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O entendimento do STJ sobre o casamento nuncupativo e o novo paradigma da proteção das famílias

Agenda 02/08/2023 às 17:20

INTRODUÇÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988 houve a reformulação de diversos preceitos jurídicos, sobretudo, no que se refere à tutela das relações privadas, que foram ressignificadas pelas basilares constitucionais.

Trata-se de fenômeno denominado constitucionalização do direito privado, ou do direito civil (FACCHINI NETO, 2013), decorrente da supremacia da Constituição sobre as demais normas, e do reconhecimento da força normativa dela, no sentido de ser não apenas uma carta programática ou ideológica, mas um diploma cujos mandamentos têm aptidão para produzir efeitos, direta e imediatamente.

Dentre os princípios orientadores da hermenêutica constitucional há o princípio da unidade da constituição, ou da unidade hierárquico-normativa da constituição (BULOS, 2012), segundo o qual não há hierarquia entre as normas constitucionais. Não obstante isso, a dignidade da pessoa humana foi destacada, pelo próprio Constituinte, como princípio fundamental, e, em razão do seu conteúdo, acaba por servir de eixo entorno do qual devem as demais normas orbitar (MEDINA, 2013). Logo, a constitucionalização do direito privado impõe que os institutos que regulam as relações entre particulares sejam interpretados e aplicados à luz da dignidade da pessoa humana, em especial, a família, que serve de base e plano de fundo para questões existenciais dos indivíduos.

Dentre os institutos de direito de família, o casamento se destaca, no que se refere à formalidade e requisitos (WALD, 2000), pois se trata de instituição de notável valor social, e que produz inúmeros efeitos jurídicos, pessoais e patrimoniais. A despeito disso, recentemente o STJ (2022) proferiu importante decisão, reconhecendo a possibilidade da flexibilização das normas do casamento nuncupativo. Vislumbra-se que esta decisão foi tomada à luz da dignidade da pessoa humana, sendo importante paradigma de análise da constitucionalização do direito privado.

O CASAMENTO NUNCUPATIVO

Nos termos do art. 1.540, do Código Civil, casamento nuncupativo é aquele que ocorre quando um dos contraentes estiver em eminente risco de vida, e não for possível, em razão desta circunstância, ir à presença da autoridade competente para casá-los (BRASIL, 2002).

Tartuce (2019) explica que se trata de forma excepcional de celebração, muito próxima daquela prevista no art. 1.539, do mesmo Código (BRASIL, 2002), aplicável aos casos de moléstia grave, com a diferença de que nesta há a presença da autoridade competente para presidir o ato, ao passo que no casamento nuncupativo são os próprios noivos, sem intermediários, que o fazem.

O pressuposto do casamento nuncupativo é a urgência, tendo em vista que sua ocorrência pode ser impossibilitada pela demora, em razão de possível óbito do noivo que está com a vida em risco (MADALENO, 2018).

Cuida-se de importante instituto, pois permite que se case aquele que pode estar a morrer, realizando, eventualmente, seu último desejo, bem como permite que o outro noivo tenha a última oportunidade de se casar com a pessoa amada.

Entretanto, não basta, simplesmente, a vontade de casar e a pessoa amada: faz-se necessária a observância de alguns requisitos legais, em prestígio à segurança jurídica.

O artigo 1540, do Código Civil (BRASIL, 2002), prevê que será celebrado na presença de seis testemunhas, que com os noivos não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau.

Realizado o casamento, o art. 1541 (BRASIL, 2002) determina que as testemunhas compareçam perante a autoridade judiciária mais próxima, em dez dias, para declinar: que foram convocadas pelo enfermo (inciso I); que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo (inciso II); e que, em sua presença os contraentes declararam, livre e espontaneamente, receber-se por esposo e esposa (inciso III).

Percebe-se que há grande preocupação do legislador com a formalidade do casamento, pois se trata de relevante instituição, responsável por sediar grande parte das entidades familiares e, por isso, tem destacada importância social (RAMOS; NASCIMENTO, 2008) e consequente valor jurídico (WALD, 2000). Assim, para ser existente, válido e eficaz, o casamento se sujeita à observância dos requisitos impostos pelo legislador, mormente nas hipóteses nuncupativas de realização, pois como se percebe, não é que há ausência de formalidade, mas sim que são deixadas para depois, dada a urgência de sua ocorrência (STJ, 2022).

