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Constitucionalização da parentalidade socioafetiva.

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Agenda 23/09/2024 às 15:53

O STF reconheceu a possibilidade de multiparentalidade, com a coexistência da filiação socioafetiva e biológica, desde que atenda ao melhor interesse do descendente. O voto divergente do Ministro Edson Fachin precisou os contornos da filiação socioafetiva.

Sumário: 1. O caso e a tese jurídica adotada. 2. Recuperando os requisitos da parentalidade socioafetiva na doutrina jurídica brasileira. 3. Distinção entre os direitos à filiação socioafetiva e ao conhecimento da origem genética. 4. Não há falsidade ou erro no registro civil da parentalidade socioafetiva. 5. As precisões do voto divergente do Min. Edson Fachin sobre a filiação socioafetiva. 6. Consequências: reconhecimento da socioafetividade e da multiparentalidade (ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais e mães).


1. O caso e a tese jurídica adotada

Em 21 de setembro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (doravante, STF) concluiu o julgamento do RE 898.060, Rel. Min. Luiz Fux, com repercussão geral reconhecida, tendo sido fixada, por maioria, a seguinte tese jurídica:

“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

O Min. Luiz Edson Fachin - acompanhado pelo Min. Teori Zavascki – apresentou voto substancialmente divergente do Relator. Vencidos, quanto à solução a ser adotada no caso concreto, aderiram ao final à redação jurídica geral aprovada pela maioria (divergiram desta os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio).

Houve convergência quanto aos fundamentos constitucionais, notadamente os princípios explícitos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º), além dos princípios implícitos da busca da felicidade e da afetividade nas relações parentais.

O item 13 da Ementa do Acórdão indica que, mercê desses fundamentos constitucionais, impõe-se o reconhecimento conjunto da filiação socioafetiva e da filiação biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo, “quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos”. Todavia, esse requisito de melhor interesse, que também comparece como hipótese admissível de multipropriedade no voto divergente do Min. Edson Fachin, não figurou na redação da tese jurídica geral.

Eis, resumidamente, o caso concreto que serviu de paradigma para a tese jurídica acima transcrita: F. G., à época com dezenove anos de idade, ingressou com ação de investigação de paternidade, cumulada com pedido de alimentos e retificação de registro civil, contra A. N., alegando que era filha biológica deste, apesar de ter sido criada pelo marido de sua mãe, que a registrou como filha, quando nasceu. Exame de DNA consensual confirmou o vínculo biológico. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido. O Tribunal estadual reformou a sentença, entendendo que, apesar do vínculo biológico, a paternidade socioafetiva consolidada em largo tempo deveria prevalecer. O mesmo Tribunal, apreciando embargos infringentes, fez prevalecer a paternidade biológica, com alteração do registro de nascimento e fixação de obrigação alimentícia desde a citação até ao final do curso universitário da autora recorrida. Irresignado, o genitor biológico interpôs recurso extraordinário ao STF.

Interessa-nos refletir sobre os argumentos e os enquadramentos constitucionais expostos no voto divergente do Min. Luiz Edson Fachin, relativos à parentalidade socioafetiva, que são essencialmente os mesmos que vimos defendendo em sede doutrinária, antes e após essa importante decisão.


2. Recuperando os requisitos da parentalidade socioafetiva na doutrina jurídica brasileira

A socioafetividade, como categoria jurídica, é de origem recente no direito brasileiro. Em grande medida resultou das investigações das transformações ocorridas no âmbito das relações de família, máxime das relações parentais, desde os anos 1970. Permitam-nos destacar três trabalhos nessa direção, em momentos distintos, que confluíram para demonstrar a dimensão jurídica da afetividade nas relações de filiação, no direito brasileiro, antes e após a Constituição de 1988:

Os estudos jurídicos produzidos, desde então, passaram a salientar o papel determinante da socioafetividade na configuração do contemporâneo direito de família.

A socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com os vínculos de origem biológica. A evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo. Os termos “socioafetividade” e seus correlatos congregam o fato social (“socio”) e a incidência do princípio normativo (“afetividade”).

Não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. Interessam, como seu objeto próprio de conhecimento, as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecer a incidência de normas jurídicas e, consequentemente, deveres jurídicos. O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe tomando-o como referência. Uma pessoa não pode ser obrigada pelo direito a ter afeto real por outra, até mesmo entre pais e filhos. Mas, o direito pode instituir deveres jurídicos e impor comportamentos inspirados nas relações afetivas reais.

Qualquer relação parental/filial é socioafetiva, porque brota de raiz cultural adotada pelo direito. Nesse sentido, a parentalidade socioafetiva é gênero, da qual a parentalidade biológica e a parentalidade socioafetiva em sentido estrito são espécies.

