Carlos Roberto Claro1
Medio tutissimus ibis – Oivídio
Em linhas gerais, estabelece o art. 105 da Lei 11.101/05 que o devedor, mergulhado em crise econômico-financeira, - em estado de insolvência - que se não possa valer de algum regime recuperatório, deverá requerer a sua falência, visando o concurso de credores [ao contrário da lei anterior, a atual não estabelece prazo para tanto], não aguardando que algum credor ou legitimado [art. 97] tome tal iniciativa. Há antecipação no pleito, a fim de que ocorra a retirada do devedor do mercado em que atua. Acerca do tema já escrevemos alhures. A falência requerida pelo próprio devedor (a assim denominada “autofalência”) não possui procedimento próprio na lei de regência (a partir do art. 105). O regramento legal apenas faz referência a um detalhe: não estando a regularmente instruído o pedido de abertura judicial de falência, o magistrado determinará a emenda à petição inicial (art. 106)2. Não menos certo que pode desde logo indeferir a petição inicial (CPC, arts. 330 e 485, inc. I). Aqui não ingressar-se-á em aspectos outros, além daqueles que de fato são objeto do escrito3.
Bastante delineados os temas, quais sejam, há possibilidade de manifestar desistência4 do pedido de falência após “despacho liminar de conteúdo positivo”?5 Há possiblidade de formular pedido de desistência após a sentença de abertura judicial de falência, que retira o devedor do mercado competitivo? A resposta à primeira pergunta é sim; a resposta à segunda é não, sendo apresentadas as razões, objetivando o debate acadêmico.
A Lei 11.101/05 visa primeiramente que se busque, quanto possível, o soerguimento das entidades mergulhadas em crise [art. 47]. Caso se não obtenha êxito em tal propósito, a abertura judicial da falência - e consequente retirada do devedor do mercado -, é de rigor, a fim de manter o equilíbrio e a segurança e efeito saneamento do meio empresarial. Este é o escopo do microssistema da insolvência, a partir de 2005, sendo afastado o espírito liquidatório-solutório para, primeiramente, buscar-se a recuperação da entidade empresarial6 - preservando-se a atividade econômica -, na medida do possível.
Portanto, mesmo que o magistrado determine a emenda à petição inicial (CPC, arts. 320 e 321), poderá o devedor em crise manifestar pedido de desistência [esta exige poderes especais – art. 105, CPC] da ação, pedido que há de ser judicialmente homologado (CPC, art. 485, inc. VIII). Não se olvide que o representante do Ministério Público não é intimado nesta fase processual. O autor pode desistir da ação sem consentimento do réu, até o oferecimento da defesa ([sentido amplo do asserto] art. 485, §4º, CPC), sendo esta a regra geral prevista no Código de Processo Civil. Em caso de pedido de autofalência inexiste, obviamente, a citação dos credores [e seus efeitos – CPC, arts. 240 e 312]7 e nada impede que o devedor formule pedido de desistência, salvo engano8.
Consoante exposto, o regime legal estabelecido em 2005 primeiramente busca-se a superação da crise e, não existindo êxito, a falência é de rigor, evitando, assim, efeitos multiplicadores que podem até prejudicar a regularidade do mercado. Consabido os efeitos deletérios da abertura da falência, não apenas em relação ao devedor, mas também aos seus colaboradores, credores, e ao próprio Estado. As consequências sociais, jurídicas, financeiras e econômicas hão de ser evitadas, quanto possível. Para tanto, cabe buscar-se a solução da crise em que se vê mergulhado o devedor, observados os regimes recuperatórios ou buscar medidas outras, visando acordos privados (Lei 11.101/05, art. 167). Destarte, não mais subsistindo o fundamento para o pleito de abertura de falência, cabe a imediata homologação judicial da desistência pelo devedor formulada.
A doutrina pátria assim se posiciona:
Apresentado que seja o requerimento de confissão de falência, nada impede que o devedor retire o mesmo, embora antes de proferida a sentença, pois até então há simples atos preparatórios, que ficarão sem valor com a retirada do requerimento que os provocou. E, de fato, se após a apresentação do pedido, sua situação se modifica, lícito lhe será demover da confissão, já que poderá desvencilhar-se do inadimplemento de suas obrigações ou porque conseguiu operação de crédito satisfatória, ou porque obteve prêmio lotérico, ou qualquer outra providência inesperada9
Quando o próprio devedor requer a falência, o juiz apenas não deve decretá-la em caso de desistência tempestiva. Trata a hipótese de verdadeira retratação, se apresentada pelo devedor ‘antes da sentença’. O devedor pode desistir do pedido de instauração do concurso de seus credores, mesmo que presente o pressuposto legal para a autofalência; qual seja, a insolvência de quem não atende às condições para a recuperação judicial. Note-se que a desistência da autofalência apresentada depois de o juiz ter sentenciado a quebra é por tudo ineficaz. Embora a retratação seja ato de vontade do devedor, se não for recebida tempestivamente, não produz o efeito de evitar a decretação da quebra solicitada. De qualquer modo, salvo na hipótese de retratação tempestiva, o juiz não poderá deixar de decretar a quebra requerida pelo próprio devedor10
Para Rubens Requião,
Uma das interessantes questões que o direito falimentar suscita é a da possiblidade de retratação do devedor que, tendo confessado a insolvência e pedido a autofalência, posteriormente pretende dela desistir. Tal espécie não é rara, existindo decisões de tribunais enfocando-as.
