III. A PROGRESSIVIDADE E A GRADUAÇÃO DOS TRIBUTOS.
Observando tanto o aspecto quantitativo como o aspecto qualitativo da capacidade contributiva, os economistas e também os doutrinadores do Direito Financeiro desenvolveram um conjunto de técnicas que ajudam a materializar o princípio da capacidade contributiva. Entre elas pode-se citar a proporcionalidade e a progressividade [46].
Ter-se-á tributo proporcional quando for aplicada a mesma alíquota indistintamente a todos os contribuintes, independente da base de cálculo. Assim, a proporcionalidade será conseqüência do aumento do valor da base de cálculo, e não da diferença entre alíquotas. O tributo será progressivo quando as alíquotas variarem em razão da flutuação da base de cálculo, tornando o valor a ser pago pelo contribuinte a título de exação progressivamente maior conforme aumentar a base de cálculo.
E por que se disse que a progressividade é uma técnica de densificação da capacidade contributiva? Porque a progressividade contempla a necessidade de graduar a tributação de acordo com a capacidade econômica dos cidadãos e, a um só tempo, permite que sejam levadas em consideração detalhes subjetivos do contribuinte que justificam a não incidência do poder impositivo.
Todavia, como se viu anteriormente, para que as pessoas sejam legitimamente discriminadas é preciso que o fator de discriminação escolhido para apartá-las seja considerado de pe se racional. Já foi demonstrado à exaustão que a riqueza é um critério justo para desigualar os indivíduos no campo fiscal (ainda que, por vezes, não se possa determinar com precisão como esse fator vai atuar). Mas, além disso, faz-se cogente que esse critério possa ser correlacionado lógica e abstratamente com a disparidade que produz a partir da aplicação do discrímen, devendo-se respeitar, adicionalmente, todos os demais valores constitucionais (que não a igualdade). Adiante tentar-se-á demonstrar que existe uma correlação lógica entre a riqueza como fator de discriminação e a progressividade como conseqüência dessa diferenciação, bem como a harmonia in concreto da aplicação da progressividade com a tábua axiológica do sistema normativo.
III.1. Teorias de justificação da progressividade.
Dizer que a progressividade tem fundamentação no princípio da capacidade contributiva não é suficiente, porque a própria capacidade contributiva enfrenta problemas de justificação. Nada obstante, mesmo as construções destinadas a dar aporte doutrinário à progressividade partem da percepção da disparidade entre capacidades econômicas como pedra de toque da discussão. É bom lembrar que, por si só, a proporcionalidade já garantiria que contribuintes financeiramente diferentes respondessem a cargas tributárias diferentes, efetivando-se, pois, o princípio da capacidade contributiva (tanto se considerada absoluta como relativamente); então, resta entender por que é necessário adotar a progressividade, ou seja, compreender a razão pela qual não é suficiente para a satisfação da justiça, como valor, e da igualdade, como princípio – e, mais especificamente, da capacidade contributiva – a aplicação da técnica da proporcionalidade.
A maioria da doutrina aponta as teorias do sacrifício igual e proporcional como justificadores da progressividade [47]. Na verdade, se bem compreendidas, elas não explicam por que os tributos precisam ser cobrados progressivamente mais daqueles com riquezas maiores, mas tão-somente por que a riqueza se justifica como critério de diferenciação entre os indivíduos para fins de Direito Financeiro e Tributário. Em outros termos: elas embasariam tanto a proporcionalidade como a progressividade [48]. É por esse motivo que elas foram topograficamente analisadas quando se tratou do princípio da capacidade contributiva [49]. A confusão, no entanto, é aceitável – embora tenha conseqüências práticas (v. notas de rodapé 38 e 39) –, visto que a teoria da utilidade marginal – usada para justificar especificamente a progressividade – também parte de algumas premissas tomadas pelas teorias do sacrifício, sendo a recíproca igualmente verdadeira [50].
Pragmaticamente a teoria da utilidade marginal pode ser resumida na seguinte proposição: o valor de determinada fração de riqueza será sempre menor que o valor dado à fração de riqueza imediatamente anterior [51]. Exemplificando: o valor reputado pelo contribuinte à ultima nota de um real que compõe seu patrimônio de mil reais é inferior ao valor da penúltima nota de um real; por sua vez, a penúltima nota tem valor inferior à antepenúltima e assim por diante. Logicamente, quando se fala em valor, não se trata do poder de compra, pois este será sempre o mesmo. Tem-se, assim, um conceito relacional.
As críticas à teoria da utilidade marginal são enfadonhamente repetitivas quando comparadas às formuladas ante as teorias fundamentadoras da riqueza como discrímen legítimo na seara da tributação: o elevado nível de subjetividade que permeia a construção dificulta sua aplicabilidade.
