Carlos Roberto Claro1
O presente ensaio tem como objetivo analisar a natureza [pública e privada] que permeia o processo de falência2. Seguindo a linha de Rubens Requião, aqui interessa o estudo do instituto da falência3, e mais precisamente averiguar se os seus contornos são privatísticos ou publicísticos.
Em excelente texto, intitulado “A supremacia do direito privado na falência”, Túlio M. Tonheiro apresenta com precisão seu ponto de vista:
A doutrina, pela forma em que se definiu a redação e as normas gerais da Lei de Falências e Recuperação Judicial em 2005, tem defendido que no processo falimentar, face o relevante impacto causado na coletividade dos credores, há ampla verificação da norma como de direito público. Não pretende este trabalho desmerecer o relevante estudo realizado por este sem número de doutrinadores, contudo, entende-se que tal pensamento não assiste razão
[...]
A Falência não descarta a intervenção e participação do Estado para administrar esses interesses. Contudo, o que se pretende aqui concluir é que a Falência deveria ser instituto limitado a simples administração da Lei, da massa e dos seus bens, de forma a ordenar o processo para a execução realizada por particulares, por meio do juiz e do administrador judicial. A representação da coletividade, que somente deveria versar sobre assunto geral, é o que se deveria ter como função do Comitê de Credores. Todo e qualquer conflito, assim visto, que tivesse um embate sobre direito individual simples, que fugisse à questão do fato oponível de forma comum aos créditos não poderia, nesta visão, ser inserido como de atribuição livre desses entes coletivos em decidir4
O presente ensaio não tem como escopo analisar o procedimento pré-falimentar, interessando examinar somente a natureza pública ou privada do procedimento concursal a partir da abertura judicial da falência do devedor. Esta a delimitação do escrito.
Não se desconhece o fato de que é disponível o direito que dá arrimo ao pedido de falência do devedor, formulado por credor ou demais legitimados [Lei 11.10/05, art. 97], incidindo, nesse particular aspecto o caráter privatístico.
A abertura judicial da falência é inexoravelmente provocada pelo titular do direito, pelo legitimado por lei, sendo certo que se não retira o devedor insolvente do mercado de ofício. Saliente-se, nesse passo, que o escopo do pedido de abertura de falência tem como norte tão somente retirar o devedor insolvente do mercado, a fim de que seja mantido o equilíbrio deste, evitando-se efeito multiplicador [a intenção de cobrança é inadmissível no processo falimentar].
Importante ressaltar que o Estado-juiz, no Brasil, não toma a iniciativa na instauração de processo visando averiguar se o devedor está em estado de insolvência, com eventual retirada do mercado [CPC, art. 2º - Ne procedat judex ex officio - princípio da demanda ou da ação]. No Brasil inexiste falência ex officio5.
Por outro lado, a convolação da reorganização judicial em falência pode ocorrer quando das hipóteses dos artigos 58-A e 73 da lei de regência, por exemplo.
É possível afirmar que a falência possui natureza pública, em vários aspectos, porquanto visa-se manter o equilíbrio do mercado, com o “saneamento do meio empresarial” (Rubens Requião), sendo que:
o Estado, através da lei, objetivamente concretamente a eliminação das empresas econômica e financeiramente arruinadas, em virtude das perturbações e perigos que podem causar ao mercado, com reflexos em outros organismos6.
Por outro lado, existe o dever de tutela do Estado no sentido de fazer com que se observe rigorosamente o princípio da par conditio omnium creditorum, em relação a cada classe de credores no processo falimentar. Ainda, considerando o interesse social prevalente no âmbito falimentar, há o escopo de garantia e proteção [segurança] do crédito público.
O tratadista J. X. Carvalho de Mendonça é um dos poucos que escreveram com maior amplitude acerca das questões que envolvem o presente texto. Em várias passagens de sua obra é possível observar pontos relevantes e a respeito dos quais cabe reflexão. Acentua o autor: a lei de falência, sob o ponto de vista do interesse social, tem por escopo a proteção do crédito7. Prossegue:
As normas de direito material, processual e pena, que disciplinam esse fenômeno econômico em utilidade pública para a defesa do crédito, constituem o instituto da falência sob o ponto de vista jurídico8
Ainda:
procurando proteger o crédito, alma do comércio e órgão essencial à função da hodierna sociedade com os processos de produção e de organização da grande indústria, a falência propõe-se a pôr em prática lógica e economicamente, o princípio básico do direito obrigacional: os bens do devedor são a ‘garantia comum’ dos credores, salvo as preferências legítimas9
Com efeito, se não descuida do caráter indisponível que permeia o processo de falência a partir da sentença de abertura judicial da falência, de modo que várias diligencias deverão ser efetivadas, inclusive pelo administrador judicial nomeado, dentre elas a necessidade de apreensão dos ativos do devedor [arrecadação], dentre outras, elencadas no art. 99 da lei de regência.
