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Olhares iniciais sobre o princípio do devido processo legal brasileiro.

Agenda 05/06/2023 às 11:11

Autor:

PAULO PLACIDO BARBOSA DE AZEVEDO

RESUMO: O presente artigo direciona-se na exposição do imprescindível papel da ampla defesa no devido processo legal, para exercício jurisdicional em consonância com as garantias constitucionais, que asseguram aos acusados em um processo a possibilidade de usar todos os dispositivos, legais e cabíveis, na estruturação da argumentação defensiva, sem sofre nenhuma espécie de restrição, conforme sua fundamentação legal disposta na Constituição Federal - Art. 5, inciso LIV - que confere a tal principio o status de Cláusula Pétrea.

Palavras-chave: Ampla defesa; Constituição Federal; contraditório; devido processo legal.

  1. Introdução

Historicamente o homem sempre teve sede por justiça. A exemplo disso temos a fábula bíblica de dois irmãos que protagonizam o primeiro homicídio da história. Caim, irmão mais velho, assassina Abel, filho mais novo de Adão e Eva, por um motivo torpe. Deus, fazendo as vezes do Parquet vai ao encalço de Caim arguindo que o ‘sangue de Abel clamava por justiça”. Este é um bom exemplo social e antropológico que a sociedade sempre teve em seu inconsciente coletivo a necessidade de justiça em face do cometimento de alguma infração normativa. Poderíamos citar o Código de Hamurabi, as duras leis islâmicas e indianas, entre outros exemplos, reais e fáticos, dessa necessidade de aplicação de justiça.

É nessa quadra que a ampla defesa se faz tão pertinente, pois, à medida que a roda da história gira, fica mais evidente sua importância definidora para um arbítrio justo, principalmente em tempos que a sede de justiça se transforma, na verdade, em uma sanha punitivista. Através do aperfeiçoamento normativo, sobretudo, na legislação brasileira, a ampla defesa tornou-se uma garantia do acusado a utilizar o aparato probatório, no amplo limite definido em lei, sem ser prejudicado em sua autodefesa, ou ainda em sua defesa técnica, a saber, aquela feita por um advogado.

De sorte, que não é plausível corroborar o preconceito que o princípio da ampla defesa é, na verdade, uma ferramenta de impunidade. Ora, o interesse em um arbítrio justo é a formação de culpa dos realmente culpados. Não há, pelo menos em tese, o interesse do sistema de justiça em condenar inocentes. Alinhado a isto, ao acusado é concedido o direito a uma série de garantias que o auxiliarão na demonstração de sua inocência, ao limite que cabe ao acusador demostrar, sem nenhum resquício de dúvida, que o incriminado realmente é o autor dos delitos.

2. Desenvolvimento:

2.1. Os princípios do contraditório e da ampla defesa

O princípio do contraditório e da ampla defesa são elementos fundamentais dentro de um Estado Democrático de Direito, pois compreende a relação, sobretudo, na dimensão penal, desse Estado com o indivíduo que está sob sua jurisdição. De maneira, que a ampla defesa e o contraditório, garante ao acusado de infringir algum tipo penal, o direito de se defender utilizando-se de todos os recursos legais que lhe estão disponíveis. O artigo 5°, inciso LV da Constituição Federal de 1988, reza o seguinte:

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

É importante entender os princípios constitucionais como dispositivos basilares, os alicerceares que fundamentam o sistema normativo. Neste giro, vale ressaltar a imprescindível manifestação no texto constitucional da garantia do devido processo legal. São as balizas do devido processo que sustenta a lisura no cumprimento de todas as fases estabelecidas em lei e, entranhadamente, desemboca no contraditório e ampla defesa. Art. 5°, inciso LIV:

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Segundo Bastos o contraditório é a “exteriorização da própria defesa”, garantido ao acusado o direito de se opor as condutas que lhe são atribuídas (Bastos,2011). Nesse sentido, corroboram muitos outros doutrinadores compreendendo o contraditório como uma espécie de outra face da ampla defesa.

