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O caráter absoluto da proibição de tortura no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos

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Agenda 27/06/2023 às 20:36

O CARÁTER ABSOLUTO DA PROIBIÇÃO DE TORTURA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

André Luiz Rocha Pinheiro.1

Resumo: a literatura especializada ainda se encontra bastante dividida quando o tema discutido é a existência ou inexistência de direitos absolutos, seja sob a perspectiva do direito internacional – direitos humanos – seja a partir de uma perspectiva interna – direitos fundamentais. Há quem defenda que os direitos humanos ou fundamentais possuem a essência de princípios jurídicos e que, portanto, cedem, harmonizam-se e flexibilizam para adequar-se ao fator de predominância exigido pelo caso concreto. Entretanto, quando se trata de um direito humano fundamental de profunda essencialidade, torna-se difícil sustentar juridicamente a possibilidade de relativização, porque valores como a proibição da tortura constituem a última barreira entre a humanidade e a completa barbaridade. Tal problemática, muito comum em termos de direitos fundamentais, não é sua exclusividade, porque perante o sistema regional americano de proteção de direitos humanos, já ocorreram julgamentos proferidos pela Corte interamericana de Direitos Humanos, em que foi necessário deixar clara e expressamente o caráter cogente, inderrogável e absoluto da norma que proíbe a prática da tortura. A Corte Interamericana chegou a tais conclusões a partir de interpretação sistemática das normas gerais e especiais que integram o sistema, assim como de uma hermenêutica evolutiva, atenta às alterações na percepção de Direito, e direcionada à preservação intransigente de um mínimo ético universal. Assim, a pesquisa objetivou, a partir de análise das normas do sistema americano e de suas decisões, verificar se é possível a relativização da proibição da tortura.

Palavras-chave: direitos humanos. Tortura. Proibição absoluta.

Abstract: the specialized literature is still divided when the issue under discussion is the existence of absolute rights, whether from the perspective of international law - human rights - or from an internal perspective - fundamental rights. There are those who argue that human or fundamental rights have the essence of legal principles and that, therefore, they yield, harmonize and flex to suit the predominance factor required by the concrete case. However, when it comes to a profound essential human right, it becomes difficult to legally sustain the possibility of relativism, because values such as the prohibition of torture constitute the last barrier between humanity and complete barbarity. This problem, very common in terms of fundamental rights, is not exclusive to them, because before the American regional system for the protection of human rights, there have already been judgments handed down by the Inter-American Court of Human Rights, in which it was necessary to clearly and expressly state the cogent and absolute character of the norm that prohibits the practice of torture. The Inter-American Court reached these conclusions based on the systematic interpretation of the general and special norms that make up the system, as well as on an evolving hermeneutical, attentive to the changes in the perception of Law, and directed to the intransigent preservation of a universal ethical minimum. Therefore, the research aimed, from an analysis of the norms of the American system and its decisions, to verify if it is possible to relativize the prohibition of torture.

Keywords: human rights. Torture. Absolute prohibition.

1. INTRODUÇÃO

Discute-se sobre a existência ou não de direitos absolutos, constituindo-se, a temática, objeto de indagação teórica tanto no campo do direito internacional (direitos humanos) quanto no terreno do ordenamento constitucional dos Estados (direitos fundamentais).

Na doutrina especializada brasileira, há forte corrente que sustenta a inexistência de direitos absolutos, porque se o contrário fosse admitido, dever-se-ia haver uma determinação, prima facie, de direitos com maior importância sobre os demais. Há, também, vozes que sustentam fortemente a existência de direitos absolutos, tal como a proibição da tortura e a proibição da escravidão.

Além disso, a relevância da discussão sobre a possibilidade ou não de se atribuir caráter absoluto está situada em um cenário de conflito entre dois ou mais direitos, já que seria inócua tal discussão em um panorama de normalidade, de inexistência de tensão entre bens jurídicos.

Esta discussão não fica adstrita ao âmbito da ordem jurídica interna dos Estados, mas também reverbera no terreno da proteção internacional dos direitos humanos, notadamente quando se fala em proibição da tortura, porque surgiram, nos últimos anos, doutrinadores estadunidenses defendendo a possibilidade de relativização de tal proibição em casos específicos e extremos, como no caso da permissão de tortura de um terrorista com a finalidade de obter informações aptas a salvar numerosa quantidade de pessoas. A isso convencionou-se denominar de cenário bomba-relógio.

