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Autocomposição de conflitos como forma de extinção do crédito tributário.

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Agenda 04/09/2023 às 19:22

4. AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS COMO FORMA DE EXTINÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

É nítido que o Poder Judiciário passa por uma crise no que tange à prestação jurisdicional. Said Filho explica:

"Como decorrência da democratização das relações sociais, tem-se a quantificação das demandas submetidas ao Estado, na medida em que surgem novos atores das relações sociais – com o reconhecimento dos direitos sociais, vários grupos e classes puderam ser protagonistas de disputas, exigindo do ente estatal resposta às exigências formuladas. Além do que não se trata apenas de um aumento quantitativo da atuação estatal, mas também a exigência por respostas até então não proferidas em termos de conteúdo, por se tratar de direitos jamais protegidos pelo Estado e políticas sociais até então não ofertadas." (SAID FILHO, 2017, p. 6)

A sociedade atentou para o fato de que é insustentável a exclusividade do Poder Judiciário como detentor do mecanismo de acesso às soluções de conflitos, mormente considerando que a vastidão de processos aumenta dia após dia (MARQUES e OLIVEIRA, 2020, p. 291).

Em vista disso, a autocomposição tem se destacado no ordenamento jurídico pátrio. No entanto, chama a atenção o fato de que o próprio Estado, no que diz respeito às lides tributárias, age de forma contraditória, pois, ao tempo em que fomenta a autocomposição na iniciativa privada, acaba se esquivando de sua utilização no que tange à extinção do crédito tributário, sob o argumento de que o crédito tributário é indisponível (MARQUES e OLIVEIRA, 2020, p. 291).

4.1 Transação: análise do art. 171, caput, do Código Tributário Nacional

O Código Tributário Nacional prevê expressamente a transação como forma de extinção do crédito tributário. Confira-se:

Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

I - o pagamento;

II - a compensação;

III - a transação;

[...]

Nos termos do art. 840, do Código Civil, transação é o negócio jurídico em que as partes, mediante concessões mútuas, extinguem obrigações, prevenindo ou terminando litígios.

Tendo em vista que o crédito tributário constitui patrimônio público, a doutrina tributarista ensina que “a transação somente pode ser celebrada com base em lei autorizativa, editada pelo ente competente pela instituição do tributo de que se tratar” (ALEXANDRE, 2020, p. 555).

O princípio da indisponibilidade do patrimônio público norteia todas as ações da Administração Pública Tributária, razão por que a utilização da transação é pouco utilizada na prática. Nesse sentido, o art. 171, caput, do CTN, elenca quatro requisitos para a transação como causa de extinção do crédito tributário, quais sejam: (i) necessidade de lei; (ii) concessões mútuas; (iii) terminação de litígio; (iv) extinção do crédito tributário.

4.1.1 Requisitos da transação

Vale decompor o art. 171, caput, do CTN, para estudar cada um de seus requisitos.

4.1.1.1 Necessidade de lei

A previsão legal é condição para a realização da transação. Consoante Leandro Paulsen, a referida lei deve emanar de cada um dos entes políticos quanto aos seus próprios créditos tributários (PAULSEN, 2020, p. 445). Acrescente-se que “no silêncio da lei, a transação poderá ser feita na esfera administrativa ou judicial, pois onde a lei não fez restrição não cabe ao intérprete fazê-la” (CARNEIRO, 2020, p. 732).

4.1.1.2 Concessões mútuas

O requisito das concessões mútuas preconiza que as partes envolvidas devem dispor de parcelas de suas pretensões, isto é, as partes abrem mão, ainda que parcialmente, de suas pretensões, chegando a um consenso (SCHOUERI, 2019).

4.1.1.3 Terminação de litígio

De acordo com o CTN, a terminação de litígio, por ocasião da transação, significa o fim do conflito existente. Dessa forma, diz-se que, no Direito Tributário, não existe a figura da transação preventiva, pois a transação é sempre posterior ao litígio (ALEXANDRE, 2020, p. 555).

