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O novo arcabouço fiscal: um olhar crítico sobre o modelo de controle da dívida pública

Agenda 12/09/2023 às 15:44

Aprofunde-se no debate sobre as possíveis fragilidades da nova proposta do Governo Federal, bem como nos desafios jurídicos e riscos econômicos associados.

Visando a substituir o já obsoleto Teto de Gastos, o Novo Arcabouço Fiscal (ou Regime Fiscal Sustentável) - NAF, em trâmite no Congresso Nacional sob o Projeto de Lei Complementar nº 93/2023, vem reestruturar a forma com que o Governo Federal lida com a dívida pública do país. Tem-se como premissa erigir um cenário econômico em que haja espaço para o desenvolvimento e para a paulatina redução dos juros, não só através do estabelecimento de um limite de despesas, mas também por meio da criação de um vínculo direto entre arrecadação e gastos. Destarte, buscou-se, aqui, analisar em que grau o novo arcabouço seria capaz de atingir seus propósitos e, não menos importante, a que custos conseguiria fazê-lo.

De antemão, ressalta-se que apenas o fato de existir uma regra fiscal é um aspecto positivo do ponto de vista jurídico e econômico. Sob a perspectiva jurídica, há uma maior previsibilidade das decisões de tribunais em eventuais casos envolvendo o Estado e responsabilidade fiscal. Pelo lado da estabilidade econômica, tal diretriz, em tese, busca evitar o aumento exacerbado da dívida pública e consequente alta nos índices inflacionários.

Nos tempos em que não havia quaisquer regras nesse sentido, governos gastavam mais do que arrecadavam e deixavam a conta para as gerações futuras. A política de alta industrialização do Brasil promovida pelo Plano de Metas do Governo de Juscelino Kubitschek na década de 50, acompanhada do seu lema “cinquenta anos em cinco”, é um exemplo histórico de como governantes podem agir com irresponsabilidade fiscal na ausência de regras básicas. A consequência desse projeto de governo foi a origem da inflação crônica no Brasil.2

Essa lição histórica ilustra claramente a importância das regras fiscais em contraste com sua ausência. É amplamente reconhecido que governos precisam estabelecer e seguir regras fiscais sólidas para garantir a estabilidade econômica e evitar os erros do passado. Essa mentalidade já é amplamente aceita e foi confirmada pela reação positiva do mercado após o anúncio do NAF, com o Ibovespa registrando um aumento de quase 2% no dia.3

Isso nos leva a um dos pontos positivos do novo arcabouço fiscal: o simples fato de estabelecer metas, em particular as regras de resultado primário. Segundo Rogério Ceron, secretário do Tesouro Nacional, a definição prévia das metas possibilita previsibilidade aos agentes econômicos e auxilia a administração pública no planejamento fiscal de médio prazo.4

Além disso, outra vantagem significativa é a limitação do crescimento das despesas em 70%. Essa mudança oferece mais concretude à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), já que o orçamento passa a ser enviado com base na receita passada e não projetada, ou seja, a partir de dados objetivos. Trata-se, portanto, de uma direção de movimento importante do ponto de vista da previsibilidade fiscal que reduz a volatilidade da receita líquida. Assim, restringe-se o espaço para abusos ou exageros dos gastos públicos que aumentariam o ritmo de crescimento da despesa, como ocorreu na política expansionista de Kubitschek.

Sobre essa medida dos 70%, comenta Fernando Rocha, economista-chefe da JGP, em matéria à revista Exame, que:

“A regra é boa no sentido de colocar sempre uma trajetória de despesa crescendo abaixo da receita – ao menos nas situações de crescimento da economia – o que vai gerando um ajuste fiscal ao longo do tempo, e um superávit primário.”5

Outro ponto positivo da nova diretriz fiscal é o fato de que se mantém um teto de gastos com vistas a equalizar as contas públicas. Diferentemente da Emenda Constitucional nº 95/2016 (o antigo Teto de Gastos), o NAF apresenta um teto de gastos menos rígido, uma vez que, caso as metas de arrecadação e de despesa sejam cumpridas, os investimentos têm possibilidade de subida de 2,5% além da inflação. Além disso, o piso fixo de 0.6% já garante que, em períodos de crise, haverá espaço para ações anticíclicas via gastos públicos.6

Entretanto, cumpre ponderar se um orçamento público pautado no crescimento das receitas, como prevê o NAF, seria de fato desejável. Com o novo arcabouço, cria-se, através das metas de resultado primário, um estímulo para que o Estado busque incrementar as receitas, de modo que possa então elevar também as despesas. A preocupação surge na medida em que o governo atual ainda não apresentou medidas ou projetos concretos aptos a resultar nesse imprescindível aumento de arrecadação.

