Palavras-chave: multa do art. 475-J, subsidiariedade, processo do trabalho, execução, medida coercitiva
Em vista das recentes alterações do CPC, a controvérsia sobre a aplicação subsidiária, no processo trabalhista, da multa prevista no seu novo art. 475-J se qualifica como a mais intensa e interessante. Nem tanto pela freqüência com que se lançam os argumentos favoráveis ou contrários a essa supletividade da norma processual comum ao processo trabalhista, mas sobretudo pela importância de se trasladar para o foro laboral a inovação que mais concorre para a efetividade dos atos executivos.
O dispositivo sob comento assim está posto:
Art. 475-J do CPC - Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.
A dúvida se restringe à possibilidade de se aplicar a multa de 10% como estímulo ao pagamento imediato da dívida trabalhista.
Os argumentos esgrimidos contra a aplicação da multa no processo do trabalho gravitam em derredor de uma só premissa: a de que a CLT não seria omissa quanto ao rito da execução trabalhista, sendo inviável, a teor do art. 769 da mesma CLT, consultar a compatibilidade da regra de processo civil quando inocorre lacuna a ser colmatada. Assim se manifestam, entre outros, Manoel Antonio Teixeira Filho [01], Estevão Mallet [02], José Augusto Rodrigues Pinto [03] e Aurélio da Silva [04].
Quando se reportam à norma trabalhista que estaria exaurindo a matéria – de modo a impedir a aplicação da multa em questão – os autores enfatizam o que dispõe o art. 880 da CLT:
Requerida a execução, o juiz ou presidente do tribunal mandará expedir mandado de citação do executado, a fim de que cumpra a decisão ou o acordo no prazo, pelo modo e sob as cominações estabelecidas ou, quando se tratar de pagamento em dinheiro, inclusive de contribuições sociais devidas à União, para que o faça em 48 (quarenta e oito) horas ou garanta a execução, sob pena de penhora.
É verdade que o dispositivo não se refere à multa e, além disso, prevê a concessão de prazo, após citação, para o pagamento ou a garantia da execução. Como o art. 475-J do CPC prescreve a concessão de prazo, após intimação, apenas para o pagamento (sob pena de se lavrar auto de penhora), estaria assim e definitivamente constatada a diferença de ritos e, o mais relevante para os que rejeitam a subsidiariedade, restaria evidenciada a existência de norma trabalhista a proscrever a incidência da regra de processo civil.
Abstraindo-se da multa – e adiante se dirá por que dela se abstrai –, a verdade é que as diferenças entre os procedimentos não contaminam a essência ou ontologia de uma ou outra norma, sendo alusivas somente ao prazo mais elástico que assiste ao devedor civil e à depuração terminológica que acompanhou a fusão dos processos cognitivos e de execução no processo comum. Estruturalmente, os ritos se assemelham:
CPC |
CLT |
|
1º ato |
coisa julgada cível |
coisa julgada trabalhista |
2º ato |
Intimação para pagamento em 15 dias, sob pena de penhora (e avaliação) |
citação para pagamento ou garantia do juízo em 48 horas, sob pena de penhora (e avaliação) |
3º ato |
Possível impugnação do executado (arts. 475-J, §1º e 475-L) |
possíveis embargos do executado (art. 884), em até cinco dias após estar seguro o juízo |
4º ato |
decide-se a impugnação |
decidem-se embargos |
5º ato |
Ato(s) de alienação |
ato(s) de alienação |
Logo, os dois procedimentos seriam receptivos, estruturalmente, à aplicação de multa cuja incidência estaria condicionada ao não pagamento no prazo de quinze dias ou de quarenta e oito horas, respectivamente. São esses os prazos assinados para a quitação da dívida civil e da dívida trabalhista, podendo eximir-se dessa multa apenas a parte que optar, por conveniência ou convicção, a cumprir a sentença que afirmou o débito e transitou em julgado. A diferença está na circunstância de apenas o CPC se referir, textualmente, à citada multa.
Em rigor, o que ainda falta na dicção da regra processual trabalhista é uma medida coercitiva, pois nela se contemplam, mutatis mutandis, todas as medidas sub-rogatórias presentes, antes como agora, na norma processual civil.
Não custa lembrar que medida sub-rogatória é aquela que atende à mais vetusta função da execução, qual seja, a de instrumentalizar a substituição da parte devedora e recalcitrante pelo juiz que, a saber, aliena-lhe o patrimônio e assim promove o pagamento ao credor. Por seu turno, a medida coercitiva não é usada para viabilizar essa substituição da parte pelo juiz, mas, sim, para induzir a parte resistente ao pagamento.