A parentalidade socioafetiva consolidou-se na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras orientada pelos seguintes eixos: 1. Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica (socioafetiva); 2. Igualdade de direitos dos filhos biológicos e socioafetivos; 3. Não prevalência a priori ou abstrata de uma filiação sobre outra, dependendo da situação concreta; 4. Impossibilidade de impugnação da parentalidade socioafetiva em razão de posterior conhecimento de vínculo biológico; 5. O conhecimento da origem biológica é direito da personalidade sem efeitos necessários de parentesco.

Orientados pela necessidade de segurança jurídica, com a massa de dados e informações obtidos de investigações variadas, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais foram progressivamente construindo requisitos que conformassem essa categoria jurídica, nas relações parentais, notadamente de filiação. Esses requisitos são interligados e podem ser assim enunciados:


3. Distinção entre os direitos à filiação socioafetiva e ao conhecimento da origem genética

Em estudo específico sobre essa temática, expressamos nosso ponto de vista quanto à necessidade dessa distinção, tendo em vista se tratar de direitos subjetivos e deveres jurídicos que não se confundem6.

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga.

Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.

A evolução do direito conduz à distinção, que já se impõe, entre pai e genitor ou procriador. Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Ao ser humano, concebido fora da comunhão familiar dos pais socioafetivos, e que já desfruta do estado de filiação, deve ser assegurado o conhecimento de sua origem genética, ou da própria ascendência, como direito geral da personalidade.

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. A paternidade e a maternidade derivam do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). Na hipótese de inseminação artificial heteróloga, o filho pode vindicar os dados genéticos de dador anônimo de sêmen que constem dos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade.

Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não determina a paternidade jurídica. O biodireito depara-se com as consequências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.


4. Não há falsidade ou erro no registro civil da parentalidade socioafetiva

O art.1.604 do Código Civil estabelece que ninguém poderá vindicar estado civil distinto do que conste do registro civil, salvo provando erro ou falsidade. Portanto, a norma contém a regra da imutabilidade do registro civil e impedimento da pretensão para desfazê-lo. Também contém as exceções a essa regra (erro e falsidade).

O erro é o desvio não intencional da declaração do nascimento, concernente ao próprio ato de registro (erro material), imputável ao oficial de registro, ou da informação do declarante legitimado (art. 52. da Lei n. 6.015/1973), concernente à atribuição da paternidade ou maternidade da pessoa. O erro da declaração pode ter derivado de outro erro, como na hipótese de troca voluntária ou involuntária de recém-nascidos por parte do hospital onde ocorreu o parto, invalidando o estado de filiação tanto em face do pai quanto em face da mãe7.

A falsidade, ao contrário do erro, é a declaração intencionalmente contrária à verdade do nascimento. É atribuir a si ou a outrem (declarantes outros que não os pais) a maternidade ou a paternidade do nascido, ou declarar nascimento inexistente.

O registro de nascimento é definitivo, pouco importando se a origem da filiação declarada é biológica ou socioafetiva. É declaração consciente de quem faz. Assim, não é livremente disponível pelo pai registral, máxime quando o casamento se extingue. Não há erro de pessoa, porque o declarante sabia exatamente que a criança não era seu filho biológico. Não há falsidade porque a lei não exige que o registro civil apenas contemple a origem biológica. Não pode o autor da declaração que pretende falsa vindicar a invalidade do registro do nascimento, conscientemente assumida, porque violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factum proprium.


5. As precisões do voto divergente do Min. Edson Fachin sobre a filiação socioafetiva

Em seu voto divergente, o Min. Edson Fachin procurou precisar os pontos essenciais de sua divergência, em sintonia com a construção doutrinária dominante e sua recepção jurisprudencial, tanto em relação ao caso concreto, quanto – o mais importante – em relação à tese jurídica geral (a qual terminou por adotar orientação estranha à evolução do direito brasileiro; o Ministro Relator invoca a experiência do Estado de Louisiana, nos Estados Unidos, para concluir pela possibilidade jurídica de multiparentalidade). São eles, incluindo os expostos na antecipação de seu voto:

O voto conclui pelo provimento parcial do recurso extraordinário do genitor biológico para que, prevalecendo (no caso) os efeitos jurídicos do vínculo socioafetivo, sem a retificação do registro civil pretendida, fique resguardado o direito da recorrida de reconhecimento de sua origem biológica, porém sem fins de parentesco.

O voto condutor do Ministro Relator, todavia, orientou-se pela admissibilidade da multiparentalidade (dois ou mais pais ou mães socioafetivos e biológicos), pelas razões já expostas. A tese jurídica geral adotada, como salientado, não incluiu o requisito de excepcionalidade, quando presente o melhor interesse do descendente, apesar de referido no item 13 da Ementa do Acórdão.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Constitucionalização da parentalidade socioafetiva.: Em torno de um voto divergente do Ministro Edson Fachin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7754, 23 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105913. Acesso em: 22 dez. 2024.

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