"Porém, apesar de serem desconhecidas as intensidades das sensações, não é absolutamente impossível chegar a algumas ‘induções’ sobre a estrutura da curva de utilidade: é fora de discussão que o andamento normal da curva coletiva da utilidade da riqueza é decrescente, dado que as sucessivas doses de riqueza oferecem uma utilidade menor relativamente às precedentes" [52].
Para evitar a repetição, faz-se remissão, aqui, ao item II.a.
Aceitando-se como verdadeira – pelo menos sob a óptica da Economia e independentemente de considerações subjetivas – a curva de utilidade da riqueza, a progressividade é justificada. Mas ainda resta uma última indagação: por que escolher a progressividade em detrimento da proporcionalidade?
A resposta é simples e objetiva. É forçoso reconhecer que, a despeito da já referida função arrecadatória – responsável por subsidiar a implementação e a garantia dos direitos fundamentais –, o Direito Tributário tem mais um papel importante aos olhos do Estado Democrático de Direito tal como hoje concebido, que é a eliminação das desigualdades sociais através da redistribuição de rendas [53]. Ou seja, também ao Direito Tributário é reservada parcela significativa da realização da justiça, um valor informador de qualquer sistema jurídico, ao lado da segurança. Não é bastante, portanto, que o Direito Tributário busque arrecadar sem intervir na ordem social e no comportamento dos indivíduos. Vale ressaltar que parte da doutrina qualifica um sistema fiscal como mais ou menos eficiente tendo em conta justamente essa função de ingerência [54]. Apesar de a redistribuição de renda ser uma finalidade do Direito Tributário, existem certos limites doutrinários e pragmáticos à utilização indiscriminada da progressividade. No entanto, é certo que a necessidade de redistribuição de renda e a eliminação da pobreza justificam um sistema tributário progressivo [55].
Pontue-se mais uma vez, em resumo das idéias até aqui apresentadas: não é a capacidade contributiva que legitima a opção pela progressividade, porque, como já dito, ela também fundamenta a proporcionalidade. A contribuição na razão das possibilidades individuais – seja sob os auspícios da teoria da equivalência, seja sob os auspícios das teorias do sacrifício – apenas legitima a eleição da riqueza como critério de discriminação para fins tributários. Por outro lado, o que justifica a progressividade como técnica de densificação da diferenciação com base na riqueza é a teoria da utilidade marginal e a escolha entre progressividade e proporcionalidade passa a ser questão de política legislativa de redistribuição de renda, respeitando, no entanto, algumas características ontológicas dos tributos.
III.2. Limites à progressividade: algumas linhas sobre arbitrariedade, confisco, direito ao exercício de atividades lícitas.
Contribuir para os gastos públicos é um dever fundamental de todos os indivíduos. Por outro lado, o poder impositivo é limitado pela capacidade contributiva de cada um. Tem-se, assim, um verdadeiro campo de conflito entre a necessidade de contribuir para os gastos públicos e a intensidade dessa contribuição. Qual é o limite do exercício legítimo da tributação? Até onde vai a garantia constitucional do contribuinte?
Um primeiro limite às alíquotas progressivas é a vedação à arbitrariedade. Valem, aqui, os mesmos argumentos sustentados na proibição de estabelecimento de privilégios odiosos, ou seja, a progressividade não pode ser aplicada em desacordo com o princípio da igualdade. Assim, para instituir alíquotas progressivas o legislador ordinário só poderá ter como fator de discriminação elementos que indiquem a presença de riqueza tributável, e nada mais. Destarte, deverá ser declarada inconstitucional uma lei que introduza alíquotas progressivas tendo em conta a cor da pele do contribuinte – por ferir a vedação constitucional à discriminação racial.
Para ser legítima, a progressividade não pode, ainda, ser tão elevada a ponto de imputar ao contribuinte a perda de seu patrimônio (aqui compreendido em sentido comum, e não técnico). Assim, as alíquotas não podem ser tão altas a ponto de configurar o confisco da propriedade privada, malferindo o disposto no art. 150, IV, da Constituição Federal [56]. Apesar de esse limite decorrer de determinação expressa da Lei Maior, não há parâmetros seguros para indicar a partir de onde a tributação dá lugar ao confisco [57], motivo pelo qual a aplicação desse limite como controle à progressividade é problemática [58].
Além de ser difícil aferir quando uma alíquota é confiscatória em relação a um tributo, é também pragmaticamente complicado pontuar em que ocasiões a soma das exações praticadas em face de um contribuinte é confiscatória, isto é, quando a carga contributiva geral suportada por um indivíduo é lesiva ao seu direito de propriedade [59]. Para evitar esse tipo de acontecimento, o Tribunal Constitucional alemão considera que a inserção de "cláusulas de eqüidade" é mecanismo apto a evitar que, no caso concreto, o confisco se produza [60].
