É certo que as obrigações firmadas pelas partes devem ser voluntariamente cumpridas nos termos estabelecidos no contrato. Quando isso não ocorre configura-se o inadimplemento e, nessa hipótese, o ordenamento jurídico dispõe ao credor mecanismos para exigir a satisfação do seu direito ou crédito.
O artigo 475 do Código Civil prevê que a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. Eduardo Luiz Bussatta ensina que “a resolução é o remédio jurídico posto à disposição do contratante para que busque a dissolução do vínculo contratual quando a outra parte descumprir a prestação ou o dever contratual a que estava legalmente obrigada 1”.
A resolução do contrato causa a extinção da relação contratual, de modo que as partes voltam à situação anterior a existência do contrato, como se ele nunca tivesse existido, desfazendo-se assim, o vínculo contratual e jurídico.
Contudo, a teoria do adimplemento substancial tutela o devedor que é “quase adimplente”, ou seja, aquele que deve valor considerado vil e que não pode ser tratado como se inadimplemento fosse de montante relevante.
Para Anelise Becker, o adimplemento substancial é “um adimplemento tão próximo do resultado final que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização 2”.
Na lição de Flávio Tartuce, pela teoria de adimplemento substancial, em hipóteses em que o contrato tiver sido quase todo cumprido, não caberá a sua extinção, mas apenas outros efeitos jurídicos, visando sempre a manutenção da avença 3.
Assim, de acordo com a teoria do adimplemento substancial nem todos os casos de inadimplemento contratual terão como consequência a resolução do negócio jurídico, mas apenas outros efeitos jurídicos, como a cobrança ou o pleito de indenização por perdas e danos.
Por esta teoria, não se admite a extinção do negócio jurídico celebrado se a inadimplência é “ínfima” comparada com o valor que já foi quitado pelo devedor. Ou seja, o inadimplemento deve ser insignificante em relação à parte que já foi cumprida.
Quando da aplicação da teoria, deve o julgador deixar o formalismo e analisar, no caso concreto, se houve substancial adimplemento da obrigação assumida e, caso positivo, proibir a resolução do contrato e possibilitar ao credor o recebimento do valor devido de outra forma como perdas e danos, se for o caso.
O que prevalece na teoria do adimplemento substancial é que o inadimplemento não dá causa à extinção do contrato quando: (1) há o cumprimento substancial das obrigações previstas, ou seja, um grau mínimo de gravidade do inadimplemento; (2) quando o valor inadimplido pode ser recebido de outra forma que não a extinção do contrato e a constrição do bem; (3) quando o devedor agiu de boa-fé, com a demonstração de esforço e diligências para cumprimento da obrigação.
Contudo, como medir o grau de gravidade do inadimplemento e a aplicação ou não da teoria? A aferição deve ser feita através da análise do caso concreto, comparando o grau de descumprimento com a satisfação do interesse do credor. Ou seja, é o interesse do credor pela prestação – a sua utilidade para ele – o critério de aferição da gravidade do descumprimento. Exige-se um inadimplemento que comprometa a substância do contrato para outorgar ao credor o direito de resolução. Se ainda lhe for útil a prestação, mesmo que inexata, o exercício de tal direito é abusivo, contrário aos ditames da boa-fé objetiva 4 .
Verifica-se, portanto, que não há percentual previamente definido que demonstre o inadimplemento substancial. O desafio aqui, é claro, é precisar em cada caso concreto qual percentual da obrigação dá margem à aplicação dessa teoria. No ensinamento de Lucas Gaspar de Oliveira Martins “o ponto central neste assunto é verificar o interesse objetivo das partes em receber a prestação parcial, sem o qual não se poderá configurar o adimplemento substancial. Ademais, deve-se atentar ao programa contratual como um todo, sua natureza, suas cláusulas, bem como as consequências que o inadimplemento acarreta na economia do contrato 5”.
Ainda, a teoria do adimplemento substancial, embora não prevista explicitamente no Direito Brasileiro, encontra amparo nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato inseridos nos artigos 421 e 422 do Código Civil.
Para Eduardo Luiz Bussatta: “É à luz da boa-fé que o comportamento devido deve ser delimitado; nessa base, sabemos que o cumprimento compreende não só a própria atividade retratada na prestação, mas ainda todos os comportamentos acessórios necessários à efetiva prossecução dos interesses do credor. A partir da boa-fé podemos, também, conhecer a medida de esforço que, ao devedor, pode ser exigida no desempenho do seu papel 6”.
