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Licitação: preferência à contratação local e posição do TJSP sobre inconstitucionalidade de norma municipal

Agenda 22/06/2023 às 17:58

De início, a Nova Lei de Licitações prevê certos cuidados a serem tomados pelos agentes públicos que atuam nas licitações:

Art. 9º É vedado ao agente público designado para atuar na área de licitações e contratos, ressalvados os casos previstos em lei:
I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos que praticar, situações que:
a) comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo do processo licitatório, inclusive nos casos de participação de sociedades cooperativas;
b) estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos licitantes;
c) sejam impertinentes ou irrelevantes para o objeto específico do contrato

 Portanto, o direcionamento da licitação para empresas locais deve ser justificado, sempre a depender das peculiaridades do objeto e, conforme já foi decidido pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – TCE/SP[1], o ideal é que nos objetos que careçam de prestação próxima do contratante, além dessa exigência ser justificada, seja aberta a possibilidade de que os interessados se instalarem no local caso vençam o certame, como um a condição imposta ao vencedor, não restringindo a disputa.

Em resumo, a regra geral sempre preza pela ampla participação, a exigência de proximidade, distancia mínima ou instalações locais, que limitariam o certame aos fornecedores da região, sempre deve estar justificada no processo de contratação e alternativas de execução do objeto por outras empresas [que venham a se instalar posteriormente ou se encarreguem de transportar insumos/equipamentos].

Ou seja, não é da ordem natural das licitações favorecerem os fornecedores locais, especialmente pelas novas regras do processo eletrônico, reafirmadas na Nova Lei de Licitações, que reforçam o processamento nacional das licitações, incluindo a unificação das informações licitatórias no PNCP.

Os objetos que necessitarem dessas condições especiais, de proximidade ou instalação local, sempre devem conter essas motivações na fase interna da licitação, o ETP deve relatar fundamentalmente essa medida.

ME e EPP

Em verdadeira exceção, a Lei complementar nº 123/06, que estabeleceu tratamento diferenciado para ME e EPP, em seu art. 47[2], prevê que esse tratamento visa o desenvolvimento municipal e regional e no §3º, do art. 48, dispõe sobre a possibilidade de se estabelecer prioridade as empresas locais e regionais:

Art. 48.  Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública: 
I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);               
II - poderá, em relação aos processos licitatórios destinados à aquisição de obras e serviços, exigir dos licitantes a subcontratação de microempresa ou empresa de pequeno porte;         
III - deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte.               
[...]
§ 3o  Os benefícios referidos no caput deste artigo poderão, justificadamente, estabelecer a prioridade de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente, até o limite de 10% (dez por cento) do melhor preço válido.   

Regulamentando a Lei complementar de tratamento diferenciado, a União, no Decreto nº 8538/15, estabeleceu uma margem de prioridade para as empresas sediadas no local ou na região de execução do objeto com formato de critério de desempate, desde que as propostas dessas empresas estejam no limite de até 10% do melhor preço/da melhor proposta, o popular “empate ficto”. Essa prioridade assegura o direito de a microempresa ou empresa de pequeno porte elaborar nova proposta melhor do que a, até então, melhor proposta. Veja:

Art. 9º Para aplicação dos benefícios previstos nos arts. 6º a 8º:
I - será considerado, para efeitos dos limites de valor estabelecidos, cada item separadamente ou, nas licitações por preço global, o valor estimado para o grupo ou o lote da licitação que deve ser considerado como um único item; e
II - poderá ser concedida, justificadamente, prioridade de contratação de microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente, até o limite de dez por cento do melhor preço válido, nos seguintes termos:
a) aplica-se o disposto neste inciso nas situações em que as ofertas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sediadas local ou regionalmente sejam iguais ou até dez por cento superiores ao menor preço;
b) a microempresa ou a empresa de pequeno porte sediada local ou regionalmente melhor classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora da licitação, situação em que será adjudicado o objeto em seu favor;
[...]
h) a aplicação do benefício previsto neste inciso e do percentual da prioridade adotado, limitado a dez por cento, deverá ser motivada, nos termos dos arts. 47 e 48, § 3º, da Lei Complementar nº 123, de 2006 .
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Diferentemente, o Município de São Paulo, ao regulamentar[3] o tratamento diferenciado para ME e EPP, estabeleceu os 10% como margem de preferência para a contratação de empresas locais.

