Resumo: Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas contêm propósitos explícitos e implícitos, provocando pontos de vista divergentes, por exemplo, quanto à sua efetividade. Este estudo apresenta uma visão de efetivo acesso à justiça, não se resumindo à apresentação de estatísticas de grupos da sociedade, mas com sentido na tarefa de prover o que é justo a todos. A justiça, nesse intuito, deve ser substancial e baseada na experiência humana, com a prática racional do justo para com o outro e para com a comunidade, o que pode ser alcançado pelos particulares sem, necessariamente, a intervenção do judiciário.
Palavras-chave: objetivos de desenvolvimento sustentável; justiça; acesso à justiça.
1 Introdução
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) são largamente difundidos na sociedade brasileira, como expressão de um inquestionável comando superior à soberania nacional. Os textos de capa dos objetivos trazem ações de incontestável importância, como a erradicação da pobreza, no entanto, observam-se embutidos objetivos de comando político, econômico e cultural não tão desejáveis, com a imposição de ideologias e mecanismos de controle dos indivíduos e mesmo das empresas, como acontece com a agenda ESG (Governança ambiental, social e corporativa). A questão das “mudanças climáticas” traduz bem esses controles, a partir dos quais a opinião que não estiver de acordo com o “establishment” é vetada. Muitos são os que lucram politicamente e financeiramente com esses objetivos e poucos são os questionadores. Ações concretas voltadas à totalidade da população (e não a grupos segregados ideologicamente) são raras. O objetivo de desenvolvimento sustentável de acesso à justiça, apesar da importância dos temas “justiça” e “acesso à justiça”, não apresenta resultados efetivos, senão ações com intuito de dominância político-ideológica.
Ainda assim, este trabalho busca dar valor ao acesso à justiça enquanto direito humano fundamental, mostrando que acessar a justiça é mais que protocolar um processo no judiciário, é efetivamente prover o que é justo, é dar efetividade ao direito de experienciar justiça. Para tanto, inicialmente descreve-se como, de fato, funcionam os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU e quais as suas metas, explícitas ou não, seguindo-se com os problemas gerados à sociedade pela imposição de ideologias e de mecanismos de controle dos indivíduos, desde a indução ao erro de percepção da realidade até o cerceamento das liberdades mais básicas, como a liberdade de expressão, a liberdade de locomoção e a liberdade de religião. O intento não é rotular estruturas internacionais como fraudulentas, mas apresentar visões de contraposição a fim de que seja emitido um alerta com relação a determinados objetivos ocultos com imagem de bondosos, o tal “lobo em pele de cordeiro”. O trabalho evita o excesso de citações, não se eximindo de mesclar dados e opiniões e de basear-se na experiência da realidade, ou seja, em fatos e não em narrativas. A primeira parte do exame utiliza, dentre outras fontes, websites de organismos internacionais e matérias jornalísticas. Em seguida há um aprofundamento teórico nos temas da justiça e do acesso à justiça, através de pesquisa essencialmente bibliográfica. O segundo capítulo faz um exame da prática da justiça com base nas lições do Direito Natural (jusnaturalismo), por melhor afastar-se da influência de ideologias e preceitos políticos. A última parte do desenvolvimento contempla a concepção de um efetivo acesso à justiça, não apenas formal, mas objetivando prover o que é justo ao indivíduo e à comunidade.
Dessa forma, este trabalho, que não pretende ser o dono da verdade, oferece contraponto ao objetivo vago ou inexistente de acesso à justiça da Agenda 2030 da ONU, oferecendo uma visão humana da efetividade do acesso à justiça e apresentando um convite ao pensamento independente, com a prática racional de uma justiça para todos, saindo do discurso em direção à concretização do direito.
2 O ODS de acesso à justiça
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) fazem parte da chamada Agenda 2030, que, segundo a ONU (NAÇÕES UNIDAS, 2015), é um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade. Esse plano, no entanto, apresenta certos vieses, utilizando problemas reais, como a pobreza em diversas regiões do planeta, para justificar ações globais com comando centralizado. A maior parte da pobreza global encontra-se em países que mantiveram, nos últimos dois séculos, governos autoritários e antidemocráticos, e não nos países desenvolvidos. Os primeiros ignoram qualquer ação externa, mesmo orientativa, enquanto os segundos financiam estruturas e iniciativas internacionais com objetivos de expansão política e econômica. Os objetivos globalistas tem sido explicitados documentalmente, pelo menos, desde o Relatório para o Desenvolvimento Humano da ONU de 1994 (UNDP, 1994, p. 88), no qual alude que no século XXI “Mankind's problems can no longer be solved by national governments. What is needed is a World Government. This can best be achieved by strengthening the United Nations system”.