Sobre essa histórica diferença entre meios executivos postos à disposição do juiz, Giuseppe Chiovenda [05] traz vetusta lição:
Por meios executivos se entendem as medidas que a lei permite aos órgãos jurisdicionais pôr em prática para o fim de obter que o credor logre praticamente o bem a que tem direito. Esses meios executivos podem dividir-se em meios de coação e de sub-rogação.
a)Meios de coação. Dizem-se meios de coação os que os órgãos jurisdicionais tendem a fazer conseguir para o credor o bem a que tem direito com participação do obrigado, e, pois, se destinam a influir sobre a vontade do obrigado para que se determine a prestar o que deve. Tais são as multas; o arresto pessoal; os seqüestros com função coercitiva.
b)Meios de sub-rogação. Meios de sub-rogação dizem-se daqueles com que os órgãos jurisdicionais objetivam, por sua conta, fazer conseguir para o credor o bem a que tem direito independentemente de participação e, portanto, da vontade do obrigado. Tais a apreensão direta das coisas determinadas a que o credor tenha direito; a apreensão das coisas móveis ou imóveis do devedor para convertê-las em dinheiro com o fim de satisfazer os créditos; a realização direta da atividade devida pelo devedor, se fungível; o emprego da força para impedir que o devedor realize uma atividade em contraste com a obrigação de não fazer.
Quando o art. 287 do CPC teve a sua redação alterada (pela Lei 10.444/02) para que se permitisse a cominação de astreinte em antecipação de tutela, também não faltaram juslaboralistas que, atônitos ante a ruptura de paradigma, recusassem a incidência da mesma regra no processo do trabalho.
Os defensores dessa tese – a de que não cabia a cominação de astreintes no processo trabalhista – afirmavam que a CLT regulava a tutela antecipatória em seu art. 659, incisos IX e X, esgotando o tratamento da matéria na seara laboral sem cogitar de multa diária. Em sentido oposto, a garantir hospitalidade à multa diária como um meio de compelir o devedor a cumprir sua prestação trabalhista, vem há muito enfatizando o TST que "dentre os deveres do magistrado está o de conferir efetividade às suas decisões, sob o risco de, por inúmeras vezes, vê-las descumpridas. Tal procedimento, aliás, não pode ser considerado constritor do direito alheio, máxime quando amparado na legislação" [06].
Se é exato dizer que as medidas sub-rogatórias devem obediência ao princípio da tipicidade, também o é que o postulado se inverte em se tratando de medidas coercitivas. A fungibilidade dos meios de coerção está consagrada, vale frisar, no art. 461, §5º do CPC, que, a propósito da sua utilização na execução das obrigações de fazer, recomenda ao juiz...
(...) determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
Dizendo secundar Thereza Alvim, Luiz Guilherme Marinoni e Alexandre Câmara, Marcelo Guerra [07] assim se refere às medidas coercitivas inominadas que o juiz da execução pode manejar com base nesse dispositivo:
(...) o §5º do art. 461 do CPC autoriza o juiz a impor, além da multa diária (e da prisão civil do devedor de alimentos), as medidas coercitivas que julgar adequadas para garantir a prestação efetiva da tutela executiva. Aqui abre-se, realmente, grande espaço para a criatividade judicial.
Ao que emendaria Humberto Theodoro Junior [08]:
Como o vencido não pode realizar espontaneamente a prestação que lhe cabe, e como a sentença não é apenas um parecer, mas um comando de autoridade, reconhece-se que lhe corresponde a função de fonte da execução forçada. O condenado não poderá impunemente abster-se de cumprir a condenação, pois o órgão judicial, diante do definitivo acertamento da situação jurídica dos litigantes, tomará, em satisfação do direito reconhecido ao credor, as providências necessárias para forçar a realização da prestação definida na sentença.
Na execução forçada, aos meios de sub-rogação ritualizados pela lei se agregam os de coação, que a lei apenas exemplifica e se destinam, como observa Chiovenda, "a influir sobre a vontade do obrigado para que (ele) se determine a prestar o que deve". A dicotomia dos meios de execução forçada tem, como se nota, fins não somente didáticos mas também o de reduzir a complexidade do sistema jurídico, otimizando-o.
Não há sentido, portanto, em se afirmar, como afirmam Daniel Amorim Assumpção e Evaristo Aragão Santos [09], que a multa do art. 475-J teria caráter punitivo, mas não coercitivo, pois seria impossível ao juiz calibrá-la. O mais sensato é simplesmente admitir que não se trata de sub-rogação ou substituição da parte pelo juiz, mas de execução indireta ou medida coercitiva, como aquiesce Cassio Scarpinella Bueno [10].
É, por seu turno, de toda prudência que o juiz da cognição advirta o devedor, precocemente, da adoção da multa do art. 475-J do CPC, afirmando que dela fará uso ao início da execução. O caráter inovador da regra e as primeiras e judiciosas dúvidas sobre sua aplicação supletiva recomendam essa conduta. Quanto ao mais, a natureza alimentar do crédito trabalhista justifica a prevalência do prazo de quarenta e oito horas para o pagamento, sendo irrelevante a circunstância de o art. 880 da CLT ainda se referir a citação e conceder um prazo mais elástico para o pagamento.