Critério de desempate

Se somente a lei pode traçar distinções, a Lei Federal nº 14.133/2021, ao estabelecer os critérios de desempate gerais das licitações, em seu art. 60, §1º, inciso I, elenca a territorialidade das licitantes como um dos critérios de desempate:

Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
[...]
§ 1º Em igualdade de condições, se não houver desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos ou prestados por:
I - empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize;

Panorama geral

Portanto, percebe-se que a regra geral impõe que somente será possível estabelecer restrições nesse sentido, quando houverem justificativas específicas, contornos do objeto licitado que exijam essa condição. O que, com o processo eletrônico, é ainda mais complexo de se justificar.

A possibilidade que sempre existiu envolve o tratamento diferenciado para ME e EPP, podendo ser editado regulamento local prevendo uma margem de prioridade, e isso não autorizaria licitação regionalizada, mas regulamentaria um direito assegurado às ME e EPP da região, de ofertar nova proposta melhor do que aquela que até então é considerada vencedora ou margem de preferência, desde que as propostas das beneficiárias estejam dentro de um limite estabelecido em decreto próprio, que poderá ser de até 10%.

Tal regulamento também definirá os limites municipais e regionais para fins de aplicação do benefício.

Fora isso, a prioridade autorizada pela LC 123/06, existe a regionalidade como critério de desempate na Nova Lei de Licitações e a eventual necessidade justificada de se instruir um processo licitatório voltado a fornecedores locais, em função do objeto ou da impossibilidade de se realizar uma licitação aberta a todos os interessados, o que demanda esforço motivacional.

TJ/SP e a inconstitucionalidade de lei criando preferência à contratação de fornecedores locais

Diante do panorama geral exposto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, recentemente apreciando a Ação Direta De Inconstitucionalidade n.º 2285448-54.2022.8.26.0000[4], reconheceu a inconstitucionalidade de lei municipal que previa preferência à contratação de empresas locais nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação.

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Referida lei[5] estabelecia que determinado município observasse a relação do comércio e prestadores de serviços locais para cada ato de dispensa ou inexigibilidade, informando aqueles que dispunham de capacidade em assumir o objeto, de forma eletrônica ou por carta, ambas com confirmação de recebimento, e, ainda, no caso de impossibilidade em se contratar empresas locais, a Administração deveria justificar essa ocorrência e proceder com contratações eletrônicas. A não observância dessa regra, segundo a norma citada, ensejava em nulidade do ato praticado e configurava improbidade administrativa.

No Acórdão, o TJSP reconheceu a inconstitucionalidade alicerçado: na separação de poderes, na impossibilidade de o município legislar sobre regras gerais de licitações, na não autorização dos dois regimes gerais de licitação para criação de vantagens destinadas as empresas locais e na ingerência do poder legislativo em intervir em atribuições típicas do executivo. Conforme os trechos destacados a seguir:

Fixadas tais premissas, observo que, nos termos do parecer da douta Procuradoria Geral de Justiça, a norma municipal é inconstitucional por violação à repartição constitucional de competências.
Isso porque, nos termos do art. 22,XXVII, da Constituição Federal, compete, privativamente, à União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”.
Quanto ao ponto em discussão, trazendo normas gerais sobre licitações, destaco que a Lei nº 8.666/93, em seu art. 3º, § 1º, inc. I, dispõe expressamente que é vedado aos agentes públicos “admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato [...]” (grifou-se).
Referida disposição foi reproduzida na Nova Lei de Licitações, que também prescreve ser vedado ao agente público estabelecer “preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos licitantes” (art. 9º, “b”, da Lei Federal nº14.133/2021).
Tais dispositivos possibilitam que as licitações respeitem os princípios de publicidade e isonomia, dispostos nas Constituições Federal e Estadual, de modo que, em regra, não devem ser estabelecidas distinções ou preferências nas licitações e contratações realizadas pela Administração Pública.
Assim, ao disciplinar normas gerais de licitação, a lei municipal viola o disposto noart. 22, inc. XXVII, da Constituição Federal, que dispõe sobre a repartição de competências legislativas, aplicável aos municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista e também os princípios dispostos no art. 111 da mencionada Constituição Estadual.
No mais, para além da inafastável inconstitucionalidade por usurpação da competência normativa federal, cabe reconhecer, outrossim, que, ao estabelecer a criação de “mecanismos próprios” pelo Poder Executivo para cumprimento da Lei, há indevida ingerência do Poder Legislativo na Administração Pública municipal, em desrespeito ao princípio da separação de poderes, conforme previsto no art.5º, caput, da Constituição Federal e arts. 5ºe 47, incs. II, XIV e XIX, “a”, ambos da Constituição Paulista, aplicáveis aos Municípios, por força do art. 144 da mesma CE.