A partir do momento em que é proferida a sentença de falência, não mais permitida a composição entre devedor e credor, por exemplo. Ainda, o processo há de ter o seu curso regular, com a arrecadação dos ativos, venda judicial10 e pagamento aos credores.
A lei de 2005 não trata da “falência frustrada” prevista no art. 75 do ab-rogado Dec.-Lei 7.661/45, mas, nada impede que o administrador judicial, constatando a inexistência de ativos arrecadáveis, imediatamente comunique o fato ao juízo falimentar.
Este, a seu turno, poderá marcar prazo [via edital] a fim de que os credores se pronunciem, querendo, acerca do prosseguimento do feito, inclusive antecipando os recursos financeiros para custear as despesas processuais, caso se pretendam novas diligências, visando a busca de bens arrecadáveis.
Por outro lado, se não pode negar determinados aspectos de direito privado constantes da Lei 11.101/05. Um exemplo imediatamente pode ser dado, que é justamente a disponibilidade, quanto ao credor, de habilitar o seu crédito na falência.
Poderá não observar, por exemplo, a regra do art. 7º, §1º ou, mais ainda, abrir mão da habilitação retardatária [e, consequentemente, deixar de formular pedido de reserva do valor relativo ao crédito]. Há disponibilidade quanto ao direito de habilitar (ou não) o crédito. Tudo a critério do legitimado.
Demais, outra regra legal que pode ser considerada é a expressa no art. 117, §1º, da lei. O contratante “pode” interpelar o administrador judicial, de modo que nada lhe é imposto; inexiste o dever de agir.
No Direito Comparado, Piero Pajardi também se debruçou sobre o tema objeto deste escrito. Acerca da natureza pública e privado do processo falimentar, disserta o doutrinador:
Si tratta di un aspetto, a mio avviso, sopravalutato del fallimento, e il cui interesse è sorto dal fatto che nella pratica si sono lamentate, spesso con ragione, conseguenze insostenibili di talune esagerate visioni pubblicistiche (24). In realtà, il problema è ozioso, e forse è uno pseudo-problema; la sua soluzione dipende dalle conclusioni sui problemi precedentemente esaminati.
Purtroppo, al contrario, vengono risolti spesso questi con le concezioni precostituite de ‘aliunde’ formatesi sul pubblicismo o sul privatismo (25)11
No que se refere ao caráter privatístico, pondera o autor:
Non si dimentichi che il patrimônio del fallito, lungi dall’essere confiscato, appartiene sempre a lui, ed a lui va restituito quanto ne sopravanza. I vincoli giuridici che gravano sul patrimonio in pendeza del fallimento hanno la stessa natura giuridica di quelli del processo esecutivo ordinario, per quanto in forma e misure ed estensioni speciali.
Quanto ai creditori, va in particolare sottolineato il potere dispositivo che essi hanno sul processo: è sufficiente che per un acordo extra-fallimentare col fallito essi non insinuino i loro crediti nel fallimento o rinuncino alla ammissione perché il processo si chiuda (e chi ha pratica di cose fallimentari sa quanto sovente ciò si verifichi)12
O aspecto publicístico, segundo entendimento do pensador:
Una tendenza dottrinaria (26) ha ravvisato nel fallimento un mezzo tecnico (neppure processuale, per taluni autori) pubblicistico per eliminare le imprese dissestate nell’interesse dell’economia generale, o per eliminare l’insolvenza sempre in vista di tale interesse; le parti private vi sarebbero tollerate come meri ‘soggetti interessati’ in istato di spettatori di fronte allo strapotere del curatore-liquidatore; il concordato sarebbe un mero provvedimento del tribunale; e via di seguito13
Por fim,
Questo è certamente l’aspetto del problema più sterile e no merita attenzione. Addirittura, non ha senso parlare di prevalenza dell’aspetto privatistico o di quello pubblicistico. Il falimento è un ‘quid compositum” con una base privatistica e con delle sovrastrutture e dele incidenze pubblicistiche.
Vedremo, esaminando i vari istituti specifici, e specialmente (e più utile) questa realistica non preconcetta visione. Forzando l’analisi, si può ancora specficare che l’ispirazione pubblicistica grava sul metodo, sugli strumenti di tutela dei diritti soggettivi in conflitto o in sofferenza, mentre la visione sostanziale e di principio di tali diritti come valori assoluti è tipicamente privatistica (malgrado le apparenze, ‘status’ di fallito, concordato di maggioranza, ecc., sono tematiche metodologiche) (28)14
Eram essas as breves considerações a respeito do tema.
