Introdução
A partilha de poder entre governo central e governos subnacionais na ação estatal relativa às políticas públicas não é estática e tampouco “pacífica”. O arranjo federativo brasileiro caminha num contínuo esforço entre relações de competição e de cooperação, em que há projetos políticos usualmente divergentes e em disputa. Esta configuração conjunta entre entes gera tensões e dilemas sobre a obrigação do Estado na garantia do direito de acesso a políticas públicas. É tomada como norma constitucional a universalização das políticas sociais e um dos maiores desafios para tanto se apresenta no problema concernente às relações intergovernamentais. No entanto, o Brasil tem realizado tentativas importantes e de grande vulto em algumas áreas considerando a estrutura desenhada constitucionalmente em 1988, como nas áreas da Saúde (com o SUS - Sistema Único de Saúde) e Assistência Social (com o SUAS - Sistema Único de Assistência Social), através de arranjos institucionais voltados para promover a integração de esforços entre União, Governos Estaduais e Municipais e superando gargalos para a execução dessas políticas. Mesmo com todos os desafios postos, o federalismo brasileiro se desenvolve através da coordenação e cooperação intergovernamentais, sobretudo em áreas como as mencionadas, e o acesso universal a determinadas políticas públicas e seus trunfos são, especialmente, aliviar as tensões federais causadas principalmente pelas graves desigualdades sociais e regionais do país, com vias em permitir que os entes federativos cumpram suas obrigações constitucionais, suas responsabilidades e propósitos comuns.
Federalismo brasileiro e descentralização
Até o final da década de 1980, o paradigma da gestão pública no Brasil é notadamente baseado na centralização. Arretche (2010) em “Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos?” chama de “bismackianas” as características do centralismo no federalismo brasileiro. Como bem explica a autora, o foco no controle da União sob as políticas é reforçado pelas políticas sociais centralizantes dachamada “Era Vargas” mas, segundo Arretche (2010), já encontrava seu gênese nas tendências autoritárias das elites e na própria formação da ideia de um estado nacional brasileiro:
“As políticas atuais de redução das desigualdades territoriais são o resultado da combinação desta trajetória centralizadora com reformas fiscais e políticas aprovadas no período democrático recente, desde a Constituição de 1988 até nossos dias. Os traços bismarckianos das políticas sociais da era Vargas e do regime militar foram compensados por políticas desmercadorizantes: a universalização da saúde e da educação, bem como o componente não contributivo da previdência social. Na mesma direção, a regulamentação e supervisão federais sobre as políticas dos governos subnacionais foi expandida a partir dos anos 1990, comprometendo estes últimos a dar prioridade aos gastos com educação e saúde, bem como com a disciplina fiscal, entre outras medidas. Em outras palavras, uma sólida tradição de regulação federal foi, mais uma vez, empregada para implementar políticas de compensação das desigualdades sociais e territoriais.” (ARRETCHE, 2010)
A Constituição Federal de 1988 demonstra, em seu escopo, traços centralizantes inclusive quando trata das competências dos poderes. A despeito das demandas difusas de um Poder Legislativo que traz consigo pleitos de parlamentares eleitos em seus respectivos territórios, o Poder Executivo centralizaria, utilizando as palavras de Limongi (2008), parte do processo decisório na busca pela “eficiência”.