É importante, neste ponto, a diferenciação entre globalismo e globalização. A globalização, mais conhecida, é identificada pelo comércio além-fronteiras nacionais, englobando o livre comércio de produtos e o livre trânsito de pessoas, além do estabelecimento de empresas em países estrangeiros, obedecendo os comandos normativos de cada nação soberana e os tratados internacionais. O globalismo (CARVALHO, 2022, p. 293) trata da implantação de uma espécie de governo mundial, não no sentido tradicional, mas destruindo as soberanias nacionais a partir da implantação de estruturas ou comandos supranacionais com poder decisório. A “nova ordem mundial”, em função de seus objetivos político-econômicos, requer um maior controle dos indivíduos, com o cerceamento de suas liberdades, o que vinha ocorrendo paulatinamente e agravou-se no período da emergência sanitária da Covid-19. São estruturas globalistas conhecidas a Liga das Nações (atual ONU), criada em Paris, em 1919 (UNITED NATIONS, 2023), e a Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia), criada em Roma, em 1957 (EUROPEAN UNION, 2023).
É necessária a separação entre ações válidas, como a erradicação da pobreza, e o uso de estruturas globalistas para a expansão de domínio político e econômico de grandes interessados (metacapitalistas), o que implica na implantação de mecanismos de controle dos indivíduos, com o cerceamento das liberdades de expressão, de locomoção, de religião. As ações desenvolvidas em países não autoritários não devem ser impostas por organismos que pairam sobre os governos nacionais soberanos. Por exemplo, o que se observou nos países membros no momento de dificuldade da Covid-19 foi a destruição das liberdades mais básicas por governos que ignoraram a ciência e contaram com massivo trabalho de disseminação do medo através da mídia (mainstream media), todos orientados pelas trágicas decisões (GRYZINSKI, 2020) da Organização Mundial da Saúde, braço da ONU.
Ninguém rejeita ações realmente preocupadas em ajudar quem precisa (às vezes deve-se dizer o óbvio). O que boa parte da sociedade discorda é a aplicação impositiva de medidas que afetam toda a sociedade com base em ideologias políticas ou projetos de poder. Outro exemplo é a questão ambiental. É inequívoca a importância de a sociedade preservar os recursos naturais. O que se verifica há décadas, entretanto, é uma profusão de narrativas sem amparo na realidade, como na conhecida questão das “mudanças climáticas”. Na década de 2000 havia previsões catastróficas de que o gelo do Ártico derreter-se-ia até 2014 (GELO, 2009), ativismo que rendeu até Prêmio Nobel (AL GORE, 2008). Quase vinte anos após o prêmio, basta uma rápida pesquisa na internet para identificar que o volume de gelo nas extremidades do planeta sempre variou ao longo da história por diversas razões naturais. A narrativa, inclusive, continua, mas agora com as mesmas previsões para o ano 2100 (ÁRTICO, 2018). O evento das mudanças climáticas, em verdade, recebeu esse nome recentemente. Na década de 1990 era chamado de “aquecimento global”, no entanto, anos depois, com estudos que sugerem um resfriamento global nas próximas décadas (MOLION, 2008, p. 22), a nomenclatura foi alterada para “mudanças climáticas”. Como efeito, o controle dos diversos aspectos da vida humana pelos que advogam pelas mudanças climáticas segue a todo o vapor, implantando-o aos poucos através da legislação, do judiciário e da mídia. Um exemplo de controle recente parece ser a chamada Governança ambiental, social e corporativa (ESG), que impõe a empresas a aplicação de medidas ideológicas travestidas de boas ações, algumas descritas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030.
Observados os “poréns” da agenda globalista, alguns objetivos podem ser transformados em tarefas efetivamente benéficas à população, voltadas ao bem-estar da totalidade dos indivíduos, exatamente porque, apesar da existência de outras intenções, apresentam uma capa de boas ações universalmente aceitas e desejadas no mundo livre. Em âmbito jurídico pode-se citar o objetivo de acesso à justiça. O ODS 16, segundo o governo brasileiro (BRASIL, 2016, p. 1), busca “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Esse objetivo poder ser buscado de forma racional, pacífica, justa. O subobjetivo 16.3, por exemplo, prega “promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos” e o subobjetivo 16.7 visa “garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”. O acesso à justiça e a participação popular nos processos decisórios são caminhos para uma efetiva justiça, praticamente ignorada no elitista Estado de Direito, mas desejada pela população.
Na leitura do Relatório Anual da ONU para o Brasil em 2022 (NAÇÕES UNIDAS, 2023b, passim) identifica-se claramente seu viés ideológico. O documento trata dos números de registros policiais e de presos, mas resume-os a grupos da sociedade, numa segregação ideológica que em nada atinge o efetivo direito de acesso à justiça. Sequer o documento apresenta estatísticas sobre o acesso à justiça para a totalidade da população. Igualmente verifica-se seu caráter político-partidário ao elogiar determinado governante e criticar outro, ignorando as estatísticas. O acesso à justiça, tema central do ODS 16, é ignorado para dar ênfase a medidas como a “audiência de custódia”, cujo escopo é penalizar agentes da lei. É legítimo, então, o questionamento: onde está a justiça nos objetivos de desenvolvimento sustentável? O acesso à justiça é realmente um objetivo ou é apenas uma nomenclatura para a implantação de ideologias? Parece que a ausência de estatísticas voltadas à efetiva promoção da justiça para a totalidade da população já responde essas perguntas. Há que se ter em mente que nenhuma ação voltada à justiça virá de governos e muito menos de organismos internacionais, mas sim da sociedade.