O ENTENDIMENTO DO STJ SOBRE O CASAMENTO NUNCUPATIVO

Em recente julgamento, ocorrido em 10 de junho de 2022, o STJ decidiu ser possível a flexibilização dos requisitos legais do casamento nuncupativo, reconhecendo que a inobservância do prazo para solicitação do registro, que é de 10 dias, não o torna inválido:

No caso dos autos, um homem afirmou que se casou com a noiva – que corria risco de morte por causa de um câncer de pâncreas – na presença de seis testemunhas sem parentesco próximo com nenhum dos dois, conforme a exigência legal. Sete dias depois, a noiva faleceu. O prazo legal para a solicitação do registro do casamento é de dez dias, mas isso só ocorreu 49 dias após a celebração. O tribunal de origem, confirmando a sentença, negou o registro do casamento, sob o fundamento de que o requerente não comprovou os motivos pelos quais solicitou a formalidade fora do prazo legal. No recurso ao STJ, ele argumentou que seria possível a flexibilização do prazo, tendo em vista a proteção constitucional do casamento (STJ, 2022).

A Ministra Nancy Andrighi, então relatora, motivou seu voto no sentido de que o descumprimento do prazo para a solicitação do registro não afeta a “essência e a substância” do casamento nuncupativo, de modo que tal circunstância não impede a existência, validade e eficácia do ato (STJ, 2022).

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

É sabido que o surgimento de nova constituição inaugura nova ordem jurídica, o que se percebe da origem etimológica do termo, que vem do latim constitutione (PIRES, 2014) ou constituere (BULOS, 2012), que significa criar, estabelecer, firmar, compor, constituir. Tal premissa é evidente no surgimento da Constituição Federal de 1988 (BRASIL), que desconstruiu, e reconstruiu, uma série de paradigmas jurídicos, sobretudo, no que se refere à tutela das relações jurídico-privadas, que foram relidas e reinterpretadas a partir das basilares constitucionais. Trata-se do fenômeno da constitucionalização do direito privado, ou do direito civil:

Da constitucionalização do direito civil decorre a migração, para o âmbito privado, de valores constitucionais, dentre os quais, como verdadeiro primus inter paris, o princípio da dignidade da pessoa humana. Disso deriva, necessariamente, a chamada repersonalização do direito civil, ou visto de outro modo, a despatrimonialização do direito civil (FACCHINI NETO, 2013, p. 26).

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Em outras palavras, moreira explica que:

A Constituição Federal de 1988 trouxe a dignidade da pessoa humana como fundamento, e no Estado Democrático de Direito é natural a intervenção do Estado perante os particulares, na tarefa de promover o bem-estar social, erradicar as discriminações, garantir o mínimo existencial e, assim, a recomendar o reajustamento do direito privado à nova realidade jurídica nacional. A necessidade da releitura do direito privado à luz dos princípios da Constituição de 1988 implicou a constitucionalização do direito privado. Assim, temos como exemplo que a propriedade, o contrato, a família, típicos do direito privado, passaram a residir em solo constitucional, verdadeiro fenômeno de constitucionalização do direito civil, a repor a pessoa humana como centro do direito civil (2018, p. 98).

Vislumbra-se que Constituição Federal (BRASIL, 1988) elegeu a dignidade da pessoa humana não apenas como um princípio fundamental (art. 1º, inciso III), mas como verdadeiro “princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios” (TARTUCE, 2019, p. 1057).

Embora seja positivada como princípio fundamental do Estado (BRASIL, 1988), o que dá a ela a envergadura de princípio dos princípios é não sua posição topológica na Constituição, mas sim seu conteúdo:

Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou uma tábua de salvação para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade da pessoa humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito. Os antigos já diziam que todo direito é constituído hominum causa (NERY JUNIOR; NERY, 2009, p. 151).

