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Licitações envolvendo operadoras de vale alimentação/refeição e a vedação às taxas negativas - "Soluções e o andar da carruagem"

Agenda 19/06/2023 às 16:41

De início, o cenário do objeto “cartões alimentação/refeição” desde as alterações normativas que vedaram a taxa a negativa, tem sido confuso e conturbado.

É verdade que o mercado, em objetos similares, historicamente, digladiava os torneios públicos através de lances/propostas em taxas negativas, e com o advento da vedação, as licitações foram encurraladas para duas alternativas: 1- licitar menor preço limitado à taxa zero, o que na lógica, levaria ao empate geral das propostas, todas em taxa zero, e a solução do certame ficara a encargo dos critérios de desempate [por isso o estabelecimento de sorteio, como um critério resolutivo, caso os demais critérios não fossem suficientes]; ou 2- realizar credenciamento para os aludidos serviços, hipótese ventilada pelo TCU no Acórdão 5495/22 como possível solução.

“Menor preço” e Credenciamento

O TCE/SP, analisando as transformações da técnica licitatória envolvendo o objeto cartões alimentação/refeição, isso através de casos concretos de seus jurisdicionados, ou seja, de soluções desenvolvidas pelos órgãos/entes licitantes na tentativa de viabilizar a contratação, tem emanado diversas posições. No e-TC 19262.989.22, por exemplo, o Tribunal considerou “inadequada” a utilização de credenciamento para o objeto em destaque. Todavia, em decisões mais recentes, nos TC-021288.989.22-1 e TC-021473.989.22-6 , houve uma mudança de entendimento por parte do Tribunal, que admitiu o uso do credenciamento em casos similares, alinhando-se a posição do TCU, citada anteriormente:

EMENTA: EXAME PRÉVIO DE EDITAL. CHAMAMENTO PÚBLICO. CREDENCIAMENTO DE EMPRESA PARA GERENCIAMENTO DE VALE ALIMENTAÇÃO. VEDAÇÃO DE TAXA DE ADMINISTRAÇÃO NEGATIVA. ESCOLHA DO CONTRATADO A CARGO DO BENEFICIÁRIO DIRETO DA PRESTAÇÃO. POSSIBILIDADE. IMPROCEDÊNCIA DAS REPRESENTAÇÕES.
[...]
Nesse contexto, o advento da proibição de desconto ou deságio em taxas de administração de benefícios de vale alimentação e refeição – inicialmente por força da Medida Provisória nº 1.108, de 2022, posteriormente pela Lei nº 14.442/2022 – conduz à inevitável remodelação dos negócios jurídicos firmados pela Administração Pública para esse desiderato.
Uma vez fatalmente caracterizado o empate entre as propostas, todas com oferta da denominada “taxa zero”, compreensível a preocupação do gestor em relegar ao fator “sorte” a escolha do prestador do serviço, se processado o torneio sob égide da Lei nº 8.666/93.
[...]
Ainda que sob a nova legislação, aliás, eventual desempate entre duas ou mais propostas não se afigura solução das mais praticáveis frente ao objeto pretendido.
Caracterizado aludido cenário, identifica-se possibilidade do uso do credenciamento, sabidamente admitido por doutrina e jurisprudência e hoje assim expressamente definido na Lei nº 14.133/2021: processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados (art. 6º, XLIII).

Portanto, atualmente, é perfeitamente compreensível e viável a opção pelo credenciamento. Seja pela aceitação do credenciamento no regime da Lei Federal nº 8.666/93, seja fundamentado no art. 79, II, da Lei Federal nº 14.133/2021.

O credenciamento se revela como a melhor opção, sendo o menor preço critério obsoleto, uma vez que os certames serão sempre resolvidos pelos critérios de desempate. Esse modelo, permite o credenciamento de todas as empresas que atendam com as condições mínimas do edital, e serão os servidores/empregados públicos que escolherão qual empresa irá gerenciar o seu saldo alimentação, com base na reputação da empresa e das vantagens ofertadas, a tendência é que haja aumento na qualidade dos serviços prestados, já que inexecuções ou falhas nos serviços, poderão incentivar a escolha dos beneficiários por outra operadora.