O devedor, em nosso entender, pode retratar-se da confissão , mas antes de o juiz pronunciar a sentença declaratória de falência. Uma vez proferida a sentença, institui-se novo estado de direito em relação ao devedor e ao seu patrimônio, que perde qualquer iniciativa em relação ao mesmo, ficando sujeito ao ‘status’ de falido que a lei lhe impõe, com restrições à sua liberdade e inabilitação para a prática de certos atos. Tal ‘status1, além do mais, impede-lhe que manifeste validamente a retratação11
Ricardo Negrão assenta a seguinte posição:
Entendemos que a confissão do estado falimentar pode ser objeto de desistência, mas não de retratação, como admitem alguns autores. A desistência decorre de atos supervenientes, desconhecidos do devedor no momento em que faz o pedido. São fatos que alteram sua situação econômica e permitem-lhe voltar ao regular exercício da atividade empresarial. Com o pagamento dos devedores então existentes. Não se trata de retratação de fato confessado, mas de nova situação que lhe possibilite cumprir seus compromissos de forma regular.
Ao apresentar em Juízo essa situação, demonstrando-a, nada obsta que a desistência venha a ser homologada. Se a mudança de estado econômico ocorrer após a sentença declaratória, não alcançada por meio de recurso, restará ao devedor pagar os credores e requer a extinção de suas obrigações12
Frederico A. Monte Simionato disserta:
O devedor pode, ainda, desistir do seu pedido, ou seja, é a retratação do devedor que, confessando a falência, pode ela desistir13
No que diz com o seguinte aspecto objeto deste ensaio, algumas citações doutrinárias já apresentaram a resposta. Após a abertura judicial da falência não será permitido formular desistência da autofalência. As razões para tanto são variadas, além daquelas já apresentadas. A partir da sentença que retira o devedor do mercado é imediatamente constituída a massa falida (subjetiva e objetiva), não podendo o devedor administrar o patrimônio, por força do art. 103 da lei de regência.
Demais, consabido que a insolvência é um estado de fato, sendo que a sentença judicial apresenta novo estado de direito, ou seja, cria o estado falimentar do devedor14.
Aqui não há espaço para tratar de tema não menos relevante, que se referte à natureza jurídica da sentença que determina a abertura da falência15. Esta sentença se traduz no terceiro pressuposto do estado falimentar, de modo que não pode, simplesmente, ser afastada do mundo jurídico em decorrência de extemporâneo pedido de desistência formulado pelo devedor.
Esta sentença surtirá efeitos jurídicos em relação ao devedor e os ativos arrecadáveis, ao universo de credores, a terceiros. Havendo sentença que retira o devedor do mercado, por mais este formule posterior pedido de desistência, inclusive tendo com base a regra do art. 47, v.g., não mais poderá ser revertida a situação, salvo engano. Há uma sentença judicial proferida e que preenche todos os requisitos do art. 99 da lei de regência, bem como contém todos os elementos previstos no art. 489 do Código de Processo Civil.
Além disso, espraia efeitos imediatos, tais como, retirada do devedor do mercado, suspensão da personalidade jurídica da entidade falida, ilegitimidade ativa para demandar em juízo, formação do juízo universal, perda da disponibilidade sobre os bens, formação da massa falida objetiva, com o desapossamento de bens e transferência da posse direta à massa falida, bem como mantença da propriedade em nome do devedor. Há também os efeitos retroativos, em decorrência da efetiva fixação do termo legal da falência, de modo que determinados atos poderão ser declarados ineficazes ou revogados judicialmente. Por fim, há os efeitos futuros, com o prosseguimento de determinadas ações judiciais, com a massa falida sendo representada pelo administrador judicial, a formação do quadro de credores, alienação dos ativos e pagamento dos débitos.
Portanto, salvo melhor juízo, eventual pedido de desistência da autofalência formulado após a prolação da sentença de primeiro grau não poderá ser analisado.