A ordem jurídica não tem fim em si mesma, mas sim naqueles que a formam: a pessoa humana, em todas suas dimensões. Por esta razão, cuida-se de princípio de efeito universal, ou seja, que se erradia por todos os âmbitos normativos: “a dignidade da pessoa humana é o eixo em torno do qual deve girar todo o sistema normativo, núcleo dos direitos fundamentais” (MEDINA, 2013, p. 39), de modo que não se pode criar, interpretar ou aplicar norma de modo contrário a ela, isto é, afrontando a premissa de que a pessoa humana é o bem jurídico primeiro:

A normatividade constitucional, o sentido de obrigatoriedade das disposições ali presentes, decorre de uma evolução do pensamento jurídico. Considerava-se, de início, a Constituição como conjunto de princípios políticos, dirigidos apenas aos poderes Executivo e Legislativo, que demandavam, portanto, atuação legislativa para produzir efeitos. Contudo, não é essa a posição atual. A partir de uma visão civil-constitucional, o negócio jurídico, por exemplo, não se pautará apenas em autonomia da vontade. O processo de constitucionalização leva o homem ao centro de preocupações de modo a haver respeito à dignidade humana (RODRIGUES, 2021, p. 3).

A dignidade humana enseja a ideia antropocêntrica de tutela jurídica, tendo como centro dela o indivíduo, ao qual deve ser garantido os meios necessários para que alcance sua plenitude, no sentido de satisfação pessoal:

É inconcebível reduzir-se o sentido da dignidade da pessoa humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir efêmera teoria do núcleo da personalidade, calcada em vetores individuais, desprezando teses que tratem de garantir as bases da existência humana sob a ótica da satisfação pessoal acima do Estado (RIBEIRO, 2012, p. 159).

A questão de sua natureza normativa de instrumento de satisfação dos anseios da pessoa se relaciona com os atributos desta de racionalidade e capacidade de autodeterminação, autoconsciência e autotranscedência, no sentido de direcionamento da própria existência (RAMPAZZO, 2004).

Baertschi, com base na filosofia moral kantiana, explica que a dignidade pode ter um sentido pessoal, referente à ideia de satisfação humana:

Quero, aos meus próprios olhos e aos olhos dos outros, poder ser e continuar a ser um indivíduo digno de respeito, não simplesmente porque sou um ser humano, mas porque conservo minha autoestima. Nesse sentido, a dignidade está ligada ao respeito a si: para conservar esse respeito, é preciso que a pessoa não se encontre em uma situação na qual possa dizer que nada mais sente senão desprezo ou desgosto por aquilo que se tornou, porque, em certo sentido, já não tem mais nenhum valor, considerando-se o que fez. Como se diz às vezes: é preciso poder se olhar no espelho; ora, a vergonha ou o remorso impede de olhar para si mesmo (2009, p. 187-188).

Depreende-se que a dignidade da pessoa humana é um mandamento constitucional ao Estado, que vai além da imposição da obrigação de prestações materiais, necessárias à sobrevivência. Exige-se, por meio dela, mais: prestações ativas com a finalidade de fornecer os meios para que os indivíduos desenvolvam identidade e personalidade, a fim de se determinarem conforme seu entendimento. Neste sentido é a definição de dignidade da pessoa humana de Salet:

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida e, comunhão dos seres humanos (2004, p. 60).

A constitucionalização do direito privado, fundada na dignidade da pessoa humana, impõe ao Estado o dever de tutelar as relações jurídico-privadas, a fim de que se garanta que o indivíduo atinja a plenitude de vida. Nesta linha, é o entendimento do STF, firmando no julgamento do tema de repercussão geral 622, em que se reconheceu a busca pela felicidade como um desdobramento da dignidade da pessoa humana:

O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares (2016, p. 2-3).

Enfim, a tutela constitucional do direito privado, decorrente da dignidade da pessoa humana, cria o dever de garantia ao indivíduo de que lhe será fornecido o necessário para desenvolver suas potencialidades e individualidades. Trata-se novo paradigma jurídico-constitucional, aplicável à tutela de todas as relações privadas, sobretudo, àquelas familiares, pois é no seio da família que os sujeitos vivem seus dias, desenvolvendo-se e se formando enquanto pessoas.