Os dois princípios, contraditório e ampla defesa, protegem o ideal democrático de uma existência digna dentro do âmbito processual. Para este fim, deve o Estado zelar por tais princípios, como garantidor da aplicação dos direitos e garantias fundamentais. Ele, o Estado, tem por dever assegurar que esta umbilical relação entre acusado, ampla defesa e contraditório não seja “letra morta”. Por isso, o constituinte conferiu a ambos os princípios a característica de norma de aplicabilidade imediata, ou seja, não dependem da atividade legislativa para ter efetividade. Em que pese ampla defesa e contraditório estarem ligados, Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2014) discorrem que:

Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.

Embora estes princípios estejam conectados, não se pode confundi-los, ampla defesa e contraditório não quer dizer a mesma coisa. Não é apenas uma diferenciação semântica, mas há uma natureza diferente em cada princípio. No processo civil, define Nery Júnior, o contraditório como sendo o “conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo as partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis”. (NERY JUNIOR, 2012, p. 31).

Quando pensamos no acusado dentro do processo penal, estamos nos referindo ao sujeito passivo que tem o direito de ser informado sobre as acusações que lhe são atribuídas, conferindo-lhe ciência das possíveis infrações e, transversalmente, oportunizando sua defesa.

Esta defesa se divide em dois sentidos: a) Defesa técnica ou defesa material, consiste na garantia do acusado gozar de um profissional instruído no Direito, que lhe dê assistência jurídica de maneira a sustentar tecnicamente sua defesa. b) Autodefesa, incide na garantia do acusado sustentar, em favor de si mesmo, os pontos que lhes são benéficos e convenientes. Nesta quadra, Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2005) instruem em relação ao direito de audiência e presença:

O primeiro traduz-se na possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela mediação com o juiz, as razoes e as provas.

Nesta seara, a autodefesa se manifesta como positiva e negativa. Positiva quando o réu expõe sua versão dos fatos, uteis para sua defesa, alinhando-se ao direito de ser interrogado, como também de participar de audiência. A Autodefesa negativa está relacionada ao direito que o acusado tem de permanecer calado.

2.2.  O advogado e a ampla defesa

Primeiro é importante, para melhor compreensão desta temática, observarmos algumas definições comumente usadas no universo jurídico para fazer referência a pessoa do defensor público ou privado, que pode ser dativo ou defensores para ato (também chamados de ad hoc, para esta finalidade)

Quando o réu dispõe de recursos financeiros suficientes para honrar os honorários de um profissional da advocacia, então temos a figura do advogado particular. Do contrário, se o processado não tem recursos suficientes para constituir um advogado particular, a Constituição lhe assegura o direito a um defensor público, art. 5°, inciso LXXIV;” o estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Este advogado nomeado pelo Estado em favor do acusado que não tem condição de contratar um defensor particular, recebe o nome de dativo, é o que diz Oliveira (2012) “enquanto ad hoc é o defensor destinado a cumprimento de um ato exclusivo dentro do processo, na vacância do defensor instituído.”

Para a preservação da democracia e sustentação dos direitos e garantias fundamentais deve-se respeitar a supremacia da Carta Magna, sendo ela a base de todo o ordenamento jurídico. Contudo, em alguns momentos os legisladores ultrapassam o liame legal e redigi normas infraconstitucionais. A título de exemplo foi a criação de Lei 11.719/2008, que alterou a redação do art. 265 do Código de Processo Penal conferindo-lhe o seguinte texto no parágrafo primeiro: “A audiência poderá ser adiada se, por motivo justificado, o defensor não puder comparecer”. Há um entendimento sobre a Lei supracitada na direção de uma necessidade de evitar maiores prejuízos ao andamento do processo. Contudo, no parágrafo 2° do artigo citado, reza que “incumbe ao defensor provar o impedimento até a abertura da audiência. Não o fazendo, o juiz não determinará o adiamento de ato, devendo nomear defensor substituto, ainda que provisoriamente ou só para efeito do ato”. Fica evidente neste caso, a flagrante ofensa à garantia constitucional da ampla defesa, como bem referência Nucci (2015, p.652):