A pesquisa tem como objetivo analisar como o sistema interamericano de proteção de direitos humanos, especialmente com a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), proíbe a prática de tortura, e perquirir as razões pelas quais a classificou como prática intolerável, a indicar impossibilidade de relativização de tal proibição.

Além disso, objetiva-se analisar de que maneira e em quais momentos o sistema interamericano de direitos humanos, notadamente a partir da elaboração de normativa específica destinada à vedação da tortura, atribuiu-lhe exponencial relevância jurídica, a indicar o reforço da impossibilidade de restrição ou relativização de tal vedação.

Por fim, tenciona-se apresentar as razões jurídicas que fundamentam a completa impossibilidade de relativização da proibição da tortura ou a possibilidade de fazê-lo e em quais circunstâncias, levando-se em conta a realidade do contexto normativo do sistema americano de proteção de direitos humanos.

2. O SISTEMA AMERICANO DE DIREITOS HUMANOS2

Na perspectiva do Direito, o pós segunda guerra mundial tem como marca preponderante o empenho internacional para elevar os direitos humanos a uma perspectiva global, assim como a de viabilizar a construção de uma estrutura normativa que efetivamente funcionasse para a sua proteção.

Foi no fim da segunda guerra que a ética e os valores iniciaram o trajeto de regresso ao Direito, inicialmente na forma de um ensaio de regresso ao Direito natural, depois na roupagem mais sofisticada do pós-positivismo. Como corolário, a contar da segunda metade do século XX, o direito não mais se limitava ao positivismo jurídico. A aproximação praticamente absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não estavam mais adequadas ao estágio do processo de civilização e às ambições que patrocinavam a causa da humanidade.3

Nesse contexto, criou-se a Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948, contemporaneamente à aprovação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,4 que foi o primeiro documento internacional de direitos humanos com caráter geral. Tal diploma integra o complexo sistema normativo de proteção de direitos humanos, ao lado da i) Carta da Organização dos Estados Americanos (1948); ii) Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) - Pacto de San José da Costa Rica; iii) Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) - Protocolo de San Salvador e iv) pelo Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990) - Protocolo de Assunção.

O sistema americano de direitos humanos atua paralelamente e de forma concomitante com o sistema global e demais sistemas regionais, ou seja, não há exclusão mútua ou necessidade de precedência de atuação, seja de um sistema, seja de outro sistema, porquanto eles são complementares na tarefa de proteção dos direitos humanos. Porém, para a finalidade do presente estudo, dar-se-á enfoque precisamente no que diz respeito à proibição da tortura no âmbito do sistema americano de proteção de direitos humanos.

Reforça este entendimento, a lição da professora Flávia Piovesan:

“Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nessa ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima”.5

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH foi uma das principais instituições previstas pela Carta da OEA, cujo objetivo é a proteção e promoção dos direitos humanos. Localizada em Washington (EUA), é integrada por especialistas independentes, todos eleitos para um mandato de quatro anos. Em suas sessões, a Comissão ouve as denúncias de abusos contra os direitos humanos. A principal tarefa da Comissão de Direitos Humanos é ouvir e supervisionar as petições que são apresentadas contra algum Estado-membro da OEA denunciando abusos contra os direitos humanos.

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Indivíduos, grupos ou ONG’s legalmente reconhecidas em pelo menos um Estado-membro pode apresentar uma petição, pela própria vítima ou terceiro, com ou sem o conhecimento da vítima e Estados que não integram Convenção não se beneficiam da cláusula que permite a construção de uma solução amigável. Em tais casos, a Comissão analisará os fatos e decidirá, necessariamente, o mérito da questão em sede de decisão final (em regra, uma resolução complexa) em que constarão indicações, recomendações e seus respectivos prazos para a implementação e comprovação de seu cumprimento. As decisões da Comissão não possuem foro legal.6

Estados que não fazem parte da Convenção não estão sujeitos à cláusula das soluções amigáveis. Nessa situação, a Comissão analisará os fatos apresentados e determinará, então, os méritos da petição, adotando uma decisão final (usualmente uma resolução extensa) com recomendações e prazos. O Regulamento determina que a decisão pode ser publicada se o Estado não adotar as medidas recomendadas pela Comissão dentro do prazo estipulado. A Comissão pode recomendar indenizações para as vítimas, mas não tem o poder para adjudicar qualquer indenização. As decisões da Comissão não possuem foro legal.7