Por fim, deve ser tido como limite à progressividade o direito ao exercício de atividades lícitas [61]. Não é legítimo que o poder impositivo, ao instituir alíquotas progressivas em determinado caso, proíba ou inviabilize a consecução de dois pilares da ordem econômica: o trabalho e a livre iniciativa, sob pena de se violar os arts. 1º, III, e 170, caput, da Constituição [62].
III.3. Progressividade no Imposto de Renda.
Em caráter preliminar à discussão da progressividade no Imposto de Renda, cumpre fazer uma distinção entre impostos pessoais e impostos reais.
De acordo com Griziotti,
"Desde el punto de vista de la distribución de la carga, es real el impuesto cuando grava en una cuantía fija y uniforme la capacidad contributiva sin considerar la riqueza total que el contribuyente gana o gasta y las demás circunstancias que manifestan más completamente la capacidad, según la apreciación política que de ellas haga el legislador. Es personal el impuesto en el caso contrario" [63].
Fica claro, pois, que o imposto sobre a renda é tipicamente pessoal. Aliás, é o próprio conceito de renda que ajuda a compreender esse enquadramento. Vejamos. A Constituição Federal, por meio do seu art. 153, III, comete à União o poder para instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Portanto, o fato gerador desse imposto é a renda e/ou os proventos de qualquer natureza. Diante disso, parece conveniente analisar o conceito de "rendas e proventos de qualquer natureza" que esclarece a sistemática tributária.
Uma análise casuística do texto constitucional vigente demonstra que a expressão "renda e proveitos de qualquer natureza" é utilizada nos mais diversos sentidos possíveis, até em decorrência de ser um conceito jurídico indeterminado [64]. A falta de técnica do constituinte (originário e derivado) não pode, no entanto, afastar o esforço de tentar precisar o que, para fins tributários, a Constituição pretende tratar como fato gerador e base tributável do imposto sobre a renda. Partindo de premissas de hermenêutica constitucional diversas, foram construídas três grandes teorias sobre o conceito de renda: tem-se a teoria da renda-produto em sentido amplo, a teoria da renda-produto em sentido estrito e a teoria da renda-acréscimo.
Considerando o escopo deste trabalho, é suficiente afirmar que a doutrina majoritária é a que entende, sob à luz da Carta de 1988, que renda é acréscimo patrimonial (teoria da renda-acréscimo), ou seja, o conceito de renda abrangeria também o conceito de provento, formando um conceito único. Essa posição é a que melhor se harmoniza com (i) o sistema de competências tributárias e (ii) as demais disposições constitucionais que reverenciam os termos "renda" e "proventos". O uso da palavra "acréscimo" não é despropositado; acréscimo indica o resultado positivo entre o que se obteve durante determinado tempo e o que se tinha antes [65], e, desta feita, tem em conta não só a natureza das receitas, mas também a natureza das despesas. No mais, é importante ressaltar que a abrangência do conceito é intencional. A Constituição determina que, sempre que for possível, os impostos tenham caráter pessoal, ou seja, a Constituição obriga que todo imposto deva ter conta o maior número possível de manifestações de riqueza que possam ajudar o Estado a inferir que determinado indivíduo possui aptidão contributiva (capacidade contributiva global). Assim, o conceito de "renda" deve ser o mais abrangente possível, em prol da personalização constitucional dos impostos [66].
O conceito de renda, pois, por si só, já é uma concretização da capacidade contributiva (e, assim, cumprimento do que dispõe o art. 145, §2º, da CF/88). Mas é mandamento constitucional adicional que o imposto sobre a renda seja graduado de acordo com a técnica da progressividade (CF/88, art. 153, §2º, I [67]), vale dizer, além do comando dirigido ao legislador infraconstitucional no sentido de que tanto o fato gerador como a base de cálculo do imposto sobre a renda devam contemplar o maior número de aspectos da vida do indivíduo que demonstrem riqueza – a fim de apurar a sua capacidade contributiva global –, o texto constitucional impõe complementarmente que o princípio da capacidade contributiva seja concretizado através da aplicação da progressividade, ou seja, estabelecendo-se alíquotas progressivamente maiores para base de cálculos maiores. O legislador ordinário deveria, pois, dar cumprimento a esses dois ditames constitucionais (personalização dos imposto, sempre que possível, e progressividade), tendo em conta a máxima efetividade possível do princípio da capacidade contributiva. Deveria; contudo, não o fez.