4.1.1.4 Extinção do crédito tributário

A extinção do crédito tributário se aperfeiçoa quando o contribuinte paga o valor total que foi pactuado com a Administração Pública Tributária (MARQUES e OLIVEIRA, 2020, p. 293).

4.2 Transação x indisponibilidade e supremacia do interesse público

A Administração Pública Tributária é norteada por dois princípios conhecidos como “pedras de toque” do Direito Administrativo: indisponibilidade do interesse público e supremacia do interesse público.

De acordo com conceituada doutrina, o princípio da indisponibilidade do interesse público consiste no estabelecimento de critérios de conduta para impedir que o administrador abra mão do interesse público (CARVALHO, 2017, p. 65) e significa que a Administração "não tem a livre disposição dos bens e interesses públicos, porque atua em nome de terceiros” (CARVALHO FILHO, 2019, p. 112).

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Por seu turno, ao discorrer sobre o princípio da supremacia do interesse público, Carvalho Filho ensina:

“As atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público. E se, como visto, não estiver presente esse objetivo, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade. Desse modo, não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo. [...]” (CARVALHO FILHO, 2019, p. 109).

Os princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público são vistos como dogmas que acabam por dificultar a realização da transação, sendo certo que a doutrina tributarista pontua, até mesmo, que “na prática, a transação sempre aparece combinada com outros institutos” (ALEXANDRE, 2020, p. 555).

Marques e Oliveira entendem que tais princípios provocam um indeterminismo no agir da Administração Pública Tributária, pontuando, no entanto, que o interesse público não deve ser encarado como algo meramente formal, mas como o escopo de que os interesses públicos sejam materialmente efetivados, ou seja, operacionalizando-os com todo o ordenamento jurídico pátrio (MARQUES e OLIVEIRA, 2020, p. 295).

Nessa toada, os estudiosos defendem que a necessidade de recebimento do crédito tributário é interesse público e que essa perspectiva afasta o dogma da renúncia do crédito tributário. Confira-se:

“Uma das formas de operacionalizar os princípios com todo o ordenamento jurídico pátrio é entender que a necessidade de recebimento do crédito tributário é interesse público, retirando, assim, o dogma da renúncia do crédito tributário. Olhar por outro ângulo de análise desse objeto é atender ao diálogo que deve permear o assunto quando se trata de crédito tributário e das necessidades públicas. Isso porque seria um contrassenso acreditar que tanto o princípio da supremacia como o da indisponibilidade do interesse público devem ser interpretados de modo meramente formalista, sem qualquer diálogo entre as normas, como se nenhum outro princípio ou regra existisse.” MARQUES e OLIVEIRA, 2020, p. 295-296)

Por conseguinte, Marques e Oliveira sugerem a adoção do diálogo das fontes para operacionalização dos princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público em cotejo com a transação tributária.

4.3 Análise do art. 32, inc. II, da Lei Federal nº 13.140/2015

O art. 32, da Lei Federal nº 13.140/2015, dispõe:

Art. 32. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver, com competência para:

I - dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública;

II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público;

III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

§ 1º O modo de composição e funcionamento das câmaras de que trata o caput será estabelecido em regulamento de cada ente federado.

§ 2º A submissão do conflito às câmaras de que trata o caput é facultativa e será cabível apenas nos casos previstos no regulamento do respectivo ente federado.

§ 3º Se houver consenso entre as partes, o acordo será reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial.

§ 4º Não se incluem na competência dos órgãos mencionados no caput deste artigo as controvérsias que somente possam ser resolvidas por atos ou concessão de direitos sujeitos a autorização do Poder Legislativo.

§ 5º Compreendem-se na competência das câmaras de que trata o caput a prevenção e a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares.