Um desenvolvimento sustentável precisa considerar o desenvolvimento humano, a evolução que advém do conhecimento acumulado ao longo do tempo, precisa considerar os humanos do passado, do presente e do futuro, precisa cuidar dos recursos naturais de acordo com dados científicos e não fixar base ideológica numa preservação genérica e ineficiente, precisa promover o desenvolvimento do homem em equilíbrio com o meio natural. Assim, pode-se dizer que desenvolvimento sustentável significa evolução e não revolução. Não há desenvolvimento sem uma base anterior, pois se nenhum conhecimento se pudesse acumular, nenhuma evolução estaria apta a ocorrer. A civilização somente evoluiu a partir do advento da escrita, por exemplo. Há evolução tecnológica porque houve todo um passado de acumulação e manutenção do conhecimento. Não há desenvolvimento com a destruição do conhecimento e da cultura das gerações anteriores visando a construção de algo não sabido. Cada geração evolui a partir dos conhecimentos adquiridos das gerações anteriores. Sustentar os recursos naturais para as gerações futuras é tarefa de todos, mas não se pode admitir o uso ideológico de uma sustentabilidade genérica, como se tem largamente observado em setores da elite da sociedade. Dessa forma, a sustentabilidade deve sustentar não uma ideologia ou uma corrente política, mas a natureza, os recursos naturais, a humanidade, as pessoas. É o equilíbrio de elementos naturais, do homem com a flora e a fauna, com permanente evolução baseada na racionalidade e na prática da vida em sociedade. O desenvolvimento sustentável não se resume à ideia de atividades genéricas de preservação, mas requer fatores de desenvolvimento humano, como o acesso ao conhecimento, a liberdade de expressão, a liberdade de locomoção, a liberdade de religião e o acesso à justiça, dentre outros.
O conceito de justiça passou por várias metamorfoses ao longo da história, permanecendo vigente a ideia de uma naturalidade na sua aplicação, não um natural cosmológico, como autores modernos tentaram impingir, mas racional e prático, com base na experiência da vida humana e da vida em sociedade. Fazer justiça (autotutela) não é mais uma atitude baseada em violência, mas a prática de uma justiça pacífica e consensual por qualquer indivíduo, dentro das normas da comunidade. A evolução do conceito de acesso à justiça engloba mais que paridade de “armas”, requerendo a liberdade de prática da justiça fora da atividade jurisdicional do Estado, mas por este juridicamente tutelada. O objetivo de desenvolvimento sustentável de acesso à justiça passa pela evolução, com base no conhecimento acumulado, da prática da justiça, não mais restrita à jurisdição estatal, mas aberta aos cidadãos justos e respeitosos às leis.
3 A prática racional da justiça
A justiça tem sentido na promoção daquilo que é justo, no objetivo de uma ordem virtuosa e continuada de equilíbrio do homem nos ambientes natural e social. Parte-se, no estudo da justiça segundo o Direito Natural, das lições de Aristóteles, filósofo grego que viveu de 384 a 322 a.C. e foi o primeiro grande sistematizador do pensamento ocidental, além de, para muitos, o maior pensador da história. O estagirita, como é conhecido, estabeleceu, a partir dos conhecimentos transmitidos por seu mestre, Platão, os primeiros parâmetros filosóficos para a concepção da justiça, que considerava a virtude maior ou a soma de todas as virtudes. Na ética aristotélica, a justiça funciona como a conjunção entre o justo natural e o justo legal, uma espécie de adequação entre as leis humanas e as leis naturais. As leis naturais, nesse sentido, não são leis cosmológicas, como autores modernos tentaram rotular, mas instruções racionais e práticas no intento do bem-viver, que, por sua vez, nenhuma relação tem com atitudes hedonistas; ao contrário, significa a possibilidade de prover a si e aos demais membros da comunidade uma vida equilibrada e virtuosa. Em primeiro plano, pode-se considerar o viver justo do indivíduo, evitando vícios e exageros e, em segundo, a justiça aplicada no trato com o outro, observada no efeito comparativo dos recursos e sacrifícios a que cada indivíduo é sujeito, um justo que decorre das normas.
De acordo com a visão aristotélica, a prática da justiça que parte do indivíduo em direção ao outro traduz a virtude perfeita (ARISTÓTELES, 2014, p. 182-183):
A justiça, então, com esse feitio, é virtude perfeita, ainda que com relação aos outros [e não no absoluto]. Eis porque a justiça é considerada frequentemente a melhor das virtudes, não sendo nem a estrela vespertina nem a matutina tão admiráveis, de modo que dispomos do provérbio...
Na justiça está toda a virtude somada.
E é a virtude perfeita por ser ela a prática efetiva da virtude perfeita, sendo também sua perfeição explicada pelo fato de seu possuidor poder praticá-la, dirigindo-se aos outros e não apenas praticá-la isoladamente; com efeito, há muitos que são capazes de praticar a virtude nos seus próprios assuntos privados, mas são incapazes de fazê-lo em suas relações com outrem. É por isso que se considera bastante satisfatório o dito de Bias, segundo o qual a autoridade mostrará o homem, pois é no exercício da autoridade que alguém é levado necessariamente à relação com os outros e se torna um membro da comunidade.