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA TUTELA JURÍDICA DAS FAMÍLIAS À LUZ DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A tutela jurídica das famílias sofreu grandes transformações decorrentes da constitucionalização do direito privado, ocasionada por sua releitura, à luz da dignidade da pessoa humana:

Em verdade a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa (MADALENO, 2018, p. 97).

Com a dignidade humana eleita valor primeiro da ordem jurídico-constitucional, ocorreu a ressignificação do que é família e qual sua finalidade no Estado de Direito.

Segundo Mousnier (2002), anteriormente as famílias eram estruturadas pela hierarquia vertical, tendo como centro das decisões dos lares a vontade masculina; eram centradas no matrimônio, arranjado não pelos noivos, mas pelas suas famílias; fundadas na homogeneidade de crenças e costumes; eram tidas como fonte de procriação e de concentração e acréscimo de propriedade; e, por fim, baseada na rígida divisão dos papéis familiares. Na atualidade (Ibid.): a hierarquia vertical nos lares, concentrada na figura do homem, foi substituída por uma hierarquia compartilhada e solidária, entre o casal; o afeto passou a ser o centro das relações, enquanto encontro de duas individualidades, com liberdade de escolha; passou-se a ter como preocupação primeira o planejamento da vinda e felicidade dos filhos; e, por fim, houve o reconhecimento da ambivalência de papeis dos membros, tanto nos seus deveres familiares, quanto sociais.

Ainda sobre esta mudança de paradigma quanto ao fim social da família e o fundamento de sua tutela jurídica, Alves consigna que:

Consubstanciando o princípio vetor da dignidade da pessoa humana no seu art. 1º, III, a Carta Magna provocou uma autêntica revolução no Direito Civil como um todo, dando ensejo a um fenômeno conhecido como despatrimonialização ou personalização deste ramo do Direito. No campo específico do Direito de Família, verifica-se que a entidade familiar passa a ser encarada como uma verdadeira comunidade de afeto e entreajuda, e não mais como uma fonte de produção de riqueza como outrora. É o âmbito familiar o local mais propício para que o indivíduo venha a obter a plena realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes da família deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, o carinho, amor e ajuda mútua (p. 242, 2006).

A pouco se expôs que a dignidade da pessoa humana valorou o sujeito de direito, colocando-o no centro da ordem jurídica. Vislumbra-se, de modo latente, este fenômeno no direito das famílias.

Com o advento da Constituição Federal (BRASIL, 1988), a família deixou de ser protegida por ser entidade de relevante valor social, como outrora. Atualmente, tutela-se as famílias em razão dos sujeitos que as formam, constituídos em dignidade, e que, por esta razão, fazem jus à garantia dos meios necessários para desenvolver suas individualidades e potencialidades:

A principal função da família é a sua característica de meio para a realização dos nossos anseios e pretensões. Não é mais a família um fim em si mesmo, conforme já afirmamos, mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na relação com os outros (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 98).

Em outras palavras:

A família deixa de ser fim e passa a ser meio, um instrumento. Detectou-se que as pessoas não nascem com o fim específico de constituir família, mas, nascem voltadas para a busca de sua felicidade e concretização individual, como consequência lógica da afirmação da dignidade do homem (LOPES, 2014, p. 109)

Em suma, adoção da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado de Direito resultou na constitucionalização de todas as relações jurídico-privadas, incluindo as de família. Deste modo, ocorreu a constitucionalização da tutela das famílias, ou constitucionalização do direito de família, que deve ser interpretado e aplicado à luz da dignidade da pessoa humana.

O PRECEDENTE DO STJ SOBRE O CASAMENTO NUNCUPATIVO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tenha mais ingerência ou atuação do que no direito de família (TARTUCE, 2007), pois é ele o incumbido de tratar das relações domésticas, que se formam na vivência dos lares, onde a pessoa desenvolve suas individualidades, ao lado dos seus amados:

A família é de importância ímpar para a formação e reprodução de valores, pois em seu âmbito é desenvolvida a personalidade de cada ser humano. Em especial no Direito de Família, conhecido como o mais humano de todos os ramos do Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana, para além de ser base de todos os outros, assegura aos indivíduos o pleno desenvolvimento (YAGODNIK; MARQUES, 2014, p. 55).