É possível à Comissão investigar e remeter relatórios sobre violação de direitos humanos em qualquer dos membros da OEA, tomando por ponto de partida os relatórios que recebe de indivíduos ou de Organizações Não Governamentais, que constituem importante vetor de monitoramento da real situação dos direitos humanos. A Comissão encaminha relatório anual para a Assembléia-Geral contendo dados sobre a resolução de casos particulares, sobre a situação dos direitos humanos nos Estados e debates sobre necessidades reais para a melhor promoção dos direitos humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos surgiu em 1978 com a entrada em vigor da Convenção Americana. Conta com sete juízes nomeados e eleitos para um mandato de seis anos, pelos integrantes da Convenção Americana, admitida tão exclusivamente uma reeleição. A Corte tem está sediada em San José (Costa Rica) e possui jurisdição limitada, podendo somente atuar nos casos em que o Estado: i) tenha ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos; ii) tenha aceito a jurisdição facultativa da Corte ; iii) caso a Comissão Interamericana tenha completado sua investigação e iv) quando o caso foi apresentado à Corte ou pela Comissão ou pelo Estado envolvido no caso dentro de três meses após a promulgação do relatório da Comissão.8

Não é possível que um indivíduo ou peticionário leve, de maneira independentemente, o caso a ser considerado pela Corte. Se a Comissão levar o caso, notificará o peticionário original. Neste ponto, o peticionário ou um advogado tem a oportunidade de solicitar as medidas necessárias, incluindo proteção para as testemunhas e cuidados com as provas.

A ritualística envolve anto aos escritos quanto orais, a depender das circunstâncias. Logo de início, são ofertados memoriais escritos, incluindo um da defesa, que podem se fazer acompanhar de especificidades acerca de como se pretendem provar os fatos ou de como as provas serão ofertadas. No caso de existirem questões de alta complexidade, pode ser requerida a ajuda de um amigo da corte e as audiências são, como regra, abertas ao público, salvo as hipóteses em que seja necessária a sua restrição.9

A fase de deliberação da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorrem de maneira secreta e o resultado (julgamentos e opiniões) são publicados de maneira ampla. Além do mais, caso a Corte considere que um direito tenha sido violado, determinará a retificação da impropriedade violadora do direito, além de ser juridicamente possível determinar também o pagamento de indenização à vítima.

3. CONCEITO DE TORTURA PARA O SISTEMA AMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou acerca do conteúdo semântico do art. 5.2, da Convenção Americana, para firmar balizas acerca do alcance da expressão tortura, já que o diploma normativo não tratou de conceituá-la.

Sobre os elementos caracterizadores da tortura, assim restou assentado:

“121. para definir o que à luz do artigo 5.2 da Convenção Americana deve ser entendido como ‘tortura’, de acordo com a jurisprudência da Corte, um ato constitutivo de tortura está envolvido quando os maus-tratos: a) são intencionais; b) causem sofrimento físico ou mental grave, e c) sejam cometidos para qualquer fim ou finalidade. Da mesma forma, reconheceu-se que as ameaças e o perigo real de submeter uma pessoa a lesões físicas produzem, em certas circunstâncias, tal grau de angústia moral que pode ser considerado tortura psicológica. (Corte IDH. Caso Ruano Torres e outros vs. El Salvador). Tradução livre.” (grifos do autor).10

Portanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos adotou concepção ampla ao estabelecer o balizamento para a definição da prática da tortura, admitindo que ela seja configurada quando os maus-tratos intencionais, sejam eles de ordem física ou mental grave, sejam cometidos para qualquer fim ou finalidade. Assim, não se exige um direcionamento específico, um especial fim de agir para a configuração da tortura, segundo a perspectiva do sistema americano de proteção de direitos humanos.

4. A PERSPECTIVA DA PROIBIÇÃO DA TORTURA NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DE 1969

4.1. Linhas Gerais das Normas da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também denominada Pacto de San José da Costa Rica, foi aprovada em 22 de novembro de 1969 e instituiu o que se conhece por Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), integrado por dois órgãos principais: i) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a ii) Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O documento reafirma o propósito de consolidar no continente americano um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do ser humano.