“O texto constitucional foi escrito sob um amplo consenso de que o sucesso da democracia dependia da capacidade governo dar respostas efetivas e rápidas às crescentes demandas postas aos governos por sociedades modernas e complexas. A modernização institucional foi o leitmotiv sobre a qual se deu a definição das relações entre o Executivo e o Legislativo. O processo decisório precisava ser dotado de eficiência. Protelar decisões seria a forma de alimentar crises, de não dar as respostas demandadas pela sociedade. Em sendo assim, o principal obstáculo a ser transposto era o conservadorismo e a morosidade característicos do Poder Legislativo. Para tanto, era necessário fortalecer o Poder Executivo evitando que este pudesse ser paralisado pela inação do Legislativo. Mais do que isto, era preciso dotar o Executivo de “vias de escape” sempre que uma possível divergência entre os poderes pudesse redundar em confronto ou inação.” (p.3)
O centralismo jurisdicional, como é chamada a capacidade legislativa do governo central, é de fundamental interesse para análise das relações intergovernamentais no federalismo, uma vez que afeta diretamente a execução de políticas públicas a nível subnacional. A União no caso brasileiro desempenha um papel regulador publicando normas que são consistentemente reguladoras de políticas nos níveis subnacionais. A despeito da grande dispersão territorial no Brasil e da presença dos governos estaduais no sistema político, o que seria indutor de um sistema de poder compartilhado pelo país, a literatura observa que a agenda do governo central orienta o comportamento dos governos locais. A Constituição Federal de 1988 ampliou de maneira notável a quantidade das matérias constitucionalizadas e destinou à legislação complementar a normatização de muitos assuntos. Também não colocou muitos custos na possibilidade de emendas ao mesmo tempo que fez crescer matérias de competência legislativa privativa da União. Consequentemente, os poderes Executivo e Legislativo nacionais concentraram as determinações das preferências futuras sobre políticas públicas, com o legislativo competente para desenhar o escopo, a forma de implementação e a forma de ação pública, suas fontes de financiamento e os mecanismos de controle e monitoramento. (LIMONGI, 2008). A Carta Magna de 88 estabeleceu os municípios como entes autônomos e federado, além de definir suas competências administrativas e legais e a origem dos seus recursos fiscais. No que tange a competência legislativa, aos estados coube legislar residualmente e aos municípios reger sobre “assuntos de interesse local”. Porém, dada a amplitude legislativa nacional, os temas onde entes subnacionais legislam são restritos. (SOARES e MACHADO, 2020):
“A CF/88 brasileira é extensa e muito detalhada, seu emendamento não é tão custoso e há espaço para ampla legislação complementar e ordinária, inclusive na regulamentação das políticas sociais. Também não há maiores obstáculos para o governo federal brasileiro alterar o status quo das políticas sociais, dado que a Câmara Alta e Senado atuam, predominante, pela lógica partidária e tendem a cooperar com o Executivo nacional quando fazem parte de uma coalizão partidária majoritária de governo. Vetos federativos não têm ocorrido nem mesmo em matérias constitucionais que contrariam interesses subnacionais.” (SOARES & MACHADO, 2020, p.7)
Arretche (2010) chama atenção para o fato de que é necessário diferenciar a dimensão de autoridade sobre a formulação de políticas públicas, da dimensão de autoridade sobre a execução dessas políticas, para que se faça uma análise mais aprofundada dessas relações:
“Distinguir quem formula de quem executa permite inferir que, no caso brasileiro, embora os governos subnacionais tenham um papel importante – e até mesmo pouco usual em termos comparados – no gasto público e na provisão de serviços públicos, suas decisões de arrecadação tributária, alocação de gasto e execução de políticas públicas são largamente afetadas pela regulação federal. ” (ARRETCHE, 2010, p. 589).