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O defensor ad hoc não é apto a conduzir todos os atos necessários à garantia de uma defesa eficiente. Cuidar-se-ia de arremedo de defesa em homenagem à celeridade, o que se evidencia hipótese absurda. Ademais, se o defensor constituído, público ou dativo não comparecer à audiência e não provar o impedimento até a abertura dos trabalhos, deve o magistrado redesignar o ato, promover a intimação do réu para constituir outro defensor (quando constituído), ou oficiar à Defensoria Pública para apresentar outro defensor de seus quadros, ou, ainda, nomear outro dativo. De todo modo, não pode realizar o ato com a presença de defensor ad hoc. Aliás, seria outra hipótese insensata realizar a colheita de vários depoimentos, promover os debates e realizar o julgamento, com acompanhamento de ad hoc, para, depois, tomar conhecimento de motivo relevante e justo para a ausência do advogado constituído naquela data.

Ora, pois, como uma moeda que tem dois lados, poderíamos dizer que em uma das faces da moeda processual temos celeridade e o devido processo legal sendo respeitado; porém, a outra face dessa mesma moeda não passa de uma encenação, um verdadeiro teatro que feriu de morte a garantia da ampla defesa.

2.3. Correlação da inefetividade da ampla defesa na nomeação de defensor substituto ou ad hoc

De acordo com o que foi relatado na parte anterior, o Código de Processo Penal admite a figura do defensor ad hoc agindo nos processos criminais. Todavia, já ficou demostrado o prejuízo que esta nomeação pode causar ao princípio da ampla defesa e do contraditório, como também danos aos direitos fundamentais. Haja vista, os jugados por tribunais que ao serem analisados só confirmam esse entendimento, ou seja, o prejuízo aos princípios supra.

O Tribunal de Justiça do estado de Roraima (TJ-RR) acolheu em determinados casos, o entendimento favorável a nulidades de atos da instrução processual, por reconhecer a ineficiência e baixa qualidade da defesa técnica, o que a cabo, resultou em prejuízo para o réu.

A Câmara Única do TJ-RR, jugou a Apelação Criminal n° 0010.14.012494-1, em 01/12/2015, de relatoria do Desembargador Leonardo Cupello, quando foi reconhecida, por unanimidade dos votos e em linha com o entendimento do Ministério Público, a absoluta nulidade do processo, aonde o magistrado nomeou um defensor ad hoc sem intimação previa do advogado constituído.

2.4. Evolução do princípio da ampla defesa no Brasil

A sociedade evoluí e, à medida que se transforma, requere uma adequação jurídica as novas formar que o Estado toma. Assim aconteceu com as várias Constituições que o Brasil já teve, no decorrer do tempo, elas foram nutrindo e robustecendo as garantias inerentes ao Estado Democrático de Direito. A cada documento constitucional, desde a Carta outorgada por Dom Pedro I em 1824, até a Constituição Cidadão, promulgada em 1988, houve um sucessivo aprimoramento, com exceções, do princípio da ampla defesa. Não obstante, é sabido que só em 1934 houve um reconhecimento mais substancial por parte do constituinte, quando o art. 113, item 24, positiva:” A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta”.

Em 1937, período autoritário do Estado Novo, os avanços obtidos na Constituição de 1934 foram mitigados pelo novo texto constitucional, dando as garantias processuais passadas um caráter de insignificância, direitos que haviam tido tímidos progressos, agora passariam a ser letra morta de lei. Nessa quadra da história, o princípio da ampla defesa é enfraquecido pela nova ordem constitucional quando confere a autoridade competente o poder de manter preso o acusado, mesmo sem culpa formada. Veja o que diz o art. 122 da Constituição de 1937:

Art. 122 Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada; a instrução criminal será contraditória, asseguradas antes e depois da formação da culpa as necessárias garantias de defesa.

