A culpabilidade – para alguns tida como componente do conceito analítico de crime, e para outros como pressuposto de aplicação da pena – tem como elemento constitutivo aquilo que chamamos de exigibilidade de conduta diversa. Compreendida como a possibilidade de o homem médio exigir de um outro homem médio que este comporte-se conforme a lei, diversamente do fato criminoso. Como bem disciplina Cleber Masson: “a exigibilidade de conduta diversa é o elemento da culpabilidade [...]. Em síntese é necessário tenha o crime sido cometido em circunstâncias normais, isto é, o agente podia comportar-se em conformidade com o Direito, mas preferiu violar a lei penal.”
Em outro giro está a inexigibilidade de conduta diversa, quero dizer, a impossibilidade de o autor do delito agir conforme ordena a lei, no momento em que cometeu o fato. Desse modo, o agente agiu em desconformidade com a lei e o ordenamento jurídico vigente pois não tinha qualquer outra opção. Passando a contaminar a vontade do agente, isto é, não havendo opção outra que não aquela de violar a lei, sequer existe autonomia da vontade, não sendo culpável, excluindo-se, pois, a culpabilidade, inviabilizando a aplicação de pena.
Isto posto, verifica-se constantes questionamentos nos tribunais superiores quanto a aplicação da inexigibilidade de conduta diversa aos crimes contra a ordem tributária. Para entender tal questão é necessário compreender, ainda que elementarmente, o que envolve delitos de tal natureza.
Regidos pela Lei n° 8.137 de 1990, bem como algumas disposições do Código Penal, o estabelecimento de crimes contra a ordem tributária visa proteger a ordem econômica, o patrimônio do Estado e por consequência, toda a população, já que são bens transindividuais, não estando disponíveis, residindo aí sua importância. Desse modo, ao analisar a já referida lei, compreender-se-á que o que está em jogo não é simplesmente o não pagamento do tributo, que por si só não é causa suficiente para constituir o devedor em infração penal.
Consoante disciplina o art. 1°, caput da Lei n° 8.137/90 (que trata das situações mais corriqueiras), o não pagamento de parte do tributo, ou mesmo de sua totalidade, somente será considerado crime quando ocorrer mediante supressão da verdade de informações requeridas pelo fisco, seja mediante fraude, omissão de informações, falsificação de documentos, notas e/ou duplicatas, bem como outros modos descritos nos incisos do artigo primeiro. Lembrar, também, que a lei traz outros casos.
Assim sendo, ao conhecer os dispositivos do diploma referenciado e o estabelecido pela excludente de culpabilidade aqui abordada – inexigibilidade de conduta diversa – depreende-se em um primeiro momento que tal excludente não é aplicada aos crimes tidos contra a ordem tributária. Não sem razão, pois esses delitos exigem um especial fim de agir, ou seja, que a conduta do agente seja direcionada a fraudar o sistema tributário utilizando-se de engodo. De modo que na inexigibilidade a vontade do agente está viciada, não podendo ser contra ele usada, passando a impedir a aplicação de pena. E nos casos aqui expostos, a vontade direcionada ao fato é elementar do tipo.