Em primeiro lugar, com a edição da Lei nº 7.713/88, a pretexto de simplificar o tratamento normativo da matéria, o legislador infraconstitucional, em desatenção à sistemática constitucional do imposto de renda, aproximou o conceito de renda ao de rendimento, retirando o grau de personalização devido ao referido tributo (realicização), na medida em que ficou definido que o imposto sobre a renda incidiria sobre o rendimento bruto, sem qualquer redução – ou seja, substituição das deduções específicas (como as de educação, saúde e moradia) por um desconto-padrão genérico (que não tem em conta, por evidente, as situações individuais de cada contribuinte) –, e, além disso, revogaram-se todos os outros diplomas normativos que tivessem concedido isenções ou exclusão de rendimentos, qualquer que fosse sua natureza [68]. Portanto, a inconstitucionalidade dessa Lei é sustentável com base em três argumentos: a) o aspecto qualitativo do princípio da capacidade contributiva, que bastaria para justificar que as receitas necessárias à subvenção do mínimo existencial não fossem alvo da tributação; b) a compulsoriedade da personalização dos impostos, desde que cabível e c) a vedação constitucional ao confisco [69]. Isso porque a receita que foi somada ao patrimônio do contribuinte e, depois, convertidas em gastos destinados à subsistência não podem ser considerada acréscimo patrimonial e, assim, não foram abarcadas pelo constituinte quando este limitou os contornos gerais do fato gerador e da base de cálculo do imposto sobre a renda. Tem-se uma despesa indispensável e inevitável, que não é fruto de escolha, mas da necessidade de suprir um padrão mínimo de sobrevivência, e, portanto, não deve ser considerada [70].
Em segundo lugar, quanto à progressividade, o legislador poderia tê-la implementado de três modos diferentes, que constituem os tipos de progressividade conhecidos pela doutrina. São eles: a progressividade por escala, em que se divide a riqueza tributável em porções e a cada uma dessas porções é aplicada uma cota determinada, sempre maior em relação à cota equivalente à porção imediatamente anterior, até que, a partir de determinada porção de riqueza, o imposto passa a ser proporcional (dada a impossibilidade de se preverem alíquotas que contemplem todas as situações de riqueza total existentes); a progressividade por classes, segundo a qual se aplica a toda a riqueza uma alíquota correspondente; e a progressividade contínua, pela qual são fixadas cotas máximas e mínimas e as frações intermediárias de riqueza são tributadas por uma alíquota a que se chega a partir de uma fórmula que tem em conta aqueles limites máximo e mínimo.
Pois bem. No Brasil, o legislador optou pela progressividade por classes, subdividindo as riquezas tributáveis em três grandes faixas, de acordo com os rendimentos do trabalho. Ora, é factível que a existência de apenas três classes contribui irrisoriamente para a efetivação do princípio da capacidade contributiva ou mesmo para a concretização do objetivo constitucional de redistribuição de renda. Em aplicação da progressividade, por si só, não é suficiente para concretizar a justiça tributária já que a diversidade de condições financeiras do país não é atendida com a classificação dos contribuintes em três classes, notadamente quando a última faixa de riqueza não extrapola os dez salários-mínimos. Não há redistribuição de renda (um dos objetivos da instituição da progressividade) quando aqueles que ganham dez, cem ou mil salários-mínimos são enquadrados sob a mesma classe, aplicando-se-lhes, pois, a mesma alíquota para fins de cálculo do imposto de renda devido; da mesma forma, não há redistribuição quando apenas um salário-mínimo é bastante para produzir uma diferença de mais de 10% (dez por cento) nas alíquotas. Faz-se necessária a criação de faixas intermediárias.
Ademais, ainda que se entenda a progressividade como princípio, resta inconstitucional o arcabouço normativo atual do imposto sobre a renda. Como princípio, a progressividade coloca como estado ideal de coisas o exercício do poder impositivo de forma que os contribuintes mais ricos arquem com os gastos público de maneira progressivamente maior do que os contribuintes menos abastados. Fato é que isso não significa que todos os impostos devam ser progressivos – até porque, como será demonstrado, a própria natureza das coisas impede que isso ocorra [71] –, mas que, cabendo a progressividade, ela deve ser aplicada. Em tese, a aplicação da progressividade aos impostos pessoais compensaria a impossibilidade de aplicação desta técnica aos impostos reais, formando um sistema, no todo, progressivo [72]. Mas, quando a progressividade é maltratada em sede de impostos pessoais, dados à aplicação daquela técnica, há comprometimento da progressividade do todo: com a existência de apenas duas faixas de contribuintes e tendo em conta a proximidade entre elas, o imposto de renda deixa de ser progressivo e passa a ser regressivo; por tabela, o sistema deixa de ser tão progressivo quanto possível, maculando um princípio constitucional-tributário.