A autora discorre, então, sobre a ideia de que é possível descentralizar a execução de políticas conservando relativa concentração de poder, inclusive em um Estado com um pacto federativo como o brasileiro. Uma autoridade central, balizada por exemplo na ideia de “preservar” os cidadãos nacionais de possíveis arbitrariedades das elites locais, ou mesmo na própria noção de identidade nacional em si, justifica seu poder de legislar nacionalmente para formular políticas e programas, assumindo no governo federal as ferramentas para coordenar as políticas públicas: “a regulação federal parece ser uma condição para ‘amarrar’ subunidades independentes em torno de um dado objetivo nacional” (2010, p. 611)”. Segundo a autora os estudiosos que debatem o atual modelo federativo do Estado brasileiro têm tido como principais objetos de análise a autonomia dos governos subnacionais e as regras eleitorais. Porém, Arretche acredita que tais características existentes no Estado e no sistema político brasileiros têm recebido muito peso nas interpretações acerca de seu pacto federativo na literatura que trata o tema. Ela argumenta que a importância dessas características é superestimada porque ignoraria dois aspectos que acredita ser centrais: “o papel das desigualdades regionais na escolha da fórmula federativa adotada no Brasil, (...) e a importância das relações entre a União e os governos subnacionais sobre seu funcionamento”. Portanto, para explicar com mais precisão a motivação do Brasil para a adoção da fórmula federal em questão e suas consequências, Arretche argumenta que é necessário incluir dimensões de desigualdade territorial e relações federativas centro-local na análise. Sobre essas relações federativas no caso do Brasil Arretche (2010) assinala que as prioridades e decisões por determinadas políticas a nível dos governos dos entes subnacionais (no caso brasileiro, Estados e Municípios) podem ser diretamente influenciadas por incentivos do governo central, fazendo com que, mesmo descentralizando a implementação das políticas públicas, é possível manter a concentração de poder.
Além disso, a autora ressalta que, mesmo em estados federais, é possível descentralizar a implementação de políticas com concentração de poder reforçando a ideia de que é necessário examinar o impacto das regulamentações federais na tomada de decisões dos governos a nível subnacional. Sobre a necessidade de uma análise multifatorial na busca pela compreensão das relações entre governo central e governos subnacionais, ao tratar dos modelos norte-americano e britânico Greer (2010) afirma que utilizar a descentralização como única variável não é a forma mais razoável de análise por se tratar de classificação muito ampla. Uma abordagem analítica mais interessante seria examinar a estrutura de veto, players no estado central, as relações intergovernamentais e as finanças intergovernamentais. Esses elementos são mais eficazes quando o objetivo é compreender a relação entre descentralização e a robustez do Estado de bem-estar social. De acordo o autor, estados mais centralizados tenderiam a apresentar Welfare State mais robustos e a desintegração dos estados de bem-estar nos Estados Unidos se deve em grande parte ao fato de o governo federal ter uma riqueza de poderes de veto internos, o que gera grandes diferenças interestaduais e média geral relativamente baixa. Em contraste, o disciplinado controle central das finanças do Reino Unido se manifestará em maiores determinações das organizações centrais, em detrimento da tomada de decisão local no que tange às políticas públicas sociais.
Para Litvack, Ahmad e Bird (1998), a definição de descentralização fiscal envolve estipular e atribuir impostos, responsabilidades por taxas específicas e formas de corrigir eventuais desequilíbrios verticais. No que diz respeito à descentralização política, trata-se do nível em que as instituições políticas mapeiam os múltiplos interesses e os traduzem em políticas públicas, enquanto a descentralização administrativa refere-se às maneiras pelas quais as instituições políticas materializam as decisões políticas em alocação e distribuição de recursos por meio de ações fiscais e regulatórias. Importante notar a possibilidade ampla de emprego do conceito de descentralização e suas implicações. É relevante considerar a distinção entre a transferência de responsabilidades e o grau de autonomia dos governos em todos os níveis sob diferentes meios fiscais, políticos e administrativos. Tal distinção tem relação com os conceitos de policy-making e policy decision-making, sendo a descentralização que diz respeito à atribuição da responsabilidade de execução de determinada política consistindo no policy-making; ao passo que a descentralização de autoridade, permitindo processos decisórios autônomos na implementação de políticas sob responsabilidade do ente subnacional, o policy decision-making. Também vale a pena notar que, segundo os autores, há a possibilidade de desconexão entre policy-making e policy decision-making, pois pode-se considerar cenários onde ao mesmo tempo em que existem altos níveis de descentralização fiscal, pode haver também capacidades limitadas para o governo local através de normativas nacionais restritivas, combinando assim a execução de funções descentralizadas com um forte poder central de regulação. Portanto, quando comparados países e, por consequência, arranjos federativos distintos, diferentes reações podem ser resultado de diferentes estruturas institucionais nos respectivos estados nacionais. A teoria dos “veto points” é uma abordagem muito adotada pela literatura para explicar as diferenças nas políticas públicas que afirma que os veto points são instituições necessárias para a criação de leis. Essas instituições podem impedir uma mudança de política e, assim, estabilizar o status quo se os partidos governantes não tiverem maioria nessas arenas (IMMERGUT, 2010). Quando tratamos das políticas de turismo como estas têm, em última instância, o objetivo da ação do governo em planejar e coordenar o fluxo turístico e o desenvolvimento promovido pela atividade, quase que em todo destino de interesse, as instituições políticas devem ser de particular importância para explicar as diferenças no tipo de planejamento adotado.