Pela mesma razão de significar a relação com alguém, pensa-se que a justiça, exclusivamente entre as virtudes, é o bem alheio porque concretiza o que constitui a vantagem do outro, seja este o detentor da autoridade, seja ele um parceiro na comunidade. [...]
E a justiça, nesse sentido, por conseguinte, não é uma parte da virtude, mas a virtude total, e o seu oposto, a injustiça, não é uma parte do vício, mas a totalidade do vício (a distinção entre virtude e justiça emergindo clara do que foi dito. São, com efeito, idênticas, mas sua essência não é idêntica; aquilo que é manifestado na relação com os outros é a justiça - no ser simplesmente um estado de certo tipo é virtude).
A justiça primeira (ou geral) é uma compreensão necessária a uma justiça seguinte, que se manifesta na particularização de um modo justo de agir a uma situação concreta, sempre observada a existência do outro (hoje, o direito do outro). Veja-se que Aristóteles tratou a justiça como a prática da virtude total e a injustiça como a totalidade do vício. A justiça relacionada ao outro é comumente chamada de justiça comutativa e aquela relacionada à comunidade, de justiça distributiva. Este trabalho não visa detalhar as classificações doutrinárias da justiça aristotélica, mas apresentar suas noções gerais e aplicáveis ao mundo contemporâneo. A primeira orientação de justiça para Aristóteles constitui-se na aplicação do critério da proporcionalidade nas relações entre os indivíduos (ARISTÓTELES, 2014, p. 187-189):
O justo, portanto, necessariamente [...] envolve dois indivíduos para os quais existe justiça e duas coisas que são justas. E a mesma igualdade estará presente entre uns e outras; de fato, a proporção entre as coisas será igual à proporção entre os indivíduos, pois, não sendo as pessoas iguais, não terão coisas em porções iguais, entendendo-se que, na medida em que não são iguais, não receberão em pé de igualdade, o que, porém, não impede o surgimento de conflitos e queixas, seja quando iguais têm ou recebem coisas em porções desiguais, seja quando desiguais têm ou recebem coisas em porções iguais.
Isso também ressalta, como evidente, à luz do princípio da atribuição a partir do mérito. Todos, de fato, estão concordes de que a justiça distributiva tem que ser a partir de certo mérito, embora nem todos entendam o mesmo tipo de mérito; para os adeptos da democracia, trata-se da liberdade, para os adeptos da oligarquia, trata-se da riqueza ou do bom nascimento, enquanto para aqueles da aristocracia, trata-se da virtude. O justo é, portanto, certo tipo de proporcional. [...]
Com efeito, o proporcional é mediano e o justo é proporcional. [...]
O justo é, portanto, o proporcional e o injusto aquilo que transgride a proporção. Pode-se, assim, incorrer no excesso ou na deficiência, o que é realmente o que ocorre na prática.
Na experiência do indivíduo em comunidade, destaca-se o critério da mediania para o atingimento da justiça. Os indivíduos vivem em comunidade, logo suas relações atingem mais que seus direitos individuais, mas também os direitos da comunidade (ARISTÓTELES, 2014, p. 189-191):
O justo, porém, nas transações contratuais entre particulares, embora estabeleça certa igualdade, e o injusto, certa desigualdade, não é o igual de acordo com a proporção geométrica, mas de acordo com a proporção aritmética. Com efeito, não faz qualquer diferença se alguém bom trapaceou alguém mau ou se este trapaceou aquele. [...]; a lei apenas contempla a natureza característica do dano, tratando as partes como iguais, apurando simplesmente se alguém praticou injustiça enquanto o outro indivíduo a sofreu, e se alguém produziu o dano enquanto alguém foi por ele atingido. Por conseguinte, como o injusto aqui é o desigual, o juiz se empenha em torná-lo igual, porquanto alguém foi ferido, tendo o outro o ferido, ou alguém matou e o outro foi morto, sendo neste caso a distribuição do sofrer e do fazer desigual; nesta conjuntura, o juiz se empenha em torná-los iguais mediante a punição por ele imposta, retirando o ganho. [...]
Assim, enquanto igual é uma mediania entre mais e menos, ganho e perda são respectivamente o mais e o menos contrariamente, mais bem e menos mal sendo ganho, e o contrário, a perda; e como sendo o igual, que declaramos ser o justo, constitui mediania entre eles, conclui-se que a justiça corretiva será mediania entre perda e ganho.
Eis a razão, porque, em caso de disputas, recorre se ao juiz. [...] De fato, o juiz é como se fosse a justiça dotada de alma. Outro motivo para buscar os juízes é para que ele estabeleça a mediania, pelo que, efetivamente, em alguns lugares, chamam-se os juízes de mediadores, pois eles atingem a mediania, segundo lhes parece, atingem o justo. É de se concluir, portanto, que o justo é uma espécie de mediania na medida em que o juiz encarna essa mediania.
