A Constituição Federal, no inciso XXXV do artigo 5°, assevera que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se, pois, de lídimo direito fundamental. Doutrina francamente majoritária atribui à norma em comento a denominação de “princípio da inafastabilidade jurisdicional”. Inobstante, conforme se passará a expor, a terminologia não é a mais adequada.
Antes de adentrar no mérito, é de se salientar que o tratamento dado à jurisdição1 guarda estreita relação com o perfil do Estado (ESPINDOLA, 2019, p. 20). Ora, o Estado moderno e a jurisdição estatal, sabe-se, foram germinados como forma de arrostar o pluralismo da sociedade medieval, em que prevalecia a descentralização do poder, com diversas fontes jurídicas (ESPINDOLA, 2019, p. 21). Sem qualquer pretensão de esgotamento do assunto, posto que já largamente tratado pela literatura2, o que cumpre realçar é o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário quando do advento do Estado Democrático de Direito, verificando-se uma “vocação do nosso tempo para a jurisdição” (ESPINDOLA, 2019, pp. 28 et seq).
Trocando em miúdos, pode-se traduzir a mencionada “vocação” por “explosão de litigiosidade”, aqui compreendida enquanto “uma preferência social em resolver os conflitos mediante a atuação de um terceiro (Estado), titular do poder coercitivo e da violência legal” (LUCENA FILHO, online). Os motivos são os mais variados possíveis. A título exemplificativo, Boaventura, Maria Manuel e João Pedroso (1996, p. 39) asseveram que “o nível de desenvolvimento econômico e social condiciona a natureza da conflituosidade social e interindividual, a propensão a litigar, o tipo de litigação”.
Velejando por esta singra, interessante a perspectiva de Albano Marcos Bastos Pêpe (2019, p. 11), para quem
Renunciamos no mais das vezes a assumir a responsabilidade de nossos atos frente ao outro, frente à sociedade, como também frente aos órgãos judiciais. A perda progressiva da autonomia face a situações conflitivas pode nos fazer ‘esquecer’ que as mesmas são componentes fundamentais para a evolução de nossa sociabilidade, de nossa capacidade de conviver com o outro, ou seja, com a diferença, com a alteridade, por nos sentirmos sempre submetidos a jurisdições.
Destarte, é recorrente o pensamento de que apenas se faz justiça por meio do Judiciário, por meio de uma sentença. Afinal, “sentenciar, não raras vezes, é mais cômodo e fácil” (SPENGLER, 2019, p. 136)3. Mas devagar com o andor, que o santo é de barro...
Justiça é, insofismavelmente, um conceito plurívoco, variando conforme a corrente filosófica adotada. Entrementes, para fins de desenvolvimento do presente texto, filia-se ao entendimento de que “a justiça harmoniza as pretensões e interesses conflitantes na vida social da comunidade” (PISKE, 2010, online).
Isto posto, mostra-se significativa a menção ao Sistema Multiportas, um dos focos deste singelo texto. “Pressupõe a ideia de que as diferentes interações litigiosas podem ser resolvidas sob o albergue do direito por métodos variados. Nesse caminho, há a autotutela, métodos autocompositivos”.
Neste diapasão, é de clareza meridiana a preocupação do Código de Processo Civil de 2015 em estimular a Justiça Multiportas. Apenas para ilustrar, possível trazer a proscênio seu artigo 3°, parágrafo 2°, de compasso com o qual “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”. Estimula-se, desta feita, a desjudicialização dos conflitos.
Com supedâneo em tudo quanto vem sendo exposto, aduz Toffoli (online): “À vista das diversas formas e tônicas que os conflitos podem assumir numa sociedade tão complexa quanto a brasileira, nota-se que nem sempre o processo judicial contencioso se revela o meio mais adequado para suas resoluções”. Assim, prefere-se falar em acesso à ordem jurídica justa, que concerne, em última análise, “ao acesso ao meio mais adequado à solução dos conflitos” (TOFFOLI, online).
Não se pode olvidar, nesta quadra, os quatro escopos da jurisdição: jurídico, social, educacional e político (NEVES, 2020, pp. 80-81). Não raras vezes, “alguns juízes optam pela prolação da sentença, estabelecendo ‘a paz do direito’, ao invés de tentarem conciliar as partes e alcançar a verdadeira ‘pacificação social’” (SPENGLER, 2019, p. 136). Por que não, então, incentivar o uso das demais portas do Direito, notadamente quando estas têm o condão de resolver, a contento, a lide [jurídica e sociológica]? Justiça não se resume a Judiciário, nem com este se confunde.
Conclui-se, pois, que, para além da inafastabilidade jurisdicional, deve-se sustentar (mormente com o sistema multiportas) um verdadeiro direito de acesso à justiça (ou à ordem jurídica justa), sob pena de fazermos com que a realidade de “As vespas” permaneça atual, mesmo depois de tantos anos...
“Jurisdição pode ser entendida como a atuação estatal visando à aplicação do direito objetivo ao caso concreto, resolvendo-se com definitividade uma situação de crise jurídica” (NEVES, 2020, p. 59). O Brasil adotou o sistema inglês [da unidade] da jurisdição, o que significa dizer que o Judiciário concentra em suas mãos o monopólio da jurisdicional (ALEXADRE; DEUS, 2017, p. 718).︎
Nesse sentido, cf., com proveito, STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (org.). Os modelos de juiz: Ensaios de Direito e Literatura. São Paulo: Atlas, 2019.︎
Lembro, aqui, da tragédia grega “As vespas”, de Aristófanes, que representa verdadeira crítica ao sistema judiciário grego ora vigente... Filôcleon, personagem principal, nutria um vício pelas sessões do tribunal. Tinha uma necessidade de sempre julgar, e de modo mecânico, esquecendo algo essencial: pessoas seriam impactadas por suas decisões...︎