Cabe à parte ingressar com recurso próprio, ou seja, agravo de instrumento.
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Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.
Cumpre-lhe efetuar o controle da regularidade formal do processo e da admissibilidade da ação. As questões relativas a ambos esses aspectos normalmente constituem, no seu conjunto, o objeto do despacho liminar, cabendo ao juiz, obviamente, examiná-las de ofício. Inicia-se, assim, a atividade de ‘saneamento’ do feito. BARBOSA MOREIRA, José C. O Novo Processo Civil Brasileiro. 19ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 22. Destaque no original.︎
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A redação do art. 105 da atual lei de regência é bem mais simples em relação ao art. 8º do ab-rogado Dec.-Lei 7.661/45, mas tem como fundamento não apenas a impontualidade do devedor, a bem de ver. A atual lei não estabelece prazo para que se ingresse com pedido de autofalência [confissão da crise patrimonial] e muito menos impõe qualquer penalidade ou consequência a quem assim não procede. Também não especifica se o pedido de autofalência deve ser levado a efeito antes ou depois da cessação de pagamento. A fim de que ocorra a proteção ao patrimônio do devedor, que eventualmente constituirá a massa falida objetiva após a sentença de falência, caso não é de se aguardar o vencimento da obrigação para que se formule o pleito judicial. Aliás, J.C. Sampaio de Lacerda pondera, com precisão: Uma vez que o devedor se sinta insolvente deve confessar a sala falência e com isso atesta verdadeiramente a sua honestidade. Manual de Direito Falimentar. 2ª edição. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1961, pp. 62-63. Nessa esteira, enquanto o art. 8º do regime anterior estabelece que o pedido de autofalência pode ser formulado pelo devedor que não paga a obrigação a tempo e modo corretos), a Lei 11.101/05 altera a situação, ou seja, permite que o devedor mergulhado em crise econômico-financeira e patrimonial formule o pleito, sendo de somenos importância se há dívida não paga. Prepondera o fato de que não pode dar prosseguimento à atividade econômica, em decorrência de motivos variados. Portanto, se antes se estabelecia como hipótese o não pagamento de dívida (regra contida no art. 1º do Dec.-Lei 7.661/45), a partir de 2005 a questão é muito mais ampla, no sentido de que não interessa apenas a hipótese do art. 94, inc. I, com também sendo possível formular o pleito com base em situações outras (incisos II e seguintes do mesmo enunciado legal). A possiblidade vai muito além da impontualidade, quer-se crer. Neste exato sentido, pondera Frederico A. Monte Simionato: ...em tempos passados, o requisito fundamental para a declaração de falência era a ‘impontualidade’. Nos dias atuais, o requisito fundamental para a caracterização do estado jurídico da falência é a própria impontualidade, mas acrescida do conceito de inviabilidade econômica, e da cessação de pagamentos (impontualidade em caráter irreversível). Tratado de Direito Falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 431. Destaques no original. Há de se destacar ainda que o não requerimento de autofalência ao tempo do ab-rogado diploma legal era impeditivo ao pleito de concorda (Dec.-Lei 7.661/45, art. 140, inc. II.︎
Pela desistência, o autor abre mão do processo e não do direito material que eventualmente possa ter perante o réu. Daí porque a desistência da ação provoca a extinção do processo sem julgamento do mérito e não impede que, futuramente, o autor venha outra vez a propor a mesma ação, uma vez que inexiste, ‘in casu’, a eficácia da coisa julgada [...]. É a desistência da ação ato unilateral do autor, quando praticado antes de vencido o prazo de resposta do réu, não depois dessa fase processual. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 58ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 1049. Destaque no original.︎
Nas exatas palavras de José Carlos Barbosa Moreira. Op. cit., p. 25.︎
CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr Editora, 2009, p. 185.︎
A respeito da Teoria Angular da relação processual: GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil. 1ª ed., 3ª reimpressão. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 93. Ver: THEODORO JUNIOR, Humberto. Op., cit., p. 727.︎
Não se ingressa em tema importante: a possibilidade de oposição de herdeiros, sócios, acionistas ao pedido de autofalência.︎
SAMPAIO DE LACERDA, J.C. Op. cit., p. 65.︎
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COELHO, Fábio U. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2205, p. 295.︎
Curso de Direito Falimentar. 1º Volume. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 104.︎
Curso de Direito Comercial e de Empresa. Volume 3. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 371.︎
Op. cit., p. 432. Grifos no original.︎
Neste exato sentido: REQUIÃO, Rubens, op. cit., p. 90.︎
A respeito: CLARO, Carlos R. Falência: ineficácia e revogação de ato no processo falimentar. 2ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2020.︎