Aristóteles via uma sincronia entre o justo proveniente da lei e o justo natural. Pode-se compreender que a justiça, sob a filosofia aristotélica, converte-se na prática racional das virtudes voltadas ao exterior, de um ser humano ao próximo. Já o juiz traz a mediania necessária à vida harmônica em sociedade, numa compreensão de que a lei traduz “o interesse comum de todos, [...] de sorte que [...] justo significa aquilo que produz e preserva a felicidade e as partes componentes desta da comunidade” (ARISTÓTELES, 2014, p. 179-181).
A visão aristotélica da justiça recebeu vigor filosófico quase 1700 anos depois na obra de Tomás de Aquino, padre católico que viveu de 1225 a 1274 d.C. (Aquino é o seu local de nascimento, na região central da Itália). O filósofo italiano trouxe um exame minucioso da experiência humana em suas obras, incluindo o estudo da justiça, que considerava uma ação racionalmente sequencial à prudência. Aquino aborda o campo concreto dessas virtudes, analisando-as com o fim de prover efetividade aos direitos fundamentais (direito à vida, à integridade corporal, direito de propriedade, direito à reputação, à liberdade de deslocamento etc.), dos quais a justiça exige o respeito e a promoção (TOMÁS DE AQUINO, 2012, p. 43).
A principal obra de Tomás de Aquino, denominada Suma Teológica, é possivelmente o maior tratado já escrito sobre a vida, a experiência humana e a religiosidade, com uma revisão bibliográfica de extensão dificilmente imaginável em tempos atuais. No Tomo VI, o autor trata, dentre outros temas, da justiça. Sob a ótica do autor, a justiça divide-se em quatro partes, que ele apresenta como a justiça propriamente dita, as partes integrantes da justiça, o aperfeiçoamento da justiça e os preceitos da justiça. O estudo da justiça, por sua vez, apresenta quatro dimensões, representadas pelo direito, pela justiça em si mesma, pela injustiça e pelo julgamento. Das principais questões de seu estudo da justiça, interessam particularmente a este trabalho o exame do direito como objeto da justiça e da divisão entre direito natural e positivo.
O tema do direito como objeto da justiça é, infelizmente, pouco tratado na academia contemporânea, o que denota a relevância da sua retomada. A beleza reflexiva da proposição é trazida por Aquino na resposta oferecida à questão 57, artigo 1, da Súmula Teológica (TOMÁS DE AQUINO, 2012, p. 46-48):
é próprio à justiça ordenar o homem no que diz respeito a outrem. Implica, com efeito, uma certa igualdade [...]. Ora, a igualdade supõe relação a outrem. As demais virtudes, ao contrário, aperfeiçoam o homem somente no que toca a si próprio. [...] A retidão, porém, na ação da justiça, mesmo sem considerar a referência ao agente, se constitui pela relação com o outro. Com efeito, temos por justo em nosso agir aquilo que corresponde ao outro, segundo uma certa igualdade, por exemplo, a remuneração devida a um serviço prestado. Em conseqüência, o nome de justo, que caracteriza a retidão que convém à justiça, dá-se àquilo que a ação da justiça realiza, sem levar em conta a maneira de proceder de quem age. Nas outras virtudes, ao contrário, a retidão é determinada tão somente pela maneira de proceder de quem age. Eis por quê, de modo especial e acima das outras virtudes, o objeto da justiça é determinado em si mesmo e é chamado justo. Tal é precisamente o direito. Toma-se, assim, manifesto que o direito é o objeto da justiça. [...] portanto, deve-se dizer que é habitual que os nomes sejam desviados de sua acepção primitiva para significar outras coisas. Assim o termo ‘medicina’, foi empregado primeiro para designar o remédio ministrado ao enfermo para curá-lo; depois foi aplicado à arte de curar. Assim também, a palavra ‘direito’ foi empregada primeiramente para significar a própria coisa justa; em seguida, estendeu-se à arte de discernir o que é justo; ulteriormente, passou a indicar o lugar onde se aplica o direito ao dizer, por exemplo, alguém comparece ao ‘juri’; finalmente, chama-se ainda direito o que foi decidido por quem exerce a justiça, embora seja iníquo o que foi decidido. [...] deve-se dizer que na mente do artista preexiste a razão da obra a realizar, a qual se chama a regra da arte. Assim também, da obra justa a ser determinada pela razão, preexiste na mente uma razão, que é uma certa regra da prudência. Quando escrita, dá-se-lhe o nome de lei. Pois, a lei, segundo Isidoro, é uma ‘constituição escrita’. Por isso, a lei não é propriamente o direito, mas a regra do direito. [...] deve-se dizer que a justiça implica igualdade. Ora, como não podemos retribuir a Deus o equivalente ao que dele recebemos, não podemos, conseqüentemente, dar-lhe o que é justo, no sentido perfeito da palavra. Por isso, a lei divina não se diz propriamente o direito, mas o dever sagrado, pois basta que demos a Deus aquilo que podemos. Contudo, a justiça impele o homem a retribuir a Deus, tudo quanto pode, submetendo-lhe inteiramente a sua alma.