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Por seu turno, o art. 3º, do CPC/2015, prevê:

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

A leitura do art. 32, da Lei Federal nº 13.140/2015, em conjunto com o art. 3º, §§2º e 3º, do CPC/2015, demonstra que o ordenamento jurídico permite o uso da autocomposição pela Administração Pública. Nesse sentido, o art. 174, do CPC/2015, prevê que os entes federados criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo. Vale conferir:

Art. 174. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo, tais como:

I - dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;

II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;

III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

No entanto, Marques e Oliveira apresentam crítica ao analisarem o art. 38, inc. I a III, da Lei Federal nº 13.140/2015, pois entendem que o legislador criou diversas condições e restringiu a autocomposição na esfera federal a poucos casos, o que dificultaria ainda mais a realização da autocomposição.

Art. 38. Nos casos em que a controvérsia jurídica seja relativa a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a créditos inscritos em dívida ativa da União:

I - não se aplicam as disposições dos incisos II e III do caput do art. 32;

II - as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços em regime de concorrência não poderão exercer a faculdade prevista no art. 37;

III - quando forem partes as pessoas a que alude o caput do art. 36:

a) a submissão do conflito à composição extrajudicial pela Advocacia-Geral da União implica renúncia do direito de recorrer ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais;

b) a redução ou o cancelamento do crédito dependerá de manifestação conjunta do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado da Fazenda. [...]

Constata-se uma timidez na utilização da autocomposição na esfera da Administração Pública como meio de efetivar a transação do crédito tributário, mas Terence et al destacam que, embora a autocomposição tenha sido pouco utilizada na Administração Pública, a legislação brasileira tem empreendido esforços para estimular a sua adoção (TERENCE et al, 2020, p. 2).


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o estudo realizado, evidenciou-se que a autocomposição e a heterocomposição são os dois grandes gêneros dos métodos de solução de conflitos, sendo certo que o primeiro método tem recebido grande espaço no ordenamento jurídico pátrio na última década. As recentes inovações legislativas editadas no Brasil, em especial as normas fundamentais estampadas nos primeiros artigos do CPC/2015 e a Lei Federal nº 13.140/2015, preconizam o uso da autocomposição, por se mostrar instrumento hábil não só para “desafogar” as demandas do Poder Judiciário, mas para efetivamente resolver os conflitos, inclusive as lides tributárias.

Nesse sentido, o Código Tributário Nacional prevê a transação como instrumento legal para a satisfação do crédito tributário, mas este, por constituir patrimônio público, submete-se ao tratamento do Direito Público, em especial à sistemática do Direito Administrativo referente à indisponibilidade do interesse público, fato que reduz a aplicação prática da transação tributária.

Houve êxito na realização dos objetivos propostos na pesquisa, eis que a possibilidade de autocomposição em conflitos como forma de extinção do crédito tributário à luz da Lei Federal nº 13.140/2015, assim como a classificação e as modalidades da autocomposição foram contempladas. Também houve a exposição da necessidade e utilidade dos meios autocompositivos como forma de operacionalizar a transação em matéria tributária.

Retomando a pergunta de pesquisa, detectou-se que a Administração Pública Tributária e o contribuinte podem realizar a autocomposição de seus conflitos, dentro dos limites da legalidade e da preservação do interesse público. Assim, aponta-se a necessidade de um diálogo entre os ramos do Direito, em especial o Direito Tributário e o Direito Administrativo, para que se compreenda o conceito de interesse público e, consequentemente, seja possível a realização da transação tributária.

Ao realizar o diálogo das fontes e uma consequente releitura do conceito de interesse público, pode-se considerar que os anseios sociais representam o interesse público. Desse modo, a disponibilidade do crédito tributário, por meio de transação, pode ser realizada, desde que preenchidos todos os requisitos legais, pois o recebimento do crédito tributário com agilidade, sem os entraves inerentes a um procedimento jurisdicional, permite a prestação de serviços públicos e realização dos direitos fundamentais estampados na Constituição da República.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Isadora Alencar. Autocomposição de conflitos como forma de extinção do crédito tributário.: Uma análise da transação à luz da Lei Federal nº 13.140/2015. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7369, 4 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105931. Acesso em: 22 nov. 2024.

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