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A Parte I da Convenção, que trata dos deveres dos estados e direitos protegidos, enumera (Capítulo I, Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos), os deveres expressamente aplicáveis aos signatários, como se extrai do trecho a seguir reproduzido:

“1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.”11 (grifos do autor).

A mensagem transmitida pela norma, de que sua incidência possui caráter notadamente cogente, pode ser reforçada com a leitura conjunta do artigo acima reproduzido e do artigo 2, do mesmo diploma (Dever de adotar disposições de direito interno), já que, de fato, tal determinação desestimula a assinatura do pacto de forma oportunista, com único propósito de aderir a acordos que se exauram no compromisso e deixem de lado sua efetiva implementação e obtenção de resultados práticos. Conceber a possibilidade de subscrição da convenção americana sem lhe atribuir caráter cogente permitiria que Estados a assinassem, ganhando prestígio perante a comunidade internacional e, de outro lado, não se apressando para ofertar à comunidade local os direitos e garantias nela previstos.

Caso os direitos e liberdades mencionados no artigo 1 (conforme disposto no artigo 2) não estiverem previstos em leis ou instrumentos de outra natureza (no sentido de que sejam respeitados e garantidos), os Estados Partes comprometem-se a adotá-los, conforme suas normas constitucionais e com as disposições da Convenção, medidas legislativas outras que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

A soma de dispositivos que tratam do caráter cogente da norma denota que os Estados signatários dele não podem se desincumbir, salvo as exceções estritamente prevista no próprio documento, como no caso de seu artigo 75, que assinala só ser possível a aposição de reserva pelos Estados, caso obedecidas as disposições da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que foi assinada em 23 de maio de 1969.

A Convenção de Viena Esta dispõe, no artigo 19, que um Estado pode, ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, formular uma reserva, exceto quando i) haja proibição no texto do próprio tratado, ii) quando haja previsão de matéria específica sobre as quais se possa apor reservas e aquela pretendida pelo Estado não esteja incluída no rol e iii) quando não incluídas nos casos anteriores (i e ii), a reserva seja incompatível com o objeto e a finalidade do tratado.12

A convenção americana, no tocante à tortura (Artigo 5º – Direito à integridade pessoal) dispõe expressamente que:

“1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.” (grifos do autor).

Portanto, interpretados de maneira sistemática os artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, observa-se, em primeiro lugar, que suas normas possuem caráter obrigatório, o que se convencionou de chamar, sobretudo no direito internacional, de jus cogens. Além do mais, verifica-se que decorre da cogência normativa a diretriz para que os Estados Partes implementem, conciliados os ditames constitucionais e convencionais, medidas constitucionais ou de outra natureza para que sejam efetivos os direitos e liberdade que estão assegurados na convenção.

A propósito desta afirmação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já assentou, em um de seus julgamentos:

192. A Corte entende que, na própria forma como esses instrumentos são redigidos, a configuração da tortura não se limita apenas à sua prática por funcionários públicos, nem que a responsabilidade do Estado só pode ser gerada por ação direta de seus agentes; também prevê instâncias de instigação, consentimento, aquiescência e omissão quando poderiam impedir tais atos. 193. Além disso, é necessário destacar que, no marco da interpretação do artigo 5.2 da Convenção, a Corte entendeu que tanto a interpretação sistemática quanto a evolutiva desempenham um papel crucial na manutenção do efeito útil da proibição da tortura, de acordo com as atuais condições de vida nas sociedades de nosso continente. [Corte IDH. Caso López Soto e outros vs. Venezuela. Tradução livre.]13

5. A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA, DE 1985

Dezesseis anos após a Convenção Americana de Direitos Humanos, foi elaborada a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. O documento reafirma expressamente que atos de tortura (ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes) constituem violação da dignidade humana e negação dos princípios da Carta da OEA e na Carta das Nações Unidas, assim como da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e da Declaração Universal dos Direitos do Homem.14

A referida convenção é um marco absolutamente importante porque fixa, de modo ainda mais evidente, a impossibilidade de utilização de argumentos a fim de flexibilizar a proibição da tortura. Conforme se lê no seu artigo 5, a norma utiliza-se, quando dispõe que não é admissível a alegação de flexibilização da proibição, a expressão como, de forma que pretendeu consignar rol exemplificativo, mas cuja diretriz se faz bastante clara, para fins de interpretação e aplicação prática. Além do mais, socorreu-se da expressão ou outras, o que pode ser entendido como uma cláusula de abertura na norma internacional, justamente para que não se deixe espaço algum para a tentativa de ponderação da vedação. Assim consta no referido dispositivo:

“Artigo 5

Não se invocará nem admitirá como justificativa do delito de tortura a existência de circunstâncias tais como o estado de guerra, a ameaça de guerra, o estado de sítio ou de emergência, a comoção ou conflito interno, a suspensão das garantias constitucionais, a instabilidade política interna, ou outras emergências ou calamidades públicas.

Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura.” (grifos do autor).

Note-se que o artigo 5, em termos práticos, enuncia que a vedação não pode ser excepcionada nem sob condições extremas (guerra e sua ameaça, estado de sítio ou de emergência, comoção ou conflito interno, suspensão de garantias constitucionais, instabilidade política interna ou outras emergências ou calamidades), a indicar que se mesmo em tais condições não se pode torturar, tampouco em situações menos drásticas se pode fazê-la. Tal afirmação tem por escopo sobretudo rechaçar eventuais argumentações fundamentadas na interpretação literal do texto normativo, que aqui não cabe.

A adequada compreensão sobre o dispositivo requer o alargamento ou extensão do sentido da norma até a extremidade final. Como menciona Bruno Moura, um clássico exemplo escolar que pode ser rememorado, é a proibição de levar consigo um quadrúpede em determinados recintos. A razão de tal proibição encontra-se nos transtornos que os grandes animais podem causar. Contudo, caso alguém pretenda ingressar no recinto com um animal bípede, também será impedido pela norma, porque embora ela não tenha feito qualquer menção a animais bípedes, são por ela alcançados já que o ponto base de avaliação (tertium comparationis) indica que ambos se tornam comparáveis e semelhantes: do ponto de vista do aborrecimento ou incômodo, animais quadrúpedes e bípedes são iguais.15

Além do mais, devem ser considerados, para uma correta compreensão do instituto, os fins almejados pela norma, levando-se em conta, ainda, o período histórico em que foi produzida, elementos sistemáticos e teleológicos.

Por isso mesmo, o seu artigo 21 dispõe que os Estados Partes poderão apor reservas (na aprovação, assinatura, ratificação ou adesão), desde que não sejam incompatíveis com o objeto e o fim da convenção e desde que versem sobre uma ou mais disposições específicas.16 Assim, a aposição de reservas ao texto do documento encontra limite dado pela própria convenção: o de que as ressalvas não se incompatibilizem com o objeto e o fim da norma.

É que a aposição de reservas indiscriminadas poderia conduzir a um cenário de indesejável anacronia, bastando imaginar a hipótese de que um Estado subscrevesse a convenção interamericana para combater e prevenir a tortura, mas que apusesse, mais adiante, uma ressalva no sentido de que seria permitida a tortura nos casos excepcionais. Nesse hipotético cenário, além da flagrante desarmonia com o documento internacional, não seria possível obter a segurança jurídica que se espera das avenças internacionais, assim como poder-se-ia imaginar um cenário em que Estados utilizassem a ratificação do documento de forma tão somente promocional perante a comunidade internacional e perante seus cidadãos.

6. O CARÁTER ABSOLUTO DA PROIBIÇÃO DA TORTURA NO SISTEMA AMERICANO DE PROTEÇÃO DE DIREITO HUMANOS

Como mencionado na introdução do presente estudo, há inclinação da doutrina especializada a defender a impossibilidade de existência de direitos absolutos, isso porque em um determinado ordenamento jurídico os direitos são harmônicos, não excludentes e não possuem uma relação de predileção do legislador quando da sua positivação. Assim, por exemplo, sequer a vida, tida como bem mais valioso, seria absoluta, pois em muitos casos a norma a flexibiliza para fins de permitir a eliminação da vida em caso de defesa legítima.17

Entretanto, é necessário compreender que a interpretação sobre a incidência de direitos humanos ou fundamentais passa por sistemática própria, de maneira que não mais é suficiente o singelo exercício de subsunção do fato à norma e que, segundo a evolução da qual decorreu o direito internacional de proteção dos direitos humanos, em período posterior ao positivismo jurídico, os valores (também compreendidos como princípios), o mínimo ético – enquanto valor coletivo – aproximou-se do Direito e possui normatividade.