É no âmbito da família que os indivíduos formam suas subjetividades e, por esta razão, o regramento jurídico acerca delas, isto é, os institutos de direito de família, devem ser interpretados e aplicados à luz da dignidade da pessoa humana:

A doutrina destaca o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, sublinhando a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos. Nessa dimensão, encontra-se a família, como o espaço comunitário por excelência para a realização de uma existência digna e da vida em comunhão com as outras pessoas (LÔBO, 2008 p. 133).

Sendo o casamento um instituto de direito de família, devem as normas que versam sobre ele ser lidas através da lente da dignidade da pessoa humana. Partindo deste pressuposto, verifica-se que o STJ (2022) decidiu bem ao reconhecer a validade do casamento nuncupativo, mesmo que seu registro tenha sido requerido após o decurso do prazo legal.

É certo que a obediência às leis, corolário do princípio constitucional da legalidade, é segurança do próprio sujeito de direitos, no sentido de se ter a expectativa de que se observará as disposições legislativas, produto do processo democrático, evitando-se, assim, abusos e desvios, quando da tutela jurídica (PIRES, 2014). Todavia, não é razoável que a inobservância de formalidade legal, no caso, do prazo para o comparecimento em juízo para obter o registro do casamento nuncupativo, tenha aptidão de obstar o direito do noivo de se ver casado com a pessoa amada, direito este que, como se demostrou, encontra fundamento na dignidade da pessoa humana, que tem como um dos seus vários desdobramentos a busca pela felicidade.

O casamento nuncupativo pode ser, eventualmente, a única oportunidade do noivo sobrevivente de se ver casado com a pessoa amada, que se encontrava em risco de vida no momento da celebração, bem como pode ser o momento de realização o último desejo daquele que pode estar a morrer. Partindo da premissa de que a dignidade da pessoa humana coloca o indivíduo como centro do debate jurídico, vislumbra-se que o STJ decidiu acertadamente, reforçando o paradigma da constitucionalização do direito privado.

CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe consigo o fenômeno da constitucionalização do direito privado, ou do direito civil, que impôs a releitura do regramento das relações privadas, a partir das basilares constitucionais, sobretudo, à luz da dignidade da pessoa humana, que mais do que um princípio fundamental da Constituição, é o eixo central de todo o sistema normativo.

A dignidade humana reconhece o indivíduo como razão de ser da tutela jurídica, que deve ser garantida não apenas naquilo que é necessário para se sobreviver. Trata-se de vetor hermenêutico que atribui ao indivíduo o direito de ter assegurado tudo que seja necessário para desenvolver sua individualidade e personalidade.

Percebe-se a constitucionalização do direito civil em todas as relações jurídico-privadas, em especial, no direito de família, pois no seio do lar são desenvolvidas grande parte das subjetividades humanas: sentimentos, emoções, traços psíquicos, ideais, dentre outras. Assim sendo, conclui-se que a constitucionalização do direito de família impõe que ele seja aplicado e interpretado à luz da dignidade da pessoa humana.

Diversos são os institutos do direito de família, destacando-se, dentre eles, o casamento, pois grande parte das famílias são constituídas em razão da união de casal, em matrimonio.

Recentemente, o STJ decidiu pela flexibilização dos requisitos do casamento nuncupativo, que é aquele celebrado pelos próprios noivos, sem a presença de autoridade competente, tendo em vista a urgência de sua ocorrência, em razão de um dos noivos estar com a vida em risco. Reconheceu-se que o fato de não se observar o prazo para comparecer em juízo, para obter o registro do casamento, não o torna inválido, tendo em vista que não altera a substância e essência do ato. Percebe-se que esta decisão prestigiou a dignidade humana, destacando a realização emocional dos noivos em detrimento de mera formalidade legal. Ademais, esta conclusão é reforçada a partir do entendimento do STF, de que é desdobramento da dignidade da pessoa humana o direito fundamental à busca pela felicidade.

REFERÊNCIA

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Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: joaogabrielfariaadvogado@gmail.com.

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