ME E EPP

Os artigos 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/06, preveem:

Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. (Vide Lei nº 14.133, de 2021
§ 1o Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada.
§ 2o Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1o deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço.
Art. 45. Para efeito do disposto no art. 44 desta Lei Complementar, ocorrendo o empate, proceder-se-á da seguinte forma: (Vide Lei nº 14.133, de 2021
I - a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado;
II - não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma do inciso I do caput deste artigo, serão convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese dos §§ 1o e 2o do art. 44 desta Lei Complementar, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito;
III - no caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos §§ 1o e 2o do art. 44 desta Lei Complementar, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.
§ 1o Na hipótese da não-contratação nos termos previstos no caput deste artigo, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame.
§ 2o O disposto neste artigo somente se aplicará quando a melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa ou empresa de pequeno porte.
§ 3o No caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão.
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Percebe-se da redação do art. 45, que complementa a compreensão do art. 44 [dispositivo que fixa a preferência de contratação por MEs e EPPs], que não há um critério fixo e automático de preferência, há uma margem de empate ficto, ou real, que possibilitará, no âmbito da preferência, que a empresa ME ou EPP apresente uma nova proposta que sobressaia à proposta, até então, melhor obtida no certame. Há um direito de preferência para proposição de nova proposta melhor. Não um direito objetivo de contratação de MEs e EPPs. É isso que o inciso I do art. 45 prevê.

Acontece que, o certame que visa o menor preço, no caso, está limitado a menor taxa zero, e todas as concorrentes estarão nesse patamar. Nesse ponto, não haverá como reduzir as propostas, embora haja empate real, entre todas, MEs, EPPs e as demais empresas. A aplicação do benefício se torna confusa, e não por acaso, em função de que esse critério de desempate não foi arquitetado para uma situação em que as propostas são todas idênticas e impossíveis de serem reduzidas, como a realidade atual do objeto em estudo.

E conferindo recentes decisões do TJSP, verifica-se que o judiciário tem firmado posição no sentido de que a preferência de MEs e EPPs em certames licitatórios que vedam a taxa negativa deve prevalecer, de modo que o sorteio deve estar concentrado nessas empresas beneficiadas, como exemplo:

Processo Digital nº: 1000089-59.2023.8.26.0047
[...]
Posto isso, CONCEDO A SEGURANÇA [...] para o fim de ANULAR todos os atos da licitação que ocorreram a partir do sorteio impugnado, tendo em vista que não foi respeitado o direito de preferência das MEs e EPPs e para DETERMINAR que novo sorteio seja realizado apenas entre as microempresas e empresas de pequeno porte que empataram com a melhor proposta.

O TCE/SP recentemente decidiu sobre isso, sobre o empate real ensejar na preferência para MEs e EPPs, sorteio entre elas [seguindo a aplicação dos artigos 44 e 45, especialmente do inciso III do último], e caso não haja empresas nessas condições,  parte-se para os critérios de desempate previstos em lei, e, naturalmente, não havendo solução, parte-se, por último, para o critério de sorteio entre as demais participantes.

De fato, isso gera o resultado lógico de que somente MEs e EPPs venceriam tais certames. Percebe-se que a alteração legislativa que veda a taxa negativa, desencadeou uma série de inconsistências técnicas no processamento de licitações com o objeto cartão alimentação/refeição, ao ponto de tornar o critério menor preço impraticável, e a condição de ME e EPP um fator qualificatório para participação de sorteio, que será o critério de desempate solucionador da licitação.

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Diante desse contexto, a opção pelo credenciamento se isola ainda mais como a melhor alternativa.

Soma-se a isso o fato de que, recentemente, o TCESP também entendeu pela inaplicabilidade do critério “técnica e preços” [TC 000601.989.23-9 ] para o objeto discutido. Acertadamente, uma vez que o objeto não possui contornos que permitam a avaliação técnica. Reduzindo ainda mais as hipóteses legais.

O panorama final

A realidade constatada leva à compreensão de que, ao fundo, o critério de julgamento “menor preço” para objetos envolvendo operação de vales alimentação e refeição, para além de obsoleto se torna praticamente irregular, embora seja aceito por alguns tribunais.

Eleger tal critério de julgamento não terá efeitos práticos licitatórios, pois o mesmo não julgará, servirá meramente como fixador de propostas idênticas, não há competição.

E isso se torna ainda mais profundo, pela afetação em cadeia da taxa negativa aos critérios de desempate.

Veja, emprestando a posição que vem sendo perpetuada pelo TJ/SP, e a posição do TCESP, destacada, há, em casos similares [objeto e vedação da taxa negativa] a obrigatoriedade de se mover sorteio exclusivo entre MEs e EPPs. Isso em virtude de todas as propostas estarem fixadas em igual patamar, e não haver a possibilidade de qualquer redução ou disputa [art. 45, III, da LC 123/06].

Então, a LC 123/06, estaria sendo aplicada de forma a gerar praticamente uma nova condição de licitação exclusiva, pois, se o empate é consequência lógica, quais empresas que não são beneficiadas participariam de certames dessa espécie? cientes de que, no fim, o sorteio seria restrito às MEs e EPPs. E mais, o sorteio nunca foi critério objetivo, o fator sorte por vezes é condenado pelo TCE/SP e até mesmo pelo TCU, isso em função de os processos licitatórios serem projetados com técnica, reflexão e instrumentos legais desenvolvidos ao longo dos anos para que o processo de contratação pública se dê: objetivamente, como mínimo de intervenções pessoais e com igualdade entre os concorrentes, isso tudo para o interesse público seja relevado ou alcançado. Empregar o fator sorte, em uma peça licitatória que se estrutura com o critério capital “menor preço” torna toda a construção da licitação irracional.