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Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; professor em Pós-Graduação; parecerista; pesquisador e autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.
Ensina J. C. Sampaio de Lacerda que a falência pode ser analisada sob dois aspectos: o estático e o dinâmico. Estaticamente, é um processo de execução coletiva instituído por força de lei em benefício dos credores [...] Economicamente considerada, afirma ROCCO, ela é um fato patológico no desenvolvimento da econômica credora: é o efeito do anormal funcionamento do crédito. Manual de Direito Falimentar. 14ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 27. Rubens Requião explica que a falência é, em nosso entender, a solução judicial da situação jurídica do devedor-comerciante que não paga no vencimento obrigação líquida. Curso de Direito Falimentar. 1º Volume. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 6.︎
Op. cit., p. 5.︎
https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/22184/a-supremacia-do-direito-privado-na-falencia. Acesso: 19/05/2023.︎
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REQUIÃO, Rubens. Op., cit., p. 111. O jurista J.C. Sampaio de Lacerda escreve: não há falência ‘ex officio’; depende de requerimento de um ou mais credores ou do próprio devedor. Manual de Direito Falimentar. 14ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 28. Grifo no original︎
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REQUIÃO, Rubens. Op. cit., p. 26. Prossegue o mesmo autor: Pensamos, na ordem de análise de Jaeger, que o tanto a ‘par condicio creditorum’ como o saneamento do meio empresarial constituem elementos que se devem levar em conta para a compreensão e finalidade do instituto falimentar, mas que ambos os princípios não se sobressaem dominadores, mas se compõem ou se constituem como elementos imprescindíveis à garantia geral do crédito, que deve ser promovido e assegurado pelo Estado, através da lei. É claro que a segurança do crédito é elemento essencial para a estabilidade econômica e, nos países menos desenvolvidos, instrumento básico para o segue progresso básico. Tudo isso que a lei falimentar pretende realizar. Op. cit., p. 27. Destaques no original. Por fim, assevera: já deixamos assentado, inclusive através da lição de Bonelli, que o processo de falência é um complexo de normas, de diferentes naturezas, que envolve tanto interesses privados como públicos. O estado mórbido do crédito do devedor insolvável impossibilitando-lhe de pagar seus credores, repercute negativamente no mercado. Por outro lado, o Estado tem por missão não só garantir a igualdade de tratamento dos credores, impondo a ‘par condicio creditorum’, como também sanear a atividade econômica. Op. cit., p. 33. Grifos no original.︎
Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Volume VII, Livro V. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946, p. 157.︎
Op. cit., p. 8.︎
Op. cit,, pp. 18-19. Destaques no original. Há vários outros excertos na obra referenciada. Discorrendo sobre a falência, faz constar: Ela é remédio conservatório de direitos, e, nessa conformidade, tem a função de tutela preventiva contra a insolvência e a fraude do devedor, obstando a dissipação do patrimônio deste em prejuízo dos credores (p. 24). O instituto limita-se a ser preciosíssimo meio para garantir a expansão do crédito e o desenvolvimento do comércio [p. 25]. Uma lei sobre falência é trabalho de magnitude. Para nos convencermos deste asserto bastará atender ao fim que ela visa: a garantia e proteção ao crédito [p. 57]. Apreciada economicamente, a falência interessa não somente à economia individual como a pública, pois incontestavelmente perturba o crédito público, produz a dispersão de capitais, trazendo dano para a economia geral [p. 60].︎
Eventualmente poderá ocorrer a venda judicial antecipada dos bens, a teor do art. 113 da Lei 11.101/05.︎
Manuale di Diritto Fallimentare. Sesta edizione. Milano: Giuffrè Editore, 2002, p. 34. Destaque no original.︎
Op. cit., p. 34.︎
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Op. cit., p. 35. Grifos no original.︎
Op. cit., p. 36. Destaques no original. O autor pontua ainda mais: Purtroppo non si è ancora voluto comprendere appieno che la evoluzione processuale del falimento (su cui tutti concordano) non comporta di per sé una evoluzione pubblicistica; e così si procede per tipicazioni: da una parte si relegano i processualisti e i pubblicisti, e, dall’astra, i privatisti-commercialisti e gli amministrativisti. La vera via di sviluppo del falimento è quella di realizzare se stesso, come essenzialmente un processo esecutivo speciale e composito (recettivo dello stesso processo cognitivo), regolatore di interessi privati, per lo più plurimi, con una normativa variamente influenzata da una componente visione pubblicística del fenomeno giuridico-economico-sociale. Ed è la stessa via di interpretazione del diritto positivo attuale. Op. cit., p. 36.︎