Em idos de 1941 é criado o Código de Processo Penal, que foi um verdadeiro marco do Direito no Brasil, este é o Código Processual vigente até os dias atuais. Oliveira (2012, p. 5) descreve da seguinte forma:

Inspirado na legislação penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o Código de Processo Penal (CPP)) brasileiro foi elaborado nas bases notoriamente autoritárias, por razoes obvias e de origem.

Embora houvesse, como já supracitado, uma forte influência do fascismo na gênese do CPP, em seu art. 261 ratificou o direito de defesa, diz a norma processual “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou jugado sem defensor”.

A Constituição de 1946, no entanto foi mais abrangente, pois corroborou as garantias e direitos individuais no que concerne o processo penal, estabeleceu o tribunal do júri, resgatou a ampla defesa e a instrução penal condenatória do limbo em que se encontrava na Constituição de 1937(BARBOSA,1993). A Carta Magna de 1967 versou sobre os direitos e garantias fundamentais em linha consonante a ampla defesa e ao contraditório, conforme dispõe o art.153, §§ 15 e 16, respectivamente; “A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunal de exceção”.

Fica, notadamente, explicito os diversos e importantes incrementos ao processo penal, no que tange os direitos e garantias fundamentais, durante todo o processo histórico, culminado na Constituição Cidadã de 1988, que incorpora a redação constitucional a ampla defesa e o contraditório na condição de cláusulas pétreas, vinculados ao princípio do devido processo legal.

2.5. Ampla defesa ensejando a oportunidade processual para atividade crítica e argumentativa de oposição e fiscalização das normas jurídicas

O direito a ampla defesa permite que às partes e, também o Ministério Público, tenham de maneira abrangente a oportunidade de demostrarem através de uma larga margem argumentativa (espaço temporal e técnico-jurídico) o seu entendimento critico-discursivo a respeito das questões jurídicas e próprias dos fatos debatidas no bojo do processo, visando a legitimidade do exercício de produção (processo legislativo) e aplicabilidade das normas jurídicas (processo jurisdicional).De maneira que os lados dentro do processo possam demostra suas razoes, construindo, por assim dizer, um processo fundamentado na lisura, isonomia, que se aproxime ao máximo possível da verdade real, arguindo uma aplicação coerente ao texto normativo.

Estas razões estão baseadas na teoria do discurso do Direito e da democracia, sustentadas por Habermas (1997) e amplificada pelas pertinentes ponderações de Gunther (1993,1995,2006). Nesta raia, a sustentação consiste na ideia do Direito tendo sua legitimidade condicionada aos seguintes elementos: a) O Direito Positivo (processo legiferante) requer, de forma intransigível, para a sua materialidade que os cidadãos possam atuarem no processo a quem são destinatários. b) O processo deve estar eivado de racionalidade, a saber, ensejar a analise das propostas das normas consoantes a suas pretensões, mediante argumentos e contra-argumentos. (GUNTHER,2006, p. 223). Nesta seara, o cidadão, não somente é autor, mas também destinatário, ao mesmo passo, das normas jurídicas que perfazem todo o ordenamento jurídico, não bastando essas condições, é imperiosa a necessidade de recepção racional daqueles que serão os hipotéticos destinatários (HABERMAS, 2003, P. 153).

O entendimento sobre o cidadão como elemento coautor e objeto das normas jurídicas está assentado na concepção da ideia de pessoa deliberativa, isto é, a pessoal a quem é imputada a capacidade de, racionalmente, argui argumentos e contra argumentos, depreendendo um distanciamento e capacidade analítica em face dos próprios argumentos, como também dos posicionamentos alheios. Essa capacidade analítica e de distanciamento assentados na racionalidade são o produto que confere legitimidade a composição e práticas democráticas do Direito. (Gunther, 2006, p. 225 – 226).