É adequado dizer que Tomás de Aquino, ao responder questões postas por jurisconsultos romanos e compiladas no Digesto Justiniano, apresenta o direito como objeto da justiça e distingue-o da lei, buscando conciliar as tradições do direito romano, do pensamento cristão e da ética aristotélica. O justo, assim, é o resultado da retidão das ações do homem no mundo real, que podem ser quantificadas no direito. A justiça é uma virtude e o direito é o resultado esperado pela retidão da sua prática. Tal qual Aristóteles, o autor faz a conjugação do direito natural, o justo natural, com “o que é devido”, o justo legal. Aquino ainda faz um exame dos “direitos fundamentais da pessoa” à luz do objeto da justiça, sendo considerado por alguns como o criador do conceito de direitos humanos.
No objetivo da melhor concepção da prática da justiça é indispensável o exame da obra de John Mitchell Finnis, professor australiano da Universidade de Oxford, nascido em 1940. Suas principais obras, Lei Natural e Direitos Naturais, de 1980, e Aquinas, de 1998, trazem uma roupagem contemporânea ao estudo tomista da justiça, por muitos considerado complexo. Finnis escreve de forma a mitigar as diferenças linguísticas provocadas pela passagem de mais de 700 anos desde a Súmula Teológica.
O jurista traz outra nomenclatura para a aplicação justa do Direito, que chama de razoabilidade prática. Em verdade, com esse parâmetro o autor não se distancia da virtude aristotélica da prudência (phronesis), mas a apresenta sob linguagem melhor compreensível aos estudos jurídicos contemporâneos. Além disso, verifica-se essencialmente a conexão de seus escritos com Tomás de Aquino (PINHEIRO; NEIVA, 2020, p. 229):
A razoabilidade prática compreende várias instâncias. Aquino cita 3 delas: (1) prudência pessoal; (2) prudência doméstica/familiar; e (3) prudência política, praticada pela autoridade e por cidadãos quando sua ação tiver repercussão política. [...] Portanto, inserir o bem comum na razoabilidade das ações individuais pela virtude da justiça, confere a essa concepção ética uma solidez política substancial. A razoabilidade prática é uma virtude moral que ordena a ação individual à consideração de todos os bens humanos, ordenando todas as virtudes. A prudência, nesse caso, se volta ao bem comum como superior ao bem individual.
Para Finnis, que foi orientando de Hebert Hart, a razoabilidade prática dá-se pela exclusão das autopreferências arbitrárias nas ações cotidianas, o que denotaria uma tendência natural à busca da justiça. Se o direito é o objeto da justiça, como defende Aquino, a razoabilidade prática seria uma medida para o atingimento do justo. Requerer-se-ia outro trabalho para detalhar as justiças distributiva e comutativa na visão de Finnis, no entanto cabe destacar que o autor traz ideias interessantes, por exemplo, na aplicação da justiça comutativa à tributação (FINNIS, 2011, p. 184):
as pessoas que detêm autoridade pública (na terminologia relapsa dos últimos séculos, ‘o Estado’) devem aplicar a justiça comutativa aos que estão sujeitos à sua autoridade. Um sistema de tributação e bem-estar social pode ser distributivamente justo; sua administração legal e regular é uma questão de justiça comutativa devida a todos aqueles que têm direitos, poderes, imunidades ou deveres verificáveis. (tradução nossa)
Segundo o autor, a justiça resulta de três elementos que, quando conjuntamente encontrados em determinado fato observado no mundo fenomênico, traduzem o justo. Os elementos da justiça “finnisiana” podem ser descritos como o olhar ao próximo, o dever e a igualdade. O olhar ao próximo, em verdade uma tradução possível da expressão “other-directedness”, identifica-se pela ação do indivíduo com a compreensão de que há um outro, motivo pelo qual alguns autores traduzem como intersubjetividade. Mas, em verdade, é um pouco mais que isso; no intuito do justo é a ação que visa o bem de outrem. O dever (duty) traz o que é devido a cada um nas diversas relações humanas. É uma conduta de razoabilidade entre uma pessoa e outra, com o intuito de prover o que é próprio a cada um. Evitar o mal, o errado, o vício é uma forma de evitar a injustiça, implicando que o justo pode ser alcançado tanto pela ação quanto pela omissão. Há justiça tanto no aspecto benéfico, na distribuição dos bens e direitos, quanto nos ônus, na responsabilidade pelo trabalho e pelas obrigações. A igualdade (equality), em dias atuais invocada sob vieses arbitrários e ideológicos, é, em verdade, um elemento justo de proporcionalidade e de equilíbrio. O exame necessário, no intuito da igualdade, deve oferecer uma comparação que torne explícito se determinada consideração de direitos cria uma igualdade ou uma desigualdade, uma proporção ou uma desproporção.
Diversos autores trazem perspectivas do valor “justiça” conforme suas linhas de pensamento, contudo o levantamento dos autores mais conhecidos do Direito Natural permite uma boa noção para a prática da justiça, com base na razoabilidade prática das ações humanas, afastando influências políticas e ideológicas de outras vertentes doutrinárias.