Robert Alexy, em Teoria dos Direitos Fundamentais, esclarece que a razão pela qual se pressupõe a existência de um direito absoluto não é exatamente pela disposição normativa em si (ao se referir a trecho da Constituição da Alemanha), mas o fato de a norma (in casu, a dignidade da pessoa humana) ser tratada em parte como regra e em parte como princípio. Ademais, no caso da dignidade, há um amplo conjunto de condições de precedência que lhe confere elevadíssimo grau de certeza de que, sob certas condições, a dignidade da pessoa humana prevalecerá em relação aos demais direitos.18

Nesse sentido, sua natureza de regra pode ser notada quando não se indaga se ela prevalece ou não sobre outras normas, mas tão exclusivamente se ela foi violada. Tudo depende da definição das circunstâncias nas quais o direito pode ser considerado violado e certamente, para isso, não há uma resposta geral, devendo-se considerar sempre o caso concreto. Assim, cria-se uma ampla margem de apreciação para essa definição nos casos concretos, em que é possível o sopesamento.19

Seguindo na mesma direção da referida doutrina, é possível dizer que existem duas normas para o “direito de não ser torturado”, sendo uma delas uma regra e a outra um princípio. A relação de preferência do princípio da vedação da tortura em face de outros determina o conteúdo da regra vedação da tortura, não sendo o princípio, em si, absoluto, mas sim a regra.20

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já proferiu julgamento em que afirmou expressamente o caráter absoluto da proibição da tortura. O caso se referia a uma série de violações ao devido processo legal na esfera processual penal contra Tirso Román Valenzuela Ávila (também “senhor Valenzuela Ávila” ou “senhor Valenzuela”) pela prática de homicídio que culminou em sua condenação a pena de morte com base na figura da periculosidade, assim como uma série de torturas perpetradas no momento de sua prisão, após ser recapturado após sua primeira fuga da prisão em junho de 1998 (assim como em 2001), além de sua suposta execução extrajudicial.

Disse a Corte, invocando a Convenção Americana de Proteção de Direitos Humanos:

“180. O artigo 5.1 da Convenção estabelece em termos gerais o direito à integridade pessoal, tanto física como mental e moral. Por sua vez, o artigo 5.2 estabelece, mais especificamente, a proibição absoluta de submeter alguém a tortura ou tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante. Da mesma forma, foi reconhecido que a proibição absoluta da tortura, tanto física como psicológica, pertence hoje ao domínio do jus cogens internacional. (Corte IDH. Caso Venezuela Ávila vs. Guatemala. Tradução livre).”21 (grifos do autor)

No caso Tibi vs. Equador,22 de igual maneira, a Corte Interamericana registrou que a proibição de tortura física ou psicológica é absoluta, assinalando que o regime jurídico internacional que veda absolutamente todas as formas de tortura (físicas e psicológicas), e está no âmbito do jus cogens. Além disso, esclareceu que a vedação da tortura é total e inderrogável, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como guerra, ameaça de guerra, combate ao terrorismo e quaisquer outros crimes, estado de sítio ou emergência, comoção ou conflito interno, suspensão de garantias constitucionais, instabilidade política interna ou outras emergências ou calamidades públicas.

Também são acatadas pela Corte Interamericana (tal como frisado no caso Barrios Altos vs. Peru)23 as argumentações que fragilizem a proibição da tortura, tais como as disposições de anistia, prescrição e a previsão de excludentes de responsabilidade que tenham por finalidade impedir a investigação e punição de autores de graves violações de direitos humanos, pois violam direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. As leis de autoanistia deixam as vítimas ainda mais vulneráveis e perpetuam a impunidade, razão pela qual são completamente incompatíveis com o espírito da Convenção Americana.

A Corte Interamericana confirmou, no julgamento do caso Cantoral Benavides vs. Peru,24 que houve a violação dos artigos 8.2.g e 8.3 da Convenção Americana, porque Luis Alberto Cantoral Benavides foi submetido a tortura para quebrar sua resistência mental e forçá-lo a se incriminar ou confessar determinada conduta criminosa.