É importante ressaltar a interligação entre sujeito de direito (pessoa de direito) e cidadão, na perspectiva da pessoa deliberativa como elo de ligação entre esses dois elementos, sem, contudo, lesar a confluência própria de cada uma das respectivas partes. O indivíduo é participante do processo criativo (processo legislativo) que resulta no Direito positivo, dando uma particular atribuição ao cidadão de coautor do direito positivado. O sujeito de direito, analisando por outro prisma, tem a obrigação de seguir as normas jurídicas, ainda que não tenha desempenhado uma função criativa dentro da atividade institucional de elaboração dessas normas. Esta obrigatoriedade normativa não está arrolada condicionalmente ao fato de ser positivada (existência formal), mas, advém da natureza democrática que deu legitimidade a sua instituição. Para tanto, não existe rompimento entre o cidadão e a pessoa de direito (GUNTHER, 2006, p.232). Assim sendo, compreende Gunther (2006, p. 235):

Com isso, introduz-se um conceito de pessoa que fundamenta tanto o conceito de cidadão como participante de procedimentos democráticos de legislação quanto o conceito de pessoa de direito como destinatário de normas postas democraticamente. É apenas com o pressuposto desse conceito de pessoa deliberativa que funciona a alternância regulada e institucionalizada entre o papel de cidadão e o papel de pessoa de direito obrigada a respeitar as normas.

Conforme a propositura de Gunther (2006, p. 235) a capacidade valorativa do individuo para compreensão da condição de ilicitude, ou seja, a imputabilidade jurídica, do fato, e seu balizamento conforme essa compreensão compõem o corolário dos limites introdutórios para a responsabilização do indivíduo, seja no âmbito civil ou penal, para observância das normas jurídicas e a enunciação de tal responsabilidade. Em outros termos, atribuir um comprometimento jurídico-normativo a um indivíduo, só é cabível em face de uma infração normativa por parte deste, caso tenha sido propiciado a pessoa o direito em participar da elaboração do texto jurídico-normativo não observado.

Não obstante, a exposição teórica tenha o objetivo de conferir legitimidade ao processo de criação das normas jurídica (processo legislativo), é cabível sua utilidade para a aplicação das normas (processo jurisdicional). De modo que a norma tem legitimidade a partir da sua gênese, ou seja do processo legiferante e só alcança plenitude na condição de possibilitar a larga participação dos indivíduos afetados pelos impactos da decisão judicial (ALMEIDA, 2005, p. 97; LEAL, 2002, p. 181). Para além disso, há uma exigência decorrida da legitimidade normativa, a saber, a perspectiva das partes do processo utilizarem o expediente argumentativo para contrapor os aspectos normativos dos textos legislativos em seu conteúdo. (LEAL, 2010, p. 214-245).

Neste caminho, faz todo sentido o entendimento da amplitude do que é conceituado como pessoa deliberativa para o desenvolvimento dos processos judiciais, em especial aqueles sujeitos processuais que denominamos como exercentes e contraditores do direito de defesa, sendo eles: Parquet, réu, autor e terceiros intervenientes). Concedendo a todos esses sujeitos processuais a garantia de poderem de forma crítica se distanciarem dos probatórios e decisórios componentes da estrutura procedimental, como também, se afastarem de modo valorativo dos atos postulatórios, incluindo os objetos de critica no processo e sobre os conteúdos normativos. Surgindo daí um sitio fértil para a legitimação do exercício jurisdicional, estabelecendo sua atividade coercitiva, compreensível, racionalmente.

2.6. Direito à prova

De maneira mais objetiva, a ampla defesa permite à parte, ao Parquet e a terceiros intervenientes o direito constitucional de expor probatoriamente, pelos meios legais, o aparato argumentativo enumerados nos processos referente as duvidas e itens ali debatidos (NUNES; BAHIA; PEDRON, 2020, p. 360).

Faz-se necessário sublinharmos que a matéria normativa do direito para a garantida da ampla defesa esta estabelecida de maneira estrutural no processo probatório em fases logicas, sendo elas quatro: a) Proposição ou indicação; b) admissão; c) produção ou concretização; d) valoração.