III.4. A progressividade nos impostos reais.
a) Progressão de alíquotas com fins extrafiscais: o ordenamento constitucional antes da EC nº 29/2000.
Na redação original da Constituição de 1988, a técnica da progressividade aplicada aos impostos reais tinha fins meramente extrafiscais, vale dizer, possuía uma finalidade não-arrecadatória, regulatória, indutora do comportamento dos indivíduos. Uma análise sistemática dos arts. 153, §4º, caput [73], 156, §1º, caput [74] e 182, §2º e §4º, II [75], fazia concluir que o legislador só poderia se servir de alíquotas progressivas para promover a função social da propriedade, tanto rural quanto urbana. O proprietário que não der destinação social adequada à sua terra sofreria uma sanção através da aplicação da progressividade no tempo. Cabe aqui um registro.
O art. 3º do CTN (anterior à Constituição de 1988) exclui a possibilidade de emprego da tributação como instrumento de punição do indivíduo [76]. Somado a isso, também a doutrina, sem dissidências, sustentava que o tributo não poderia ter cunho sancionatório. O art. 182, §4º, II, se vale da expressão "sob pena de" para se referir à cobrança do IPTU com alíquotas progressivas no tempo, subvertendo essa lógica acadêmica, ou seja, o proprietário de terreno não aproveitado ou mal aproveitado, tendo em conta o que dispõe o plano diretor, arcará, a título de tributação, com uma quantia que engloba o valor do IPTU na razão do valor venal do imóvel e, adicionalmente, a multa pela violação à função social da propriedade (resultado da progressão de alíquotas sobre o valor venal daquele imóvel, apurada em razão do tempo). Diante disso, é preciso reconhecer que a Constituição Federal, cujas normas são hierarquicamente superiores às demais normas do ordenamento, criou uma exceção à regra contida no CTN e admitiu, expressamente, a possibilidade de punição por meio de tributo, mas somente nesse caso [77]. Como explicar isso?
A promoção da função social da propriedade pelo Direito Tributário não é descontextualizada. Sem dúvida alguma, a proteção da pessoa humana e o amparo ao mínimo existencial fizeram com que o Direito Civil desenvolvesse a teoria da funcionalização, promovendo-se uma verdadeira releitura de institutos nucleares, tais como a propriedade, o contrato e a empresa. Aqui, cumpre analisarmos a função social da propriedade.
Essa perspectiva atual de compreensão do Direito decorre em grande parte da postura que os Estados precisaram assumir diante das crises econômicas e sociais por que passaram os povos: não era mais cabível o absenteísmo do Estado-observador, que só interviria em caráter de urgência e de maneira mínima. Fez-se mister o Estado-garantidor, que regulasse não somente para os momentos patológicos, mas primordialmente para garantir a sustentabilidade da harmonia social. Romper a barreira do individualismo significou, entre tantas circunstâncias, não haver mais espaço para os direitos absolutos: a propriedade sofreu um duro golpe.
Sempre existiram normas que comprimiam a atuação do proprietário, notadamente em face do Estado. Mediante indenização, por exemplo, o Poder Público poderia retirar um imóvel de um particular, acabando mesmo por suprimir, neste caso, o direito de propriedade. Havia ainda as constrições de menor porte, tais como as servidões administrativas ou os tombamentos. No campo das relações privadas não era diferente: as normas sobre passagem forçada e sobre árvores limítrofes, enfim, todos os direitos de vizinhança expõem bem estas limitações. São todos vieses do que se identifica como limites externos ao direito de propriedade, típicos do posicionamento contemplativo do Estado nos séculos XVII e em parte do XVIII, que correspondem à máxima de que o proprietário tudo pode até esbarrar em alguma previsão legal.
A partir do século XIX e XX, criaram-se métodos de limitação interna ao domínio, entre as quais se enquadra a função social da propriedade [78]. Lado a lado com as constrições legais, foram instituídos objetivos que deveriam ser alcançados pelo exercício do domínio [79]; tudo quanto fosse feito em contrário a eles deveria ser tomado como abusivo, ilícito ou ilegítimo.
Claro que o conteúdo do direito de propriedade é tão elástico que não comportaria previsão normativa exaustiva: a criatividade humana sempre superará as expectativas do legislador. Por isto, tratou-se de formular este núcleo inafastável de normas de concretização do senhorio em conformidade com os demais direitos. Tem-se menos uma fórmula estrutural exigida e mais um real substrato, essência, sem o qual, embora não deixa de existir, o direito de propriedade não permanece digno do dever de proteção do Estado.
O Direito Tributário acompanhou a evolução: o poder impositivo passou a ser empregado para resguardar a função social da propriedade, em caráter evidentemente extrafiscal. Porém, mais do que isso, a função social da propriedade se alia à solidariedade como fundamento da progressão de alíquotas com finalidade não-arrecadatória.