4 O efetivo acesso à justiça
Efetivamente, prover acesso à justiça deve pressupor prover justiça. No capítulo anterior, sob as bases do Direito Natural, estabeleceram-se alguns parâmetros lógico-racionais para a consecução deste valor constitucional supremo. Sob Aristóteles, há uma comunhão entre o justo legal e o justo natural, devendo as leis constituírem o meio de expressão do direito. Há uma busca contínua pela justiça a partir da consideração de proporcionalidade entre as coisas e os indivíduos, uma proporcionalidade quádrupla, como se refere o filósofo grego. A mediania é o resultado esperado da prática da justiça, é a expressão da manifestação racional de acordo com o caso concreto. A prática racional do direito posto deve conduzir à mediania nas relações entre os indivíduos, o que resultará na justiça necessária à vida em comunidade. Tomás de Aquino aprofunda o sentido da proporcionalidade e da mediania para a aplicação aos direitos fundamentais, partindo do reconhecimento do direito como objeto da justiça. O filósofo italiano percorre, da justiça ao direito, um interessante caminho, passando pela igualdade (proporcional) obtida pela razão e chegando à concretização do direito. De outra forma dito, da justiça emerge um princípio de igualdade, que, através da razão, deve promover o direito. A prática jurídica, especialmente nas decisões que envolvem outras vidas, pressupõe a prudência, representada pelo juiz e pela lei. A versão mais atualizada da justiça, dada por John Finnis, dispõe sobre a prudência na aplicação do Direito como uma função de razoabilidade prática. A prática ética no campo do Direito conduz à justiça entre os indivíduos e entre esses e a comunidade. Uma forma de atingimento do ideal justo, segundo o filósofo de Oxford, é a exclusão das autopreferências arbitrárias nas mais variadas decisões a que submetido o indivíduo. Nesse sentido ele elenca três elementos essenciais à justiça: o olhar ao próximo, o dever e a igualdade. Somente quando simultaneamente verificados na situação social concreta, como na resolução de um conflito, tem-se a justiça.
Como, então, prover acesso à justiça no sistema jurídico contemporâneo? Inicialmente, não se pode conceber “acesso” como uma permissão potencial ou restritiva. Um acesso à justiça com limitações será um acesso à injustiça. Da mesma forma, não se pode compreender “acesso à justiça” como a possibilidade de acessar um sistema que, na prática, é injusto. Um clássico sobre o acesso à justiça bastante explorado no Brasil é a obra de Mauro Cappelletti, cuja tradução foi publicada em 1988. O jurista italiano primeiramente observa a necessidade de uma efetiva promoção do direito fundamental de acesso à justiça, inclusive de forma alternativa ao sistema judicial estatal (CAPPELLETTI, 1988. p. 12-13):
O enfoque sobre o acesso - o modo pelo qual os direitos se tornam efetivos - também caracteriza crescentemente o estudo do moderno processo civil. A discussão teórica, por exemplo, das várias regras do processo civil e de como elas podem ser manipuladas em várias situações hipotéticas pode ser instrutiva, mas, sob essas descrições neutras, costuma ocultar-se o modelo freqüentemente irreal de duas (ou mais) partes em igualdade de condições perante a corte, limitadas apenas pelos argumentos jurídicos que os experientes advogados possam alinhar. O processo, no entanto, não deveria ser colocado no vácuo. Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais [...]; que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada [...] e que qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva - com que freqüência ela é executada, em benefício de quem e com impacto social.
O acesso à justiça deve ser considerado a partir de uma expressão substantiva da justiça, oferecendo forma e conteúdo de justiça a todos que a busquem. Pode-se citar, por exemplo, a necessária efetivação do princípio constitucional da razoável duração do processo, nunca verificada no país da “constituição cidadã”. Cappelletti indica outras medidas, que apresenta como ondas históricas do acesso à justiça (CAPPELLETTI, 1988. p. 31):
Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso à justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo.
A terceira onda citada pressupõe meios de concretização do direito fundamental de acesso à justiça, vencendo as barreiras criadas pelo monopólio da jurisdição estatal. A chamada “justiça multiportas” é um conceito que pode ter chegado para derrubar essas barreiras com eficiência, redução de custos e, especialmente, efetivo acesso à justiça. A prestação jurisdicional estatal encontra-se em uma crise nunca vista, marcada pelo excessivo tempo de duração dos processos no judiciário, muitas vezes superior a uma década, e pela crescente discricionariedade das decisões judiciais, flutuando entre a desconexão com a realidade e a influência político-ideológica (GHISLENI, 2018, p. 25-26):
A Emenda Constitucional nº 45/2004 [...] demonstra a crença na solução judicial dos conflitos. Entretanto, com o nítido aumento da esfera de abrangência das intervenções judiciais no destino dos indivíduos, de grupos e do próprio Estado, o Judiciário não soube assumir este perfil [...]. Na busca pela solução do conflito surge a lide processual; ‘todavia, tratar o conflito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda’. O maior problema da magistratura é que ela decide litígios que lhe são alheios, não levando em consideração, salvo raras exceções, o que as partes sentem e suas expectativas. ‘Decidem sem responsabilidade, porque projetam a responsabilidade na norma. Decidem conflitos sem relacionar-se com os outros’. Diante disso, o âmbito de crescimento da discricionariedade do juiz é muito amplo e o grau de poder conferido por ela é variável e específico em relação ao contexto. Deste modo, há forte conexão entre a ideia de conflito e de jurisdição.