A formulação dos requerimentos de provas acontece durante a primeira fase, o autor na petição inicial (art. 319, VI, CPC (BRASIL, [2021c])), já o réu faz na contestação (art. 336 do CPC) respectivamente. Os pronunciamentos decisórios pelos quais o magistrado avalia os requerimentos de provas elaborados pelas partes, perfazem a segunda fase. O ato mais importante para a admissão ou inadmissão de provas, certamente é a deliberação sobre o saneamento e organização do processo – art. 357 do CPC. Na terceira etapa são utilizados os meios técnicos anteriormente normatizados, para colher os elementos probatórios que serão incorporados ao arranjo procedimental. Na quarta e ultima etapa, os elementos probatórios incorporados aos autos procedimentais são avaliados pelas partes, aonde são apontados e estabelecidos os limites argumentativos de registro, razoabilidade no cotejamento dos impasses abordados no processo e os fatos. (DIAS, 2015, p. 191-192). Conforme discorre Moreira (1984, p.232).

Assim, o legítimo exercício do direito à ampla defesa exige sua irrestrita obediência nas referidas quatro fases lógicas do procedimento probatório, sob a indesejável consequência de caracterização de “cerceamento de defesa”, circunstância que torna os seus atos suscetíveis de declaração de nulidade. Também é imperioso sublinhar que a garantia do contraditório reclama integral observância na estruturação do procedimento probatório. Moreira (1984, p. 232) anota ser manifestamente inadmissível a criação de procedimento em que qualquer das partes não possa formular requerimentos de provas a serem produzidas. Configura-se igualmente inadmissível conferir às partes tratamento assimétrico no curso do processo, o que significa que todos terão iguais possibilidades de participar dos atos probatórios e de se pronunciarem sobre seus resultados.

Isto, significa dizer que a ampla defesa, para se fazer valer é necessária e imprescindível a observância das quatro frases supracitadas, sob pena de um cerceamento de defesa.

2.7. Direito ao recurso

Da mesma maneira que na ampla defesa é imperioso o direito ao dispositivo probatório, a garantia de recorrer é mais um elemento indispensável para compor a efetivação de uma defesa alinhada com a norma constitucional. O direito ao recurso assegura às partes, ao Parquet e ao terceiro juridicamente interessado a oportunidade de expor as falhas normativas dos argumentos decisórios elencados nos procedimentos judiciais, intencionando reparar os equívocos perpetrados pelo judiciário (NUNES, 2006, p. 177). É o principio constitucional da ampla defesa, irmanado como contraditório, que garante interpor recursos, ou outros dispositivos de impugnação e seus correlatos atos de respostas, as chamadas contrarrazões.

Neste campo, fica evidente a restrição imprópria sofrida pela ampla defesa por consequência da Lei no 13.256/2016 (BRASIL, 2016), que mudou o juízo de admissibilidade concernente aos recursos especiais e extraordinários onde dispôs sobre estes mesmos recursos em oposição a admissibilidade dos mesmos, em dois aspectos diversos sob a fundamentação da inadmissão recursal. Conforme Pinheiro (2021, p. 109):

Se a inadmissão for fundamentada na circunstância de o acórdão recorrido estar em conformidade a tese adotada por Tribunal Superior em matéria de repercussão geral ou de recursos repetitivos, caberá apenas agravo interno para Tribunal a quo (art. 1.030 do CPC). Por outro lado, não havendo precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) ou do Superior Tribunal de Justiça (STJ) oriundos de julgamentos de casos repetitivos e de repercussão geral, caberá o agravo em recurso especial e em recurso extraordinário do art. 1.042 do CPC diretamente para o Tribunal Superior.