"El principio de solidariedad fundamenta el principio de capacidad económica desde una perspectiva "subjetiva", basada en último término en el carácter social de la naturaleza humana. Otras construcciones teóricas llegan a un resultado similar con un planteamiento "objetivo"; es decir, atendiendo a la función que debe representar la riqueza" [80].
Assim, a função social da propriedade é elemento constitutivo do próprio dever de contribuir e serve também como parâmetro para graduação dos impostos reais para induzir o comportamento do contribuinte. E só.
b) O entendimento do STF a respeito do tema: leading case RE 153771/MG.
O Supremo Tribunal Federal apreciou a questão da progressividade nos impostos reais em atenção à proliferação de leis municipais que pretenderam utilizar a progressão de alíquotas em razão do valor venal do imóvel, da localização e/ou do uso. Não se tratava, assim, de progressividade no tempo, extrafiscal, mas de progressividade fiscal [81]. Nessa oportunidade, a Corte Constitucional entendeu que tais leis municipais eram inconstitucionais com base em dois argumentos.
O primeiro deles versava sobre a inexistência de autorização constitucional expressa para a adoção da progressividade como técnica de graduação do IPTU em caráter fiscal. O Relator do acórdão, Min. Moreira Alves, seguido pela maioria, afirmou que quando o constituinte desejou que a progressividade fosse aplicada, seja em caráter fiscal ou extrafiscal, manifestou-se de modo inequívoco. Não foi este o caso do IPTU, hipótese em que o constituinte só discriminou o uso da progressividade tendo em conta o fator tempo e para fins de cumprimento da função social e de implementação efetiva do plano diretor dos municípios.
"Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no art. 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal" [82].
Havia, portanto, dois requisitos cumulativos para a instituição da progressividade em sede de IPTU: que a progressão fosse temporal e que, além disso, ela fosse usada para a promoção da função social da propriedade urbana.
A segunda consideração do Tribunal para julgar inválida lei municipal que previsse alíquotas diferenciadas progressivamente não em razão do tempo, mas baseada em outro critério qualquer, foi a incompatibilidade dessa forma de graduação com as características ontológicas dos impostos reais. Duas foram as premissas adotadas pelo STF para concluir desse modo. Compreendeu-se que a expressão "sempre que possível" que figura no art. 145, §1º, da CF/88 não se refere apenas à obrigatoriedade de que o legislador infraconstitucional adote medidas de personalização dos tributos quando cabível, mas é extensível também à observância do princípio da capacidade contributiva, vale dizer, tal princípio será aplicado se, e somente se, a disciplina do tributo comportar tal incidência. E, como conseqüência direta dessa primeira ponderação, o Relator, seguido pela maioria dos outros Ministros, indicou que os impostos reais não são dados à aplicação da capacidade contributiva, visto que o fato gerador desse tipo de imposto contempla uma manifestação isolada de riqueza, não atentando para as manifestações complementares, que, juntas, formariam a capacidade contributiva global. Confira-se:
"De feito, a parte final do dispositivo em causa repele essa conclusão, porque a Constituição atribui à administração tributária a faculdade de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, "especialmente para conferir efetividade a ESSES OBJETIVOS", ou seja, ao objetivo de que os impostos, se possível, tenham caráter pessoal e ao de que esses impostos com caráter pessoal sejam graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, certo é como essa faculdade de identificação só tem sentido quando se trata de imposto de caráter pessoal (...)" [83].
Quanto à inexistência de autorização constitucional expressa para a adoção da progressividade como técnica de graduação do IPTU em caráter fiscal, a decisão do STF pareceu acertada, afinal, como foi destacado, o art. 156, §1º, da CF/88, na redação original, restringia a aplicação de alíquotas progressivas à finalidade extrafiscal. Quanto à incompatibilidade dessa forma de graduação com as características ontológicas dos impostos reais, no entanto, parece que uma das premissas argumentativas adotada é incorreta. Trata-se daquela que afirma que o princípio da capacidade contributiva pode não ser aplicado à determinada espécie tributária, de acordo com suas limitações. A bem da verdade, esse princípio é compatível com todos os tributos previstos na Constituição Federal, desde os impostos reais até as contribuições. Isso porque, como foi visto, a capacidade contributiva tem fundamento tanto na teoria da equivalência – sendo possível, pois, sua aplicação aos tributos vinculados às atividades estatais –, bem como nas teorias do sacrifício e no princípio da solidariedade – permitindo sua incidência nos tributos não vinculados e também nas contribuições.
