsabilidade solidária da primeira e segunda reclamadas, tendo em vista que ficou demonstrada a intermediação de mão de obra por meio de cooperativa fraudulenta. Consta do acórdão regional que "as duas primeiras demandadas recrutavam e disponibilizavam trabalhadores da área de saúde para o Hospital das Clínicas, cuja mantenedora é a 3ª ré, só que a 1ª ré cuidou de formalizar o contrato de trabalho, ainda que apenas em parte do período, enquanto a 2ª ré mascarava a intermediação, mediante uma suposta "livre" adesão da obreira como cooperada, o que foi desmentido por sua própria preposta". Verifica-se, portanto, que a prestação de serviços da reclamante como cooperada se mostrou fictícia e que a contratação se destinou apenas à intermediação de trabalho subordinado, com desvirtuamento do sistema cooperado e afronta aos princípios trabalhistas. Desse modo, qualquer tentativa de reverter a decisão do Regional quanto ao preenchimento dos requisitos para caracterização do vínculo de emprego entre as partes, inequivocamente, implicaria o revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, procedimento vedado nesta Corte superior, nos termos da Súmula nº 126 do Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de instrumento desprovido. (AIRR-10687-35.2015.5.03.0185, 3ª Turma, Relator Ministro Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 28/10/2022).”

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017 . RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ENTE PÚBLICO. CONTRATAÇÃO POR MEIO DE COOPERATIVA FRAUDULENTA. CULPA IN ELIGENDO . REQUISITOS DO ARTIGO 896, § 1º-A, DA CLT, NÃO ATENDIDOS. PREJUDICADO EXAME DE TRANSCENDÊNCIA. Apesar de o art. 896-A da CLT estabelecer a necessidade de exame prévio da transcendência do recurso de revista, a jurisprudência da Sexta Turma do TST tem evoluído para entender que esta análise fica prejudicada quando o apelo carece de pressupostos processuais extrínsecos ou intrínsecos que impedem o alcance do exame meritório do feito, como no caso em tela. O recurso de revista obstaculizado não atende aos requisitos estabelecidos no artigo 896, § 1º-A, da CLT, em especial no que se refere à indicação dos trechos da decisão recorrida que efetivamente consubstanciam o prequestionamento da controvérsia debatida nos autos concernente à responsabilidade subsidiária da Administração Pública. No caso em tela, está consignado no acórdão regional: " Por outro lado, restou configurada a contratação, pelo Município, de cooperativa fraudulenta, sem que tenha sido precedido de planejamento prévio, com definição de prazos e condições para o seu desempenho, nos moldes dos artigos 3º, III, e 7º, § 6º, da Lei nº 12.690/2012, considerada assim aquela que, sob o manto da legalidade, contrata pretensos associados, que nada mais são do que empregados subordinados, que se inserem no quadro funcional da empresa, restando evidenciada a conduta culposa do ente municipal, tanto porque anuiu com a arregimentação fraudulenta de dezenas de trabalhadores, sem exigir o cumprimento dos requisitos das Leis nº 5.764/71 e 12.690/2012 por parte da cooperativa reclamada, como também negligenciou a fiscalização da referida terceirização, permitindo que a entidade contratante sonegasse direitos básicos do (a) empregado(a), a exemplo da anotação da CPTS, 13º salário e FGTS. Desse modo, uma vez caracterizadas as irregularidades, constata-se, no mínimo, a hipótese de culpa in eligendo, requisito substancial para a responsabilização do ente público pelas verbas devidas pela prestadora de serviço público terceirizada, em consonância com a jurisprudência do STF ". Contudo, o município recorrente indicou em suas razões de revista o seguinte trecho do acórdão de recurso ordinário: " (...) No que tange ao tema em discussão, há que se considerar o atual posicionamento consolidado pelo TST diante do julgamento da ADC 16/DF pelo STF, considerando a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei de Licitação, ' no sentido de não ser viável a transferência dos encargos trabalhistas pelo só fato da inadimplência das obrigações pela empresa prestadora de serviços, mas a omissão do órgão público poderia gerar tal responsabilidade, necessário que, para a atribuição de responsabilidade subsidiária a ente público, proceda-se ao exame da ocorrência da omissão da administração pública na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada.' (RR - 2836-18.2010.5.02.0000, Relator Ministro: Fernando Eizo Ono, Data de Julgamento: 31/08/2011, 4ª Turma, Data de Publicação: 09/09/2011). (...) Sempre ressaltei, por outro lado, que a decisão do Plenário do STF no julgamento da ADC nº 16, que declarou a constitucionalidade do art. 71, § 1º da Lei nº 8.666, esclareceu que isso não afasta a possibilidade de responsabilização subsidiária do ente público tomador de serviços, na análise do caso concreto. Por conseguinte, o TST procedeu à revisão da Súmula 331, em maio de 2011. Assim, à luz do entendimento proferido pelo STF, no julgamento do RE 760931/DF, não se pode transferir para a Administração Pública, automaticamente, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas devidos ao empregado de empresa terceirizada inadimplente, mas somente quando restar comprovada de forma inequívoca a sua culpa na fiscalização das medidas assecuratórias previstas na Lei de Licitações e no próprio contrato de prestação de serviços, o que restou provado na hipótese. (...) ". Nesse contexto, da análise dos fundamentos contidos no acórdão regional, verifica-se que a transcrição realizada pelo segundo reclamado revela-se insuficiente, visto não conter o principal fundamento adotado pelo TRT, qual seja, a contratação por meio de cooperativa fraudulenta. Referida transcrição dificulta também a demonstração analítica entre os fundamentos decisórios e as teses recursais. Pelo exposto, constata-se que o recorrente deixou de indicar todos os trechos pertinentes do acórdão, bem como de promover o devido cotejo analítico, desatendendo ao requisito do art. 896, § 1º-A, I e III, da CLT. Prejudicado o exame dos critérios de transcendência do recurso de revista. Agravo de instrumento não provido" (AIRR-17016-56.2018.5.16.0004, 6ª Turma, Relator Ministro Augusto Cesar Leite de Carvalho, DEJT 25/11/2022).