Arretche (2010) desenvolve o debate acerca da regulação federal tratando características como o conjunto da legislação federal sobre as políticas executadas pelas unidades subnacionais, a autoridade na supervisão dessas políticas e a função de redistribuição de recursos entre os entes federativos, ou seja, é fundamental considerar a regulamentação e a supervisão central sobre as políticas executadas pelos governos estaduais e municipais. “É, portanto, o emprego dos recursos institucionais da União para regular a execução descentralizada de uma dada política que a converte em uma política regulada” (2010, p. 604). Categorizando as políticas descentralizadas em reguladas e não-reguladas, a autora define como reguladas: aquelas nas quais a legislação e a supervisão federais limitam a autonomia decisória dos governos subnacionais, estabelecendo patamares de gasto e modalidades de execução das políticas; E não reguladas como: aquelas nas quais a execução das políticas (policy-making) está associada à autonomia para tomar decisões (policy decision-making) (p. 603). Com base nessa classificação, analisa de forma comparada políticas públicas de educação e saúde, consideradas regulamentadas, com políticas de desenvolvimento urbano, como é o caso das políticas públicas de turismo aqui tratadas (bem como outras políticas de infraestrutura urbana, habitação e transporte público), consideradas não regulamentadas. No Brasil, tais serviços são, principalmente, de responsabilidade de execução pelos governos municipais e a autora observa que a desigualdade entre municípios, quando se trata do gasto nas políticas reguladas, é significativamente menor do que no caso de políticas não reguladas. As políticas reguladas teriam, portanto, precedência na alocação do gasto municipal, enquanto que as políticas não reguladas não compõe preferência de gasto.
Descentralização e políticas públicas de turismo no Brasil
As políticas públicas de turismo no Brasil costumam considerar, principalmente, investimentos na malha urbana, infraestrutura de transportes, rede hoteleira tradicional e conservação de patrimônios localizados em destinos já consolidados. Por essa aproximação com políticas inerentemente locais, a execução dessas políticas se torna uma atribuição mais distante da União e muito mais próxima de iniciativas municipalizadas, mesmo havendo Planos e Programas Federais de turismo. Tais Planos Nacionais de Turismo preveem abrangência em todo o território nacional e em seu escopo, normalmente, apresentam diretrizes gerais com notada dependência de estados e municípios na alocação de recursos federais ao mesmo tempo em que mantém sua execução algo descentralizada. O Ministério do Turismo, criado com este status institucional na primeira gestão do Presidente Lula da Silva, não apresentava tradição de articulação com outras esferas de governo para apoio de iniciativas públicas subnacionais. Tal centralismo foi, gradativamente, sendo substituído por um discurso cada vez mais disseminado de gestão descentralizada e mais participativa no que se refere às políticas públicas de turismo, valorizando assim, as demandas locais. Essa descentralização tem seu início a partir da década de 1990, período coincidente com a redemocratização do Estado brasileiro, especialmente pelo fato de oferecer maiores oportunidades para a participação cidadã e para inovações no campo da gestão pública, levando em conta a realidade e as potencialidades locais (ABRUCIO, 2007).