Os critérios de desempate são suplentes, atuam quando o critério de julgamento, apito e eficaz, eventualmente não resolve o processo. Há uma verdadeira inversão das lógicas e técnicas licitatórias nesse processo.

Ainda, há o rompimento axiológico do benefício às ME e EPP, a preferência de contratação nunca buscou a licitação exclusiva, seu caráter é inclusivo, de equiparação, não de exclusão. Os esqueletos dos benefícios estabelecidos pela LC 123/06, são diferentes, a finalidade é precípua, equiparar as armas das MEs e EPPs em certames públicos com as das grandes empresas, mas há fundamento específico na criação de cada um dos benefícios. A licitação exclusiva não é aberta a todos os processos, mas limitada a processos de determinados valores [R$ 80.000,00 – oitenta mil reais], por razões expressas, não criar reservas de mercado à MEs e EPPs.

Toda a cadeia impactada pela vedação às taxas negativas é capaz de gerar verdadeira reserva de mercado. E isso nunca favoreceria ao interesse público, ou justificaria o uso do menor preço, ou melhoraria a prestação do objeto.

Fronte ao Novo Processo Licitatório, carregado de planejamento, racionalidade, a opção pelo “menor preço” pode se mostrar, em verdade, irregular. Se ao justificar minha necessidade de contratação [ETP], obrigatoriamente devo pesquisar as alternativas possíveis, o credenciamento se distancia, e muito, como a melhor opção. Por isso, o processo deve estar bem fundamentado quanto a negativa de se realizar credenciamento. Dificuldades operacionais ou outros limitativos podem ser formalizados para motivar essa decisão, de manter o menor preço com emprego de critérios de desempate.

Veja: 1º por ser o credenciamento praticável; 2º: por sugerir uma melhor prestação, já que serviços do tipo sempre ensejam problemas de paralisação, descredenciamento da rede de fornecedores, morosidade no fornecimento de cartões, e essa disputa interna entre os fornecedores filtrará os melhores prestadores, que irão acumular mais saldo dos beneficiários optantes pelo melhor serviço, além de evitar paralisações, já que serão várias as fornecedoras; 3º: o critério “menor preço” é impraticável; 4º: o sorteio não é critério objetivo, fator sorte nunca prestigiou a melhor técnica licitatória; e, 5º: estabelecer sorteio exclusivo para MEs e EPPs significaria, além de reserva de mercado, a criação de benefício não previsto na LC 123/06, uma mescla de benefícios distintos.

Há ainda, outra posição sendo fomentada especialmente pelo TCE/PR, envolvendo a não aplicação da vedação à taxa negativa aos órgãos públicos , especialmente em licitações. Mas, vale ressaltar, o TCE/SP, ao contrário, vem reconhecendo a incidência da vedação , e esse é o norte que deve ser observado atualmente pelos jurisdicionados.

Alternativas possíveis

A Administração Pública, portanto, poderá:

1- Optar pelo credenciamento. Diante do disparatado uso do critério “menor preço”, já que a realidade de torneios públicos como objeto em questão resultará na aplicação irracional do critério de desempate sorteio exclusivamente às MEs e EPPs, rompendo a lógica licitatória de não discriminação ou ampla concorrência, transmutando os benefícios à MEs e EPPs, em reservas de mercado.

2- ou, poderá manter seu edital com critério menor preço, justificando a desvantajosidade do credenciamento, esclarecendo que o sorteio se dará como critério de desempate prioritariamente às MEs e EPPs, em função das dificuldades em se licitar esse tipo de objeto atualmente, do reconhecimento do TCE/SP da incidência da vedação à taxa negativa e do credenciamento ser desvantajoso.

Referências relacionadas

https://www.parceriasgovernamentais.com.br/acordao-5495-2022-segunda-camara-tcu-possibilidade-de-utilizacao-de-credenciamento-por-empresas-estatais-para-contratacao-de-servico-de-gerenciamento-e-fornecimento-de-vales-alimentacao-e-refei/

https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/892323.pdf

https://www.tce.sp.gov.br/boletim-de-jurisprudencia/boletim

https://www1.tce.pr.gov.br/noticias/tce-pr-reavaliara-legalidade-da-taxa-de-administracao-negativa-em-contratos/10252/N

https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/892323.pdf

https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/912340.pdf

Sobre o autor
Leonardo Vieira de Souza

Advogado e Consultor em Gestão Pública. Pós-graduado em Direito Administrativo, Constitucional, Eleitoral e Gestão Pública com ênfase em Licitações.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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