Mesmo no caso do IPTU, um imposto real, que não leva em consideração a capacidade contributiva global do indivíduo, é necessário reconhecer que o princípio da capacidade contributiva está presente na apuração da base de cálculo. Explica-se. De acordo com o que dispõe o art. 33 do CTN, a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel. Este valor, no entanto, é basicamente o resultado da soma do valor venal do terreno e do valor venal da construção [84]. O valor venal do terreno, para ser calculado, leva em consideração os seguintes elementos: tamanho, localização, infra-estrutura existente no local, apenas a título de exemplificação. A seu turno, o valor venal da construção tem como quesitos de formação o padrão da construção (se se trata de edifício de luxo ou popular, por exemplo) e o estado de conservação do imóvel [85].
É um erro acreditar que esses elementos tenham sido escolhidos ao acaso. Todos eles indicam uma possível expressão da riqueza do contribuinte. Pensar de modo diferente levaria à declaração de inconstitucionalidade do próprio IPTU, pois a consagração do princípio da capacidade contributiva na Lei Maior constrange a adoção da riqueza como critério de desnivelamento entre os indivíduos ante o Fisco. Então, não é correto afirmar, como fez o STF, que o princípio da capacidade contributiva é inoperável na sistemática dos impostos reais. Apesar de ser possível que determinado tributo não leve em conta a capacidade contributiva global de determinada pessoa, todos os fatos geradores, em menor ou maior grau, indicam expressões de fortuna. Isso também acontece com os impostos reais. Prova disso são os impostos ditos indiretos, os quais, por tabela, podem ser também enquadrados como impostos reais, considerando que também são levadas em conta apenas manifestações isoladas de fortuna. A melhor técnica de graduação desses impostos em função da capacidade contributiva pode não ser a progressividade – no caso dos impostos indiretos, é a seletividade –, mas isso não significa que neles a capacidade contributiva não incida.
c) Poder constituinte derivado e EC 29/2000: reforma legislativa de decisão judicial [86].
Após reiteradas decisões do STF contrárias à constitucionalidade das leis municipais que pretendiam instituir a progressividade do IPTU em razão do valor venal do imóvel, do seu uso e/ou de sua localização, o Congresso Nacional, investido na condição de Poder Constituinte Derivado, deu nova redação ao art. 156, §1º, da Lei Maior, exatamente para permitir a a progressividade nesses casos. Aqui cabe uma breve digressão sobre o papel e as limitações do Poder Constituinte Derivado.
Tradicionalmente, refere-se ao Poder Constituinte Derivado em contraposição ao Poder Constituinte Originário. Contra a este não seriam oponíveis limites de qualquer ordem, até porque sua atuação seria fundante de uma nova ordem jurídica, não havendo por que e nem como opor limites às novas decisões políticas fundamentais, pois esse era exatamente o objetivo de um Poder Constituinte Originário: inaugurar uma nova ordem, em que a estrutura normativa reflita uma nova axiologia, diferente da anterior, ou apenas represente uma ruptura com a ordem precedente. Por outro lado, a partir do momento em que essas novas decisões políticas são reunidas em um texto constitucional e, em caráter de normalidade, nasce uma vontade social de que a Carta seja revestida de perpetuidade, ou seja, que aqueles sejam os valores pautadores da vida dali em diante. É algo natural, que decorre do próprio anseio geral por segurança jurídica.
Nada obstante, a idéia de perpetuidade não se confunde com a idéia de imutabilidade, e pode acabar ocorrendo que, em determinado ponto de sua vigência, seja necessário rever alguns dispositivos constitucionais por questões de justiça. Tem-se um verdadeiro embate entre segurança e justiça: em uma ponta, o desejo de perenidade da Constituição; em outra ponta, a necessidade de revisão de algumas normas que, mantidas como estão, levariam a um resultado injusto, de todo indesejável. Entra em cena o Poder Constituinte Derivado. Enquanto o Poder Constituinte Originário é um poder de fato, e, por isso, ilimitado, o Poder Constituinte Derivado revela-se uma poder de direito e, ontologicamente, já nasce vinculado às limitações colocadas por uma ordem jurídica que o reconhece e o regula. É, pois, poder condicionado e subordinado, visto que, deve obediência, ao mesmo tempo, aos óbices formais (condicionado) e às normas de fundo (subordinado ou limitado) previstas no sistema [87].