A Nova Lei de Licitações e o comércio local

Iniciativas como essa são justificáveis pela preocupação dos poderes locais em assegurar acesso do comércio local às compras públicas. Mas estabelecer tal benefício, como visto, não é a melhor alternativa.

É claro que a sistemática de licitações eletrônicas [regra na Lei 14.133/21] e centralizadas [informações postadas no Portal Nacional de Contratações Públicas - PNCP] gerará a tendência de que os certames sejam disputados por empresas de todo o País, até por isso estabelecer preferência nesse sentido contraria a axiologia da Nova Lei de Licitações.

A manutenção dos fornecedores locais estará presente em pequenas compras, em dispensas e em algumas localidades é possível visualizar iniciativas de capacitação e instrução dos fornecedores, seja através de campanhas públicas, seja através de organizações comerciais, como as Associações de Comércio, que fornecer capacitações aos comerciantes locais, instruindo-os sobre a participação em licitações. Esse é o caminho, não fechar as portas para os fornecedores locais, nem mesmo "trancar as licitações em casa", mas apresentar-lhes o novo panorama de compras públicas, inclusive viabilizando a participação em certames de outros entes/poderes/órgãos.

Conclusão

Assim, conclui-se que não há autorização legal [tanto na Lei Federal 8.666/93 como na Lei Federal nº 14.133/2021] para que sejam estabelecidas através de leis ou regulamentos, preferencia à contratação de empresas locais.

As únicas exceções a essa regra, são: 1- a possibilidade de se estabelecer prioridade de contratação de microempresas ou empresas de pequeno porte locais com propostas iguais ou até 10% da melhor proposta, autorizada pela LC 123/06, em seu art. 48; 2- o critério de desempate previsto no art. 60, §1º, inciso I, da Lei Federal nº 14.133/21; ou 3- o desenvolvimento de justificativas específicas em determinados objetos para a contratação local ou com limitação territorial.

Há, inclusive, casos de normas municipais declaradas inconstitucionais pelo TJ/SP, como a relacionada no corpo da presente orientação, que fixava a prioridade de contratação direta de empresas locais.

Essa panorama é especialmente importante diante do fluxo de regulamentações locais que são exigidos ou favoráveis a serem elaborados no âmbito do regime licitatório da Lei Federal nº 14.133/2021, um limitativo concreto a essa atividade regulamentadora. 


[1] Disponíveis em: https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/272459.pdf

https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/256040.pdf

https://www2.tce.sp.gov.br/arqs_juri/pdf/498931.pdf

Acessados no dia 9 de junho de 2023.

[2] Art. 47.  Nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, desde que previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente.

[3] Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sp/s/sao-paulo/decreto/2015/5648/56475/decreto-n-56475-2015-disciplina-o-tratamento-diferenciado-e-favorecido-a-ser-dispensado-as-microempresas-me-e-as-empresas-de-pequeno-porte-epp-no-ambito-da-administracao-direta-e-indireta-do-municipio-de-sao-paulo-para-os-fins-de-contratacoes-pu-blicas-de-bens-servicos-e-obras-em-conformidade-com-os-artigos-42-a-49-da-lei-complementar-federal-n-123-de-14-de-dezembro-de-2006-com-alteracoes-instituidas-pela-lei-complementar-federal-n-147-de-7-de-agosto-de-2014-que-institui-o-estatuto-nacional-da-microempresa-e-da-empresa-de-pequeno-porte. Acessado no dia 9 de junho de 2023

[4] Disponível em: https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2023/05/doc_134816582.pdf. Acesso no dia 9 de junho de 2023.

[5] Disponível em: https://weblinesistemas.com.br/arquivos_site/imagens_camaras/PDF.jpg . Acesso no dia 9 de junho de 2023.

Sobre o autor
Leonardo Vieira de Souza

Advogado e Consultor em Gestão Pública. Pós-graduado em Direito Administrativo, Constitucional, Eleitoral e Gestão Pública com ênfase em Licitações.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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