Uma das marcas de tal período é o Programa Nacional de Municipalização do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. O referido programa já apresentava características claramente descentralizadoras na gestão da atividade. Por sua vez, o Plano Nacional de Turismo, do período de 2003-2007, do então recém-criado Ministério de Turismo do governo Luiz Inácio Lula da Silva e, a segunda versão do Plano Nacional de Turismo - agora compreendendo o período de 2007-2010 - também do governo Lula, propuseram um novo modelo de gestão ainda mais descentralizada, com a reformulação do Conselho Nacional do Turismo e dos Fóruns Estaduais.
A tônica das ações do Ministério do Turismo desde sua criação tem sido a de, além de fomentar a atividade turística, promovê-la através de “uma rede de entidades e instituições, em todo o território nacional, envolvendo o poder público nas três esferas de governo, a iniciativa privada e o terceiro setor”. O governo federal, através do Ministério do Turismo tem sinalizado, desde meados dos anos 2000, interesse no desenvolvimento turístico de municípios indutores da atividade, e para isto, maior diálogo com os entes subnacionais. Prova disso é a consideração, no desenvolvimento das políticas federais de turismo, das conclusões do Estudo de Desenvolvimento Regional realizado pela Fundação Getulio Vargas datado em 2008 e encomendado pelo MTur que define os 65 municípios indutores de turismo no Brasil para subsidiar a elaboração do Plano Nacional de Turismo (2007-2010), do segundo governo Lula da Silva e tendo como base os Planos de Marketing Internacional (Plano Aquarela 2005) e do Plano Nacional. O estudo apontou todas as capitais e até cinco cidades em cada Estado como capazes de induzir o desenvolvimento turístico de sua região (Barbosa, 2008), ressaltando a importância dos Estados e Municípios na regionalização das políticas públicas de turismo. Já a partir do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), de viés neoliberal e com políticas de incentivo mais restritivas, focadas quase exclusivamente na divulgação de destinos, os municípios têm sido alvo de ações como a promoção e difusão internacional dos Patrimônios Históricos do Brasil, fruto de acordo de cooperação técnica firmado entre a Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), o Ministério do Turismo (MTur) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Considerando a forma como o turismo é relegado na formação da agenda pública, é esperado que as políticas públicas de turismo sejam preteridas. A chamada “agenda-setting”, que pode ser entendida como uma permanente concorrência entre proponentes de temas, com o objetivo de ganhar a atenção da mídia, do público, e de elites políticas, é elemento importante para se entender a elaboração e execução de políticas públicas. Sobre formação da agenda, Secchi (2015) afirma que “a agenda é um conjunto de problemas ou temas entendidos como relevantes” (p. 36). O autor sugere que existem, basicamente, dois tipos de agenda: a política ou “conjunto de problemas ou temas que a comunidade política percebe como merecedor de intervenção pública”; e a formal “também conhecida como agenda institucional, é aquela que elenca os problemas ou temas que o poder público já decidiu enfrentar” (p. 36). Segundo o autor, no caso concreto brasileiro a ‘policy analysis’ exigiria identificar se as instituições, para além de outros fatores, realmente exercem papel importante nos processos de formação de vontade e de decisão, e se não, quais consequências são decorrentes no processo decisório político.