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Uma forma de garantir a entrada definitiva de dinheiro e bens nos cofres públicos seria dinamizar a economia nacional para que se pudesse, como consequência direta, arrecadar mais. Isso significaria estimular investimentos estrangeiros, gerar empregos, fomentar o consumo e tomar outras providências afins. O problema é que essa mudança não se realiza de maneira repentina. Nas palavras do professor Simão Silber, da FEA-USP:

“A proposta é muito pouco realista, para ser bastante condescendente. Ela conta com a possibilidade de um aumento muito grande de receita que dependeria de um desempenho muito vigoroso da economia. Isso não vai ocorrer, nem neste ano nem no próximo.”7

Para alcançar o objetivo desejado de zerar o déficit em 2024 e em seguida alcançar um superávit de 0,5% em 2025 e 1% em 20268, o governo dependerá amplamente de incontáveis variáveis macroeconômicas. Além disso, diante das expectativas do mercado expostas no próprio anúncio do NAF pelo governo9, as medidas de contenção de gastos previstas podem não ser suficientes se a economia não reagir como esperado.

Diante disso, o que se estima do governo é que amplie a receita por via do aumento da carga tributária. Sendo demasiado improvável um aumento súbito e considerável da arrecadação apenas em função do aquecimento da economia10, é mais provável que a saída escolhida seja repassar o ônus aos contribuintes. A questão então passa a ser compreender como será realizada essa reforma fiscal, especialmente em um cenário como o brasileiro, em que a estrutura tributária já se mostra extremamente onerosa.

Uma das primeiras tentativas de aumento de arrecadação do Governo Lula foi a proposta de eliminar a isenção do imposto de importação11 sobre remessas internacionais no valor de até US$50 (cinquenta dólares), como uma medida para supostamente combater fraudes (em especial a sonegação fiscal) por empresas de comércio eletrônico.12 No entanto, diante da repercussão negativa dos consumidores de sites de e-commerce (como Shopee e Ali Express) pelo risco de encarecimento das encomendas, o governo decidiu recuar e manter a isenção.13 Pelo o que tudo indica, nesse momento, o novo alvo do governo será as plataformas online de apostas esportivas.14

Portanto, é evidente a inclinação do governo de querer aumentar impostos para obter maior arrecadação. Não obstante, o Congresso já declarou que não haverá aumento de impostos.15 Diante da eventual impossibilidade de aumentar a receita via Congresso, pode-se cogitar, por exemplo, que o governo venha a exercer uma maior pressão política sobre instituições como CARF, STJ e STF, no intuito de compelir os órgãos a dar ganho de causa ao governo nas lides tributárias.

Outrossim, há de se ter em conta que, mesmo estando atrelado em alguma medida ao acréscimo de receita, o aumento das despesas não dependerá dele por completo. De acordo com a proposta em trâmite para o novo arcabouço, o aumento de gastos é limitado a um crescimento real da despesa de no mínimo 0,6% ao ano, mesmo diante de um contexto econômico adverso. Certifica-se de que haverá incremento de custos, independentemente do balanço orçamentário. Portanto, não sendo promovido um real esforço para que haja cortes em gastos supérfluos ou prescindíveis, inclina-se o governo em direção ao endividamento, necessário para cumprir com o piso de gastos em eventuais momentos de crise.

Ademais, a única “penalidade” imposta ao governo em caso de descumprimento da meta de resultado primário é a limitação do crescimento real da sua despesa a 50% do crescimento real da receita, em vez dos 70% originalmente previstos para os casos em que o resultado primário cresce dentro da banda. Não existe, assim, verdadeiro incentivo para que se busque controlar o saldo entre arrecadação e gastos, o que deveria ser o propósito fulcral do NAF. Para o professor Hélio Zylberstajn, também da FEA-USP, “em resumo, o que ela [a proposta] faz é preservar o crescimento do gasto público”.16 Ante esse quadro, um procedimento mais rígido atinente ao não cumprimento dos objetivos poderia se mostrar benéfico, particularmente no sentido de limitar excessos na despesa da União e encorajar investimentos mais eficientes.