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Diante desse contexto, sobretudo a partir da necessidade de se obstar a difusão do cooperativismo fraudulento, serão analisadas no próximo tópico as estratégias para tornar a atuação do parquet eficiente.

O Ministério Público do Trabalho tem a missão constitucional de defender o ordenamento jurídico, o regime democrático e os direitos e interesses sociais e individuais indisponíveis no âmbito das relações de trabalho, nos termos dos arts. 127 e 129, da Constituição da República. Esse conjunto de atribuições abrange o combate ao cooperativismo fraudulento, por se tratar de grave violação aos direitos fundamentais trabalhistas.

O MPT tem atuação destacada nessa temática, com auxílio essencial e especializado da coordenadoria sobre fraudes (CONAFRET).

No âmbito repressivo, o parquet pode propor a celebração de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) ou mesmo ajuizar Ação Civil Pública (ACP), ambos com obrigações de fazer e não fazer direcionadas às cooperativas e tomadoras, no sentido de não se valer de cooperativas para simples intermediação de mão de obra. Também é possível vindicar o reconhecimento do vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços, além de requerer a imposição de pagamento de indenização por danos morais coletivos.

No flanco promocional, o parquet deve participar de fóruns, promover audiências públicas e campanhas publicitárias de conscientização, tudo com objetivo de demonstrar a irregularidade da utilização fraudulenta de cooperativas, inclusive para fins de evitar que novos trabalhadores sucumbam a essa fraude.

À luz de todas as premissas assentadas no presente trabalho, é impositiva a conclusão no sentido de que o cooperativismo fraudulento corporifica uma grave violação aos direitos fundamentais trabalhistas, de modo que deve ser veementemente rechaçado, sobretudo pelo Ministério Público do Trabalho, que é uma instituição constitucionalmente vocacionada para combate às fraudes trabalhistas.

Foram apresentados parâmetros para aferição do cooperativismo fraudulento, além de estratégias de atuação eficazes com parte do MPT, notadamente nos flancos repressivos e promocionais, com destaque para esse último, na medida em que ataca a raiz do problema e tem potencialidade para alterar de forma estrutural essa cultura ilícita.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

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DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho / Maurício Godinho Delgado. - 17. ed. rev. atual. e amp..- São Paulo : LTr, 2018.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista / Vólia Bomfim Cassar. - 16. ed., rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018.

RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas. Convenções da OIT e outros instrumentos de direito internacional público e privado relevantes ao direito do trabalho / Edson Beas Rodrigues Jr., organizador. - 4. ed. ampl. - São Paulo : LTr, 2019.

Sobre o autor
Igor Oliveira Costa

Pós graduado em direito material e processual do Trabalho pela ESA/PB. Analista Judiciário do TRT da 2ª Região. Assessor de Desembargador

Informações sobre o texto

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