A intersetorialidade do turismo permite a pesquisa do fenômeno sob olhares e abordagens múltiplas, também sob o aspecto regional e de desenho institucional, inclusive quando se analisa o que Frey (2010), em “Políticas Públicas: Um Debate Conceitual e Reflexões Referentes à Prática da Análise de Políticas Públicas no Brasil”, elucida como parte da “Policy Analysis”. Pearce (2001) afirma que o turismo tem, cada vez mais, alcançado poder na agenda pública que define a cidade. Com a compreensão de que o turismo pode ser uma fonte de bem-estar para as comunidades dos destinos receptivos, governos absorvem a lógica do incentivo e ordenamento da atividade como passível de política pública em Estados de bem estar social. Neste caso, o bem-estar é do tipo macro e microeconômico, e o turismo é enxergado como uma atividade inerentemente positiva. É então assumida pela Administração Pública a importância do turismo na produção da cidade, políticas urbanas dedicadas ao acolhimento desta indústria são cada vez mais presentes e se tornam elementos fundamentais especialmente em torno de revitalizações urbanísticas.
A proximidade temática entre a política urbana e a atividade turística na contemporaneidade é consequência da preocupação desses governos em promover o turismo, sobretudo através da implementação de políticas visando melhorias na infraestrutura urbanística e marketing desses destinos, numa dialógica muito evidente entre turismo e promoção da cidade. Buscando inserir as cidades no cenário de competitividade interurbana, projetos, programas e planos passam a considerar o turismo um setor estratégico e evidenciando a necessidade da implementação de políticas públicas de caráter muito local. Tal fato relega, sob o ponto de vista institucional, sua execução aos cuidados principalmente do Município, em arranjos federalistas como no caso brasileiro. O planejamento de políticas urbanas em municípios deve levar em consideração as peculiaridades desses territórios e o arranjo institucional federalista é elemento importante de análise dado que, como discorre Arretche (2010), federações com políticas sociais centralizadoras, como é historicamente o caso do Brasil, submetem entes subnacionais, como os municípios, à possível ausência de recursos públicos para o financiamento de políticas.
O turismo como fenômeno pode construir novos espaços de crescimento e é um importante elemento no desenvolvimento local, mas também causar conflitos antes inexistentes ou agravar problemas pré-existentes. Em acordo com a perspectiva fenomenológica que defende que são perceptíveis, pelos autóctones, tanto impactos interpretados como positivos, quanto impactos entendidos como desfavoráveis nos territórios receptores de turistas. Ressalta-se que é comum que comunidades locais compreendam os acontecimentos consequentes da atividade turística de maneira muito diferente do turista ou forasteiro, sentindo-se excluídos do seu processo de “desenvolvimento”, com atividades que em nada contribuem para melhorias em sua qualidade de vida, desencadeando, inevitavelmente, conflitos de interesses. Assim, a minimização dos impactos indesejáveis e maximização dos percebidos como desejáveis dependerá, fundamentalmente, de fatores como a gestão territorial e seus instrumentos de ordenamento, notadamente de políticas públicas voltadas ao planejamento do fenômeno, planejamento este, como já dito, muito mais próximo dos municípios e entes subnacionais sob o ponto de vista de execução de políticas, mas dependente de financiamento dos governos centrais. Os destinos turísticos e as comunidades ali assentadas são alvos de ações do Estado, que tenta coordenar o desenvolvimento da atividade turística e as relações que esta estabelece, buscando mitigar as tensões locais. Para a análise das políticas em questão Secchi (2015) em “Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos” afirma que o estudo das políticas públicas “[...] consolidou, nos últimos sessenta anos, um corpus teórico próprio, um instrumental analítico útil e um vocabulário voltado para a compreensão de fenômenos de natureza político-administrativa”, e considera, que “[...] as policy sciences nasceram para ajudar no diagnóstico e no tratamento de problemas públicos”. É, portanto, salutar a coordenação dos governos subnacionais, que recebem as demandas mais urgentes relacionadas ao fenômeno do turismo e à atividade turística nos municípios, com os governos centrais que balizam, através dos grandes Planos, a macrogestão do fluxo turístico, para que as políticas públicas de turismo ao mesmo tempo que resolvam os problemas das agendas locais não corra o risco de sofrer com o subfinanciamento consequente da falta de atenção do governo central.
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