Do mesmo modo dispõe o STF (Supremo Tribunal Federal), especialmente em julgado que analisa os delitos aqui citados e essa excludente de culpabilidade, corroborando o até aqui exposto. Me refiro ao HC 163497/SP, que tem a seguinte ementa,
HABEAS CORPUS – ATO INDIVIDUAL – ADEQUAÇÃO. O habeas corpus é adequado em se tratando de impugnação a ato de colegiado ou individual. HABEAS CORPUS – PREJUÍZO PARCIAL. Uma vez afastada, pelo Superior Tribunal de Justiça, a execução antecipada da pena, tem-se o prejuízo parcial da impetração, no que voltada à obtenção de idêntica providência. PENA – CUMPRIMENTO – PRISÃO DOMICILIAR – EXCEPCIONALIDADE. O cumprimento de pena em regime domiciliar pressupõe situação excepcionável a se enquadrar em previsão legal. ARTIGO 1º DA LEI Nº 8.137/1990 – INCONSTITUCIONALIDADE – IRRELEVÂNCIA DA ARTICULAÇÃO. A tutela alusiva aos crimes versados na Lei nº 8.137/1990, a incidir sobre atos praticados pelo contribuinte visando a supressão de tributos, consistentes em fraudes, omissões dolosas e prestação de informações falsas, surge penalmente relevante, não havendo relação com prisão civil por dívida. CULPABILIDADE – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA – MEIOS FRAUDULENTOS. Os delitos de sonegação fiscal, nos quais a supressão ou redução de tributos dá-se mediante a utilização de comportamentos ardilosos ou fraudulentos, mostram-se incompatíveis com a observância da causa supralegal de exclusão de culpabilidade relativa à inexigibilidade de conduta diversa. (destaque nosso)
Noutro giro, em recurso especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça foi levantada a tese de inexigibilidade, consistente em “problemas de mercado ou situações de economia do país”, tendo sido indeferido pois a corte superior afirma que tais situações são o caso de risco a ser assumido por aqueles que desejam atuar no mercado, além de estar presente no caso concreto a contumácia do agente, quero dizer, a habitualidade no descumprimento das obrigações tributárias, de modo a demonstrar o agir direcionado a lesionar o fisco. Como bem afirma o STJ no REsp 1862914/SP,
RECURSO ESPECIAL. PENAL. SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ALEGAÇÃO DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE NA PETIÇÃO 00217880/2023 (AGRAVO REGIMENTAL NO PEDIDO DE RETIRADA DE PAUTA). [...] ALEGAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA AFASTADA PELA CORTE DE ORIGEM. [...] 10. Quanto à tese de inexigibilidade de conduta diversa, o Tribunal a quo mencionou que dificuldades financeiras por problemas de mercado ou situações da economia do país fazem parte do risco que é inerente à atividade empresarial, sendo comum no comando das empresas, fato, portanto, insuficiente a ensejar a excludente de culpabilidade em questão. [...] Refiro, da mesma forma, que o não cumprimento da obrigação tributária perpetrou-se por anos consecutivos, o que afasta o caráter de excepcionalidade, ao contrário, é indicativo de que a empresa assumiu tal conduta como forma de gerenciamento. 11. Para alterar a condenação perpetrada pela instância ordinária, sob a tese de inexigibilidade de conduta diversa, seria necessária a incursão na seara fático-probatória, medida esta inviável na via eleita por conta do óbice da Súmula 7/STJ.
12. A Corte de origem afastou as teses de inexigibilidade de conduta diversa e de estado de necessidade, de modo que a inversão do julgado, no ponto, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência inviável nesta instância especial, nos termos da Súmula 7/STJ (AgRg no AREsp n. 1.790.761/RS, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 28/6/2021). [...] A tese de inexigibilidade de conduta diversas foi afastada pelo Tribunal de origem, com lastro nas provas produzidas durante a instrução criminal. Para alterar a conclusão do julgamento seria necessário o revolvimento do caderno probatório, o que não é possível em recurso especial. Súmula n. 7 do STJ (EDcl no AREsp n. 1.329.897/SC, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 20/5/2020). [...]. (destaque nosso)
Pois bem, diante de tudo que foi exposto, não é prudente dizer peremptoriamente que tal excludente supralegal de culpabilidade não é aplicável a tais delitos. Pois em qualquer caso será necessário que o caso concreto seja analisado em sua individualidade, por um advogado capacitado e conhecedor do tema, isto para que sejam traçadas as melhores e mais adequadas estratégias e teses defensivas, todas compatíveis com o caso concreto.
Publicado originalmente em: https://kawanikcarloss.com.br/inexigibilidade-de-conduta-diversa-e-a-ordem-tributaria