Em razão dessa constante dialética entre a segurança jurídica e a justiça, entre os anseios pela perpetuidade e a necessidade de implementação de mudanças, com vistas a resguardar um conteúdo constitucional mínimo que seja responsável pela essência das decisões políticas fundamentais veiculadas pelas normas constitucionais, formulou-se a teoria das cláusulas pétreas. Trata-se de eleger conceitos, elementos ou formas constitucionais sem os quais a vontade do Poder Constituinte Originário restaria desconfigurada a tal ponto que o conjunto de sua obra seria ofendido ilegitimamente. Desde o surgimento, apontaram-se os prós e os contras dessas cláusulas [88], mas é fato que quase em todo o mundo se reconhece a existência desse núcleo de decisões políticas que caracterizam uma Constituição e que, via de conseqüência, não pode sofrer emenda. Algumas dessas decisões sequer estão positivadas nos textos constitucionais, e, a despeito disso, ainda são marcadas de tamanha fundamentalidade que passam a integrar esse núcleo – é o que se convencionou chamar de limitações implícitas ao poder de emenda.
No Brasil, o Poder Constituinte Originário condensou em um dispositivo constitucional aquilo que deveria ser entendido como cláusula pétrea (CF/88, art. 60, §4º e incisos [89]). De todos os incisos, chama a atenção para esse estudo a vedação à votação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as garantias fundamentais. É preciso destacar que, além de incidir sobre todos os tributos – e não só sobre os impostos, conforme deixou entender o STF –, o princípio da capacidade contributiva consubstancia um direito fundamental. Em primeiro lugar, é direito fundamental porque nada mais é do que uma roupagem que veste o princípio da igualdade no Direito Tributário. Em segundo lugar, contribuir de acordo com as possibilidades financeiras de cada um é uma manifestação da justiça, um dos valores condutores do sistema, revestindo-se, portanto, de essencialidade. O art. 145, §1º, por tudo que já foi dito, é cláusula pétrea do ordenamento jurídico brasileiro. Quanto a isso, não há maiores divergências. A questão, portanto é saber se a EC nº 29/2000, ao permitir a progressividade do IPTU progressivo, macula o princípio da capacidade contributiva.
Em razão do exposto até então, já se pode afirmar com certo conforto que a resposta é positiva, afinal, os impostos reais não comportam essa técnica de graduação. Alguns motivos são arrolados pela doutrina nesse sentido. O primeiro deles é de cunho pragmático e se relaciona com a própria característica dos impostos reais de não terem em conta a capacidade contributiva global da pessoa, podendo a progressividade, se aplicada a eles, levar a sérias distorções impositivas [90]. O segundo é de cunho doutrinário, mas igualmente relevante: se a progressividade é justificada pela teoria da utilidade marginal é necessário que possa ser vislumbrada a adequação da curva de utilidade aos impostos reais, o que não ocorre. Simplesmente não é possível fazer isso, pois os imóveis só representam satisfação na vida dos indivíduos se considerados como um todo. Explica-se: cada metro quadrado de um apartamento só existe em função dos demais e, por isso, só a satisfação trazida pelo imóvel como um todo pode ser valorada. Não é possível dizer que um ou outro cômodo vale mais do que o outro e que, em razão disso, os últimos metros quadrados, agregam subjetivamente menos valor ao patrimônio do contribuinte do que os primeiros [91]. Trata-se, portanto, de hipótese de emenda constitucional inconstitucional, visto que, tanto em concreto como em tese, a aplicação da progressividade fiscal aos impostos reais pode malferir a capacidade contributiva.
Após a edição da EC nº 29/2000, o assunto foi novamente ventilado junto ao STF. Por enquanto, não houve a finalização do julgamento, tendo sido proferidos cinco votos e o entendimento do Relator, Ministro Marco Aurélio, tem conduzido o voto dos demais:
"Ora, a Emenda Constitucional nº 29/2000 não afastou direito ou garantia individual. E não o fez porquanto texto primitivo da Carta já versava a progressividade dos impostos, a consideração da capacidade econômica do contribuinte, não se cuidando, portanto, de inovação a afastar algo que pudesse ser tido como integrado a patrimônio. (...) Nem se diga que esta Corte, apreciando texto da Carta anterior a Emenda nº 29/2000, assentou a impossibilidade de se ter, no tocante ao instituto da progressão do IPTU, a consideração do valor venal do imóvel, apenas indicando a possibilidade de haver a progressão no tempo de que cogita o inciso II do § 4º do artigo 182 da Constituição Federal. Atuou o Colegiado, em primeiro lugar, interpretando o todo constitucional, e, em segundo, diante da ausência de explicitação quanto a se levar em conta, para social distribuição da carga tributária, outros elementos, como são o valor do imóvel, a localização e o uso" [92].
Como se observa, deixou-se de levar em conta que, no texto original da CF/88, a progressividade sobre impostos reais tinha caráter meramente extrafiscal, o que, por si só, não autorizaria a extensão dessa técnica à fiscalidade. Além disso, a eventual contraposição entre progressividade fiscal aplicada a impostos reais e princípio da capacidade contributiva foi pouco explorada. O tema, tão complexo, merecia análise mais detida do Tribunal Constitucional.