Assim, em todos os casos que foram objeto de julgamento no âmbito do sistema americano de proteção de direitos humanos, especialmente perante a Corte interamericana de Direitos Humanos, não houve relativização da norma que proíbe a nefasta prática de tortura, que é incompatível com o padrão de civilização obtido pela comunidade internacional atual.

Não se ignora que há vozes, no âmbito da doutrina, que defendem a excepcional prática da tortura em casos extremos. O professor Flávio Martins discorre sobre a temática, conforme a seguir:

“Pois bem, nos Estados Unidos admitia-se até recentemente a técnica de interrogatório chamada waterboarding, em casos extremos. No mesmo cenário, a Alta Corte de Justiça de Israel decidiu que não constitui tortura a colocação de sacos na cabeça durante o interrogatório de presos acusados de terrorismo. Nos Estados Unidos, é majoritária a Teoria da Bomba-Relógio (Ticking-Time Bomb Scenario ou Ticking-Bomb Scenario.

(…)

O princípio visa relativizar a proibição da tortura. Segundo essa teoria, na iminência de explosões que ceifarão a vida de milhões, a dignidade da pessoa humana do terrorista poderá ser violada, para se descobrir o paradeiro dos objetos explosivos. Segundo a doutrina norte-americana, a possibilidade da admissão da tortura somente seria colocada sobre a mesa se houvesse uma extrema probabilidade de que o torturador possuísse informações valiosas e houvesse o risco de um ataque de significativas proporções, ceifando a vida de pessoas inocentes”.25

Entretanto, com a finalidade de desconstruir o argumento da dourina norte americana (Bomba-Relógio), a Associação para a Prevenção da Tortura – The Association for the Prevention of Torture (APT), entidade não governamental existente desde o ano de 1977 e situada em Genebra, veiculou um trabalho denominado “Desativando o Cenário da Bomba-Relógio” (Defusion the Ticking-Bomb Scenario), em que se posiciona contrariamente a qualquer exceção jurídica criada para relativizar a proibição da tortura. Segundo a entidade, a exceção da Bomba-Relógio nos conduziria inevitavelmente a uma ladeira escorregadia, em que a tortura seria arbitrária e jamais punida, ou disseminada e sistemática.26

7. CONCLUSÕES

Portanto, conforme se verificou a partir das características do sistema regional americano de proteção de direitos humanos, suas normas (especialmente a convenção americana e a convenção para prevenir e punir a tortura) e algumas decisões tomadas em julgamentos proferidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevalece que a proibição da tortura encontra-se no âmbito do direito cogente, isto é, de observância obrigatória e inderrogável.

As premissas que conduziram à referida conclusão foram as de que o texto das normas do sistema americano de proteção de direitos humanos dispõem de forma expressa que a vedação da tortura não cederá em nenhuma hipótese, ainda que considerada extremamente grave, tal como uma guerra ou uma calamidade. Aliás, tais normas, além de deixar claras as hipóteses em que jamais seria possível a prática da tortura, ainda optaram por incluir uma cláusula de abertura, a permitir que hipóteses não expressamente consignadas pudessem ser alcançadas (proibidas) de maneira eficaz.

A escolha pela elevação da proibição da tortura no sistema americano de proteção de direitos humanos se deve, em grande parte, ao período do pós guerra que marcou seu surgimento, já que a comunidade internacional, em um movimento que tentava criar bases para banir práticas absolutamente inaceitáveis, implementadas pelos nazistas, entendeu que a tortura é uma das ações que mais agridem a dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva física e psicológica, não havendo qualquer outro bem jurídico que possa a ela se sobrepor.

Conclui-se, ainda, que é insuficiente o fundamento que tenta justificar a relativização da proibição da tortura no cenário da bomba-relógio, porque em todos os casos, fala-se em “possibilidade” de que a tortura imposta a determinado indivíduo possa resultar em êxito que favorecerá exponencial número de pessoas, mas tal indicação não possui sustentação científica ou comprovação prática de êxito. Ao contrário, constitui perigoso e irreversível caminho para a barbárie desmedida e descontrolada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
André Luiz Rocha Pinheiro

Exerce atualmente o cargo de Agente Técnico Jurídico no Ministério Público do Estado do Amazonas;<br>Ex-integrante da Comissão de Direito Digital da OAB/AM;<br>Especialista em Direito Processual Civil;<br>Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Católica Argentina;

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