Humberto Theodoro Júnior ensina que “o dever de lealdade e boa-fé atua e obriga na fase pré-contratual, antes mesmo do aperfeiçoamento do contrato; perdura no momento da definição do ajuste contratual, assim como no de seu cumprimento; e subsiste, até mesmo, depois de exaurido o vínculo contratual pelo pagamento e quitação 7”.
Verifica-se, assim, que a boa-fé é um parâmetro de comportamento das partes da obrigação e exige condutas de probidade, lisura, lealdade, confiança e sem abuso com objetivo de atingir o cumprimento da obrigação pactuada.
Também, é certo que o contrato deve realizar uma função na sociedade, conforme estabelecido no artigo 421 do Código Civil.
Para Carlos Roberto Gonçalves, a função social do contrato é “um dos pilares da teoria contratual. (...) . Tem por escopo promover a realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contraentes 8”. Entende-se, portanto, que a função social do contrato é a relação das partes contratantes com a sociedade, de modo que esse relacionamento produz efeitos perante terceiros. A função social traz como consequência jurídica o fato de que o contrato não pode ofender interesses sociais, de terceiros ou a dignidade humana.
Compreende-se que o direito do credor de pedir a resolução do contrato diante do inadimplemento não é um direito absoluto. A preferência pela manutenção do contrato ao invés da sua resolução visa a preservação da relevância social do contrato e da boa-fé. Assim, o critério para a aplicação do instituto ou não é a comparação do estabelecido contratualmente, o inadimplemento e o que de fato foi cumprida pelas partes, levando-se em conta a função social do contrato e a boa-fé dos envolvidos.
Carlos Roberto Gonçalves entende que “o adimplemento substancial do contrato, todavia, tem sido reconhecido, pela doutrina, como impedimento à resolução unilateral do contrato. Sustenta-se que a hipótese de resolução contratual por inadimplemento haverá de ceder diante do pressuposto do atendimento quase integral das obrigações pactuadas, ou seja, do incumprimento insignificante da avença, não se afigurando razoável a sua extinção como resposta jurídica à preservação e à função social do contrato 9”.
Conclui-se, portanto, que a resolução do contrato não pode ser aplicada de forma arbitrária e absoluta. A teoria do adimplemento substancial funciona como um limitativo do direito do credor à resolução, impedindo o uso desequilibrado do direito e preterindo o desfazimento do contrato em prol da preservação da obrigação, estando tal teoria calcada nos princípios da boa-fé (artigo 422 do Código Civil) e da função social dos contratos (artigo 421 do Código Civil).
O instituto não tem previsão expressa no nosso ordenamento jurídico, mas tem sido aplicado na resolução de muitos casos concretos, tendo sido, inclusive, abordado nas Jornadas de Direito Civil figurando em dois enunciados, que passamos a mencionar:
Enunciado 361: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.
Referência Legislativa:
Artigo 421 do Código Civil: Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
Artigo 422 do Código Civil: Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Artigo 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
Enunciado 586: Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil - CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos.
Justificativa: a jurisprudência brasileira, com apoio na doutrina (Enunciado 361 da IV JDC - CFJ), já absorveu a teoria do adimplemento substancial, que se fundamenta no ordenamento brasileiro na cláusula geral da boa-fé objetiva. Superada a fase de acolhimento do adimplemento substancial como fator limitador de eficácias jurídicas, cabe ainda a tarefa de delimitá-lo conceitualmente. Nesse sentido, entende-se que ele não abrange somente "a quantidade de prestação cumprida", mas também os aspectos qualitativos da prestação. Importa verificar se a parte adimplida da obrigação, ainda que incompleta ou imperfeita, mostrou-se capaz de satisfazer essencialmente o interesse do credor, ao ponto de deixar incólume o sinalagma contratual. Para isso, o intérprete deve levar em conta também aspectos qualitativos que compõem o vínculo.