Do contrário, estaremos sempre a prestigiar a ambigüidade da norma processual trabalhista, que a um só tempo permite ao juiz iniciar de ofício a execução – dando-lhe assim a roupagem de uma fase seguinte do mesmo processo – e prevê, como ato primeiro desse mero cumprimento da sentença, o ato de citação, que é, contraditoriamente, mais apropriado à abertura de processos autônomos. Tem pertinência, portanto, o desabafo de Francisco Antônio de Oliveira [11]:
Não se pode negar que o conteúdo redacional do art. 880 da CLT está ancilosado no que diz respeito à exigência de citação e no tocante à multa, daí a possibilidade de o intérprete valer-se da lacuna ontológica para dar prestígio à norma frente à realidade. Existe também a possibilidade de vislumbrar a lacuna axiológica, pois embora exista a norma legal, está tão envelhecida que não condiz com a realidade; prova disso é que o processo civil tão renitente em adotar normatização mais avançada, está na dianteira do processo trabalhista, não mais exigindo a citação e aplicando multa ao devedor renitente.
Comungando de igual percepção, qual seja, a de que existe lacuna na norma processual trabalhista, o suficiente para autorizar a incidência da multa prevista no art. 475-J do CPC, estão Sérgio Cabral dos Reis [12], José Carlos Arouca [13], Jorge Luiz Souto Maior [14], Carolina Tubinambá [15] e Carlos Henrique da Silva Zangrado [16], Luis Fernando Silva de Carvalho e Luiz Ronan Neves Koury [17], além de Edilton Meirelles e Leonardo Borges [18]. Reitere-se, uma vez derradeira, que todas as normas de processo do trabalho são omissas quanto à adoção de medidas coercitivas.
Sobre a compatibilidade da norma que estabelece a multa do art. 475-J do CPC com os princípios regentes do processo trabalhista estão a convergir todos os autores citados, inclusive aqueles que advogam a inocorrência de lacuna. Não há dúvida de que os meios inibitórios da mora, em se tratando de débito revestido da natureza de alimentos, tendem aqui a potencializar-se.
Ao cabo desse primeiro período de perplexidade, decerto prevalecerá a tradição de nossos tribunais, qual seja, a de incorporar ao processo laboral a prática de medidas coercitivas olvidadas pela legislação trabalhista, a exemplo do que já sucede em relação à astreinte. E se contribuirá assim para que a execução trabalhista perca, definitivamente, a pecha de ser o "calcanhar de Aquiles" do processo [19] – que é o estigma da inefetividade –, a ela se incorporando a auspiciosa multa do art. 475-J do CPC como modo de constranger o devedor a cumprir a ordem sentencial.
CONCLUSÕES
Os argumentos contrários à aplicação da multa no processo do trabalho têm fundamento em uma só premissa: a de que a CLT não seria omissa quanto ao rito da execução trabalhista. A verdade, porém, é que não se está a cuidar de medida sub-rogatória, mas sim de meio coercitivo que sequer precisa estar previsto com especificidade.
As diferenças entre os procedimentos das execuções civil e trabalhista não contaminam a essência de uma ou outra norma, sendo alusivas somente ao prazo mais elástico que assiste ao devedor civil e à depuração terminológica que acompanhou a fusão dos processos cognitivos e de execução no processo comum. Logo, os dois procedimentos seriam receptivos, estruturalmente, à aplicação de multa cuja incidência estaria condicionada ao não pagamento no prazo de quinze dias ou de quarenta e oito horas, respectivamente.
O que ainda falta na dicção da regra processual trabalhista são as medidas coercitivas, cabendo ao juiz trabalhista adotar aquelas que surgem no processo civil como modo de assegurar a sua efetividade. A cominação de multa diária e agora a multa do art. 475-J do CPC assim se situam.
Sobre a compatibilidade da norma que estabelece a multa do art. 475-J do CPC com os princípios regentes do processo trabalhista, não há dúvida de que os meios inibitórios da mora, em se tratando de débito revestido da natureza de alimentos, tendem aqui a potencializar-se.
Notas
01 Revista LTr 70-10/1180
02 Revista LTr 70-06/669
03 Revista LTr 70-06/670
04In Direito Processual do Trabalho: Reforma e Efetividade. Org. Luciano Athayde Chaves. São Paulo: Ltr, 2007, p. 204
05In Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de Paolo Capitanio. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1998, p. 349.
06 AIRR - 2603/2002-069-02-40
07In Execução Indireta. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 241.
08In Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 22.
09Apud Sérgio Cabral dos Reis, em Direito Processual do Trabalho: Reforma e Efetividade. Org. Luciano Athayde Chaves. São Paulo: LTr, 2007, p. 219.
10Apud Reis, op.cit., p. 219, nota 40.
11 Revista LTr 70-12/1425
12 Revista Eletrônica da Amatra XX n. 11 e obra citada
13 Revista LTr 71-05/547
14 Revista LTr 70-08-923
15 Revista LTr 70-08/983
16 Revista LTr 70-11/1297
17In Direito Processual do Trabalho: Reforma e Efetividade. Op. cit., pp. 265 e 276, respectivamente.
18In Direito Processual do Trabalho: Reforma e Efetividade. Op. cit., p. 289, respectivamente.
19 Conforme mencionou o Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos na Exposição de Motivos da reforma do CPC.