Com o crescente descrédito da população no judiciário, tanto pelo conteúdo quanto pela demora das decisões, urge a necessidade de uma solução de concretização do direito de acesso à justiça por outros meios, alheios ao comando do judiciário, mas juridicamente validados pelo Estado. Nesse contexto, a justiça multiportas compreende o judiciário como uma porta de acesso à justiça, mas não a única, contemplando métodos alternativos de resolução de conflitos, como a arbitragem, a transação, a mediação e a conciliação (SPENGLER; SCHWANTES, 2020, p.19):
Os benefícios dos métodos alternativos contribuem de maneira expressiva para redução do litígio, visto que através da consensualidade pode-se gerar uma resposta eficaz ao problema, contribuindo de maneira efetiva para a pacificação social e estabilização das relações, além de viabilizar a retomada da confiança no sistema jurídico.
O objetivo de desenvolvimento sustentável de acesso à justiça pode se realizar a partir dos meios alternativos de resolução de conflitos se efetivamente oferecerem justiça a seus usuários. Em um meio autocompositivo, as partes podem buscar a comunhão entre o justo legal e o justo natural, podem racionalmente chegar ao direito que lhe é aceitável, observadas as limitações normativas. Além disso, têm a oportunidade de buscar a mediania na prática das relações humanas, conflituosas por natureza e agravadas por uma sociedade fortemente orientada para a ausência de valores e princípios. Através de um método adequado à resolução do conflito, as partes (e o terceiro “neutro”) podem trilhar o percurso da justiça através do Direito, movidos pela razão prática e pelo desejo de concretização do direito em controvérsia. Na abordagem ética do conflito jurídico, os indivíduos podem trabalhar com os elementos essenciais à justiça, como o olhar ao próximo, o dever e a igualdade. As pessoas podem compreender que com outras convivem dentro de uma comunidade e podem perceber que a justiça é o valor maior a ser buscado na concretização de seus direitos. Em outras palavras, podem experenciar um efetivo acesso à justiça.
5 Considerações finais
Toda unanimidade é burra, dizia Nelson Rodrigues. Se assim for, poderia a sociedade se perguntar como são largamente divulgados e seguidos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, sem contraposições. Dentre os seguidores constam governos centrais, grande mídia e, pasme-se, o meio universitário, que deveria ser movido pelo questionamento. Há diversos objetivos no mínimo questionáveis sobre as ações globalistas de organismos internacionais nos países membros, realizadas sem consulta à população. Há ações ocultadas do grande debate público, com o auxílio de interesses políticos e econômicos, ao mesmo tempo em que há uma cumplicidade da mídia na exaltação de medidas com caráter claramente ideológico, segregando a sociedade e apresentando estatísticas em descompasso com a realidade, como observado neste trabalho.
O objetivo de desenvolvimento sustentável de acesso à justiça não foge a essa realidade, sendo resumido ao número de prisões de pessoas de determinado sexo ou cor da pele, ou de encarceramento geral em números absolutos, ignorando que o Brasil tem a quinta população do mundo e uma taxa de prisões que não está entre as vinte maiores. Os relatórios da ONU, além dessas apresentações ideológicas, manifestam preferência político-partidária. Tecnicamente, ainda cometem outro erro, reduzindo “acesso à justiça” a “acesso ao judiciário”. No entanto, é necessário, como dizia Cappelletti (CAPPELLETTI, 1988, p. 71), que o acesso à justiça compreenda além da esfera de representação judicial. Passados cinquenta anos da obra citada, isso está bastante claro, bem como começa a aparecer a necessidade de um efetivo provimento de justiça no sentido da prática daquilo que é justo.
A justiça multiportas, na qual o judiciário é uma porta possível, mas não a única, afastando a obrigatoriedade de o indivíduo resolver seus conflitos pela via judicial estatal, pode ser um caminho para a prática da justiça. O objetivo de desenvolvimento sustentável de acesso à justiça deve contemplar os métodos adequados (ou alternativos) de resolução de conflitos, que podem prover melhor justiça ao usuário, oferecendo a oportunidade de cada um compreender o que é o justo em sua experiência de vida. É uma forma de participação democrática do cidadão no intuito da solução consensual dos conflitos em que é parte. Um meio adequado de resolução de conflitos pode propiciar ao indivíduo a satisfação de, ao mesmo tempo, participar da comunidade - e compreendê-la, melhorá-la - e receber o que lhe é justo no direito em controvérsia.
A sociedade pode e deve seguir no sentido da concretização do direito fundamental de acesso à justiça moldando seu próprio caminho sem a imposição jurisdicional do Estado, mas com suas decisões juridicamente tuteladas. O resultado pode ser uma efetiva busca pelo justo nas relações entre os indivíduos e destes com a comunidade, permitindo um desenvolvimento sustentável de equilíbrio entre a preservação dos recursos naturais o desenvolvimento do homem, deixando de lado o discurso das sombras e iluminando-se com o sol da realidade.