Referência Legislativa: artigo 475 do Código Civil: A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
No Recurso Especial Nº 1.051.270, o Ministro Luis Felipe Salomão pontuou que “a faculdade que o credor tem de simplesmente resolver o contrato, diante do inadimplemento do devedor, deve ser reconhecida com cautela, sobretudo quando evidente o desequilíbrio financeiro entre as partes contratantes (...). Deve o julgador ponderar quão grave foi o inadimplemento a ponto de justificar a resolução da avença.” (...) “Vale dizer que, para a resolução do contrato pela via judicial, há de se considerar não só a inadimplência em si, mas também o adimplemento da avença durante a normalidade contratual. A partir desse cotejo entre adimplemento e inadimplemento é que deve o juiz aferir a legitimidade da resolução do contrato, de modo a realizar, por outro lado, os princípios da função social e da boa-fé objetiva. Assim, a insuficiência obrigacional poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância social do contrato e da boa-fé, desde que a resolução do contrato não responda satisfatoriamente a esses princípios. Essa é a essência da doutrina do adimplemento substancial do contrato”. (...) “No caso em apreço, afigura-se-me cabível a aplicação da teoria do adimplemento substancial dos contratos. Colhe-se do acórdão recorrido que o réu pagou: ‘31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido’. (...). Diante do substancial adimplemento do contrato, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé-objetiva. A regra que permite a reintegração de posse em caso de mora do devedor - e consequentemente a resolução do contrato -, no caso dos autos, deve sucumbir diante dos aludidos princípios. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002”.
O Superior Tribunal de Justiça já manifestou entendimento semelhante em outros precedentes, como, por exemplo: REsp 272.739/MG, REsp 469.577/SC e REsp 914.087/RJ.
Em 2018, a 4ª turma do STJ no julgamento do Habeas Corpus Nº 439.973 – MG decidiu que a teoria do adimplemento substancial não se aplica em casos que dizem respeito a obrigações de natureza alimentar no âmbito familiar. Na ocasião, o devedor de pensão alimentícia impetrou HC contestando a manutenção da sua prisão civil mesmo após o pagamento parcial da dívida alimentar. O Ministro Antonio Carlos Ferreira entendeu “que a Teoria do Adimplemento Substancial não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, menos ainda para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. Com efeito, trata-se de instituto que, embora não positivado no ordenamento jurídico brasileiro, está incorporado em nosso Direito por força da aplicação prática de princípios típicos das relações jurídicas de natureza contratual, como a função social do contrato (art. 421. do CC/2002), a boa-fé objetiva (art. 422), a vedação ao abuso de direito (art. 187) e ao enriquecimento sem causa (art. 884). Por sua vez, a obrigação alimentar diz respeito a bem jurídico indisponível, intimamente ligado à subsistência do alimentando, cuja relevância ensejou fosse incluído como exceção à regra geral que veda a prisão civil por dívida (CF/1988, art. 5º, inc. LXVII), o que evidencia ter havido ponderação de valores, pelo próprio constituinte originário, acerca de possível conflito com a liberdade de locomoção, outrossim um direito fundamental de estatura constitucional (inciso XV). Isso porque os alimentos impostos por decisão judicial – ainda que decorrentes de acordo entabulado entre o devedor e o credor, este na grande maioria das vezes representado por genitor – guardam consigo a presunção de que o valor econômico neles contido traduz o mínimo existencial do alimentando, de modo que a subtração de qualquer parcela dessa quantia pode ensejar severos prejuízos a sua própria manutenção”.
Nesse mesmo sentido, de que o pagamento parcial do débito não afasta a possibilidade de prisão civil do alimentante executado e, portanto, a não aplicação da teoria do adimplemento substancial, o STJ já se posicionou em outros julgados: RHC 80.591/GO, AgRg no HC 295.091/SP, RHC 92.626/PI, AgInt no RHC 81.501/SP, HC 428.973/RJ, HC 304.072/SP entre outros julgados.
Referências bibliográficas
BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e a teoria do adimplemento substancial. 2º Edição. São Paulo: Saraiva, 2008.
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparativa. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do advogado, v.9, nº 1, 1993.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8º edição, volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011.
JUNIOR, Humberto Theodoro. O contrato e a sua função social. 2º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira. Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011;
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 3, Ed. Método, 2011.
Notas
BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e a teoria do adimplemento substancial. 2º Edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 93.
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BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparativa. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do advogado, v.9, nº 1, p. 62, 1993.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, vol. 3, Ed. Método, 2011, p. 251
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparativa. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do advogado, v.9, nº 1, p. 63, 1993.
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira. Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 94.
BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e a teoria do adimplemento substancial. 2º Edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 17.
JUNIOR, Humberto Theodoro. O contrato e a sua função social. 2º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 11.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8º edição, volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p.181.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8º edição, volume 3. São Paulo: Saraiva, 2011, p.181.