Entende-se, daí, que pode haver uma certa fragilidade legal na proposta que hoje está em trâmite no Legislativo. Tendo em vista que a norma constitucional do antigo Teto de Gastos foi violada diversas vezes desde que instituída, tanto no Governo Bolsonaro quanto no Governo Lula, sob inúmeras justificativas para permitir aumento de despesas, torna-se difícil pressupor com segurança que o novo arcabouço, na forma de mera Lei Complementar, será devidamente observado. Estando em posição hierarquicamente inferior, é possível que o NAF seja trespassado com maior facilidade em momentos de turbulência político-econômica ou por motivos eleitorais.

Questiona-se, por fim, se seria benéfico para o NAF um aumento inflacionário, considerando que a inflação sobre diversos itens provoca aumento de arrecadação de impostos. Por exemplo, imagine que, por fatores externos, o preço do combustível suba de R$5,00 o litro para R$6,00 com uma alíquota de impostos federais acumulados de 20%. Nesse caso, a arrecadação subiria de R$1,00 para R$1,20. Resumidamente, um aumento de 20% do preço do combustível representaria um aumento equivalente na arrecadação. Portanto, não é de se surpreender que o governo venha a adotar política de expansão do crédito com a redução da taxa de juros, gerando aumento de inflação por demanda.

Nesse contexto, em entrevista à Globonews, o próprio Presidente Lula declarou, em outras palavras, que aceitará uma meta de inflação maior:

“Por que o Banco [Central] é independente e a inflação, os juros estão do jeito que estão? Você estabeleceu uma meta de inflação de 3,7%, quando você faz isso, é obrigado a ‘arrochar’ mais a economia para atingir aqueles 3,7% [a meta em 2022, na verdade, foi de 3,5%]. Por que precisava fazer os 3,7%? Por que não fazia 4,5%, como nós fizemos? O que precisamos nesse instante é saber o seguinte: a economia brasileira precisa voltar a crescer. E nós precisamos fazer distribuição de renda, nós precisamos fazer mais políticas sociais”17

Diante dessa afirmação, podemos admitir que provavelmente a nova diretoria do Banco Central, com um novo presidente indicado pelo Presidente Lula da Silva, que iniciará seu mandato em janeiro de 2025, passará a ter um perfil mais alinhado ao governo, atuando a favor do aumento da meta de inflação no âmbito do Conselho Monetário Nacional e tornando viável uma política de redução gradativa da Taxa Selic.18

Por outro lado, deve-se observar que um aumento de preços de produtos, impactando favoravelmente a arrecadação como já assinalado, poderia significar também o acréscimo das despesas do governo. No entanto, em linhas gerais, 70% dessas consistem em salários de servidores da ativa e de aposentados dos regimes próprio e geral de previdência.19 Isso quer dizer que, no caso dos servidores da ativa e aposentados, o governo pode simplesmente não conceder aumento, enquanto que em relação aos aposentados pelo INSS (regime geral), os aumentos são limitados à variação do IPCA (já que o piso do INSS, o salário mínimo, segue reajustado com base no IPCA). Como o IPCA abrange uma cesta de produtos que fazem parte do consumo das famílias20, determinados aumentos de preços de produtos, como o do exemplo citado, representaria um impacto proporcionalmente reduzido no IPCA, conforme a sua metodologia de cálculo.21

Resta comprovado, portanto, que o aumento da inflação pode ajudar na viabilidade das metas de resultado primário estabelecidas pelo NAF. Isso é preocupante na medida em que especialistas reconhecem que a perda do controle da inflação representa riscos significativos para a economia, incluindo perda de poder de compra, redução da confiança dos consumidores e investidores, desvalorização da moeda e pressão sobre as políticas monetária e fiscal.22

Ex positis, espera-se que o Novo Arcabouço Fiscal proporcione uma gestão mais eficiente dos recursos públicos, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. No entanto, é importante destacar a necessidade de uma avaliação crítica contínua desse novo regime, a fim de garantir a consecução realista e sustentável das metas e compromissos estabelecidos. Nesse sentido, almeja-se que os riscos e controvérsias apontados sirvam como alicerce para um debate enriquecedor e fundamental, com vistas a promover maior responsabilidade fiscal e controle da dívida pública.