O direito a ampla defesa pode sofre alguma restrição em face de determinadas situações, conforme a existência de “havendo padrão decisório formado pelo Tribunal Superior, a temática não mais chegará a ele, sendo barrada no Tribunal local a inadmissão de recursos contra decisões que estejam em conformidade com tese adotada por Tribunal Superior em sede de repercussão geral ou de recursos repetitivos” (NUNES; FREITAS, 2018, p. 446), nessas circunstâncias será permitido ao próprio tribunal local o agravo interno. Nesta quadra, é relevante observarmos que só será possível o andamento do recuso até ao STF ou ao STJ mediante a impetração dos recursos extraordinários ou agravos em recurso especial, em consonância com a nova sistemática. Veja o que comenta Workart (2016, p. 243):

Casos inéditos, ou naqueles em que o precedente já estabelecido, tiver sido violado e o órgão prolator da decisão negar retratação. Nesses casos, e somente nesses casos, inadmitido o recurso especial ou recurso extraordinário, é que será cabível agravo diretamente ao Tribunal Superior.

Assim sendo, pode-se recorrer dos atos de inadmissão de recurso especial ou recurso extraordinário, mediante o entendimento do acórdão que está alinhado com tese sustentada pelo Tribunal Superior em matéria de recursos geral e recursos repetitivos.

3. Conclusão

Concluímos deste modo que o princípio da ampla defesa não deve ser violado, pois, quem o transgride, seja este sujeito quem for, está ferindo objetivamente a norma constitucional. Não importa qual o crime, infração, se grave ou menos gravosa, com dolo ou sem ele, de maneira categórica pode e deve-se afirmar o intransigente respeito a este dispositivo legal. Caso contrário coloca o Estado Democrático de Direito num abismo draconiano aonde o autoritarismo e totalitarismo encontram um capo fértil. A Constituição protege o direito do acusado se defender, não de modo limitado e restrito, mas com todas as letras, se defender de maneira ampla. Nessa perspectiva, devemos proteger e vigiar para que a sanha persecutória não tome espaço no sistema de justiça e acabe por tolher a garantia que todo acusado tem de se defender das acusações que lhe são imputadas, conforme está expresso na Constituição Federal de 1988.

Por assim dizer, a ampla defesa não pode ser uma abstração moral em um tribunal, mas deve ter efetividade, ou seja, os operadores do Direito e a sociedade como um todo, deve zelar, exigir e analisar se este princípio está sendo respeitado na prática, nas fases processuais dentro do sistema de justiça. Não basta um mero formalismo legal, enquanto a realidade depõe contra todos aqueles que desrespeitam a garantia legal supracitada, desconsiderando sua condição basilar e estrutural de uma justiça proba.

A ampla defesa é alicerce de um processo penal democrático, sem ele toda decisão tomada, devem cair por terra. Com o fim da Ditadura Civil-militar de 1964, vivemos no Brasil o maior período democrático da nossa história. No bojo da ideia de construção de um país Democrático de Direito, firmamos objetivamente o pacto civilizatório atinente ao direito do réu, antes de uma possível condenação, ter ouvida sua autodefesa, como também sua defesa técnica, cotejando os argumentos, as provas e, apriorística, dando ao incriminado o benefício da dúvida, como reza o brocardo latino “ind dubio pro reo”. É de notório saber, que a democracia não transige com tribunais que violem o devido processo legal, ainda que a motivação seja justa, pois de fato não será, caso sejam violados os direitos daqueles que respondem nas barras da justiça.

Por fim, é relevante chamar atenção para figura do advogado como um dos bastiões da ampla defesa. No diapasão dos justos tribunais, que observam o devido processo legal na forma da norma vigente, entendem que a figura do advogado deve ser respeitada, tanto quanto Ministério Público e magistrados. Infelizmente há, na cabeça pantanosa de muitos, a ideia que o advogado de defesa obstaculiza a aplicação da justiça. Porém, é exatamente o contrário, sem o pleno exercício advocatício, usando de todas as suas prerrogativas legais, o principio da ampla defesa fica prejudicado, a saber, causa danos a sustentação técnica em defesa do acusado. Para tanto, deve-se afastar qualquer ideia no sentido de falsa-hierarquia entre serventuários.

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Sobre o autor
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

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