Notas

  1. .......

  2. SILVA, Emmanuel Godinho. Aspectos históricos determinantes para origem da inflação crônica brasileira e os planos de estabilização monetária no Brasil (1956 – 1994). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. Disponível neste link. Acesso em: 25/06/2023.︎

  3. BRANDÃO, Raquel; QUESADA, Beatriz. Arcabouço Fiscal anima mercado e Ibovespa sobe quase 2%. Exame Invest, 30 de março de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 24/06/2023.︎

  4. MORTARI, Marcos. Arcabouço fiscal terá mecanismo para revisão de meta de resultado primário com condicionantes. InfoMoney, 14 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 24/06/2023.︎

  5. BRANDÃO, Raquel; QUESADA, Beatriz. Arcabouço Fiscal anima mercado e Ibovespa sobe quase 2%. Exame Invest, 30 de março de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 24/06/2023.︎

  6. KONCHINSKI, Vinicius. Teto de Gastos x Novo Arcabouço: entenda as principais diferenças entre as regras fiscais. Brasil de fato, 6 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 26/06/2023.︎

  7. SERRANO, Luiz Roberto; CALDEIRA, Cinderela. Elogios e críticas à proposta do novo “arcabouço fiscal”. Jornal da USP, 31 de março de 2023. Disponível neste link. Acesso em 25/06/2023.︎

  8. BRASIL, Senado Federal. Novo arcabouço fiscal chega ao Congresso com limite para crescimento de gastos. Senadonotícias. Disponível neste link. Acesso em: 27/08/2023.︎

  9. Veja neste link a apresentação do governo no anúncio do NAF no dia 30 de março de 2023.︎

  10. BRASIL, Ministério da Fazenda. Ministério da Fazenda revisa PIB e aponta perspectivas positivas para economia brasileira em 2023. Ministério da Fazenda, 24 de maio de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 25/06/2023.︎

  11. Competência prevista no art. 153, I, da Constituição Federal de 1988.︎

  12. Compras na Shein e Shopee abaixo de US$ 50 serão taxadas? Entenda o que deve mudar. InfoMoney, 12 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 24/06/2023.︎

  13. Governo recua, e Haddad diz que manterá isenção de impostos em encomendas internacionais. InfoMoney, 18 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 24/06/2023.︎

  14. WETERMAN, Daniel. Governo vai taxar em 15% lucro de sites de apostas esportivas. CNN Brasil, 18 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 26/06/2023.︎

  15. NASCIMENTO, Houldine. Não há possibilidade de o Congresso elevar impostos, diz Lira. Poder 360, 16 de abril de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 27/08/2023.︎

  16. SERRANO, Luiz Roberto; CALDEIRA, Cinderela. Elogios e críticas à proposta do novo “arcabouço fiscal”. Jornal da USP, 31 de março de 2023. Disponível neste link. Acesso em 25/06/2023.︎

  17. HAUBERT, Mariana. Lula quer meta de inflação maior para ser mais fácil de cumprir. Poder 360, 18 de janeiro de 2023. Disponível neste link. Acesso em: 25/06/2023.︎

  18. AZEVEDO, Alessandra. Lula pode mudar regras do Banco Central? Veja como são escolhidos os diretores. Exame, 7 de fevereiro de 2023. Disponível neste link. Acesso em 26/06/2023.︎

  19. Despesas pagas pela união. Tesouro Nacional Transparente. Disponível neste link. Acesso em: 25/06/2023.︎

  20. CORACCINI, Raphael. Entenda o que é IPCA e como esta taxa de inflação impacta o seu bolso. CNN Brasil, 9 de setembro de 2021. Disponível neste link. Acesso em: 26/06/2023.︎

  21. Para mais informações sobre a metodologia de cálculo do IPCA, veja neste link.︎

  22. HEYMANN, Daniel; LEIJONHUFVUD, Axel. High Inflation: The Arne Ryde Memorial Lectures. Clarendon Press, 1995.︎

Sobre o autor
Erik Gottlieb Martins

Graduando em Direito na FGV Direito Rio, pesquisador do NEASF-FGV e competidor em torneios acadêmicos sobre direito civil, mediação e arbitragem. E-mail: egottlieb.martins@gmail.com

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