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Engajamento cívico infantil

Agenda 12/09/2023 às 17:53

   A infância faz referência à faixa etária situada entre o nascimento e a idade de doze anos aproximadamente. É o lapso da vida humana considerado importantíssimo porquanto as experiências vivenciadas nesse tempo, tem o poder de interferir poderosamente no subsequente desenvolvimento emocional, social, intelectual e físico das pessoas. Uma característica marcante da infância diz respeito ao fato de que em seu desenrolar a criança não é norteada pela faculdade racional, e, como não poderia deixar de ser necessita ser guiada pelos adultos. E no grupo composto por crianças e adultos ocorre o relevante processo de socialização.

     Segundo a versão científica ele pode ser entendido como o movimento pelo qual o indivíduo aprende a adaptar-se ao modo de viver dos diversos agrupamentos sociais por meio da aquisição de comportamentos aprovados pelos seus integrantes. Os principais agentes da socialização são a família, a escola, a religião, os meios de comunicação e os grupos convencionais e virtuais de convivência. Também são múltiplas as teorias que explicam tal marcha adaptativa. O Funcionalismo diz que os mais velhos transmitem aos mais jovens os padrões de condutas assentidos. A Psicanálise propõe que ocorre o desenvolvimento de um superego norteador das ações. O Interacionismo Simbólico ressalta a conquista da capacidade de comunicação com os outros possibilitando a troca de influências.

     Junto a essas concepções descritoras devem ser acrescentadas duas outras que se mostram bastante elucidativas e muito utilizadas. Uma delas diz respeito à evolução do indivíduo segundo Piaget. De acordo com ele a infância comporta alguns estágios sucessivos de desenvolvimento os quais permitem o paulatino aparecimento dos comportamentos socialmente aceitos. As visões particulares e peculiares das crianças sobre o mundo, de forma progressiva, vão se aproximando das ideias dos adultos. A segunda se refere à teoria de Vygotsky onde desenvolvimento e aprendizagem se influenciam reciprocamente. Ele assevera que a criança já nasce inserida num ambiente social, e, portanto, a mesma vai formando uma visão de mundo por meio da constante interação com adultos e crianças mais experientes.

     Apesar desses variados entendimentos relativos à socialização é possível dizer que as teorias sobre ela não negam nem são incompatíveis com a existência de dois tipos de processos, quais sejam, o primário e o secundário. No primário, que ocorre na infância, a realidade circundante é passada à criança tal como os adultos próximos que lhes cercam a percebem. No secundário a representação da realidade é assimilada por meio dos diversos contatos com outros grupos e pessoas situados além da esfera familiar. Portanto, é possível inferir que o engajamento cívico da meninice se encontra predominantemente atrelado ao processo primário de socialização.

     Vale recordar aqui que tal engajamento se refere ao compromisso das pessoas quanto ao envolvimento na atividade política, principalmente em relação aos temas e aos problemas que as afetam tendo por escopo alcançar objetivos que fazem parte de seus interesses. Observe-se que a expressão cidadania ativa é utilizada como sinônimo de engajamento cívico. Convém dizer então que o cidadão ativo faz parte de um conjunto minoritário em quase todos os recantos democráticos do planeta e se define como um indivíduo que frequentemente encontra-se presente no espaço cívico da esfera pública convencional e virtual, se considera governante, manifesta comportamentos destinados a influenciar as decisões políticas, concretiza ações beneficiadoras da coletividade principalmente aquelas que favorecem os setores desprivilegiados, opera para iluminar a opinião coletiva e se empenha na insuflação dos programas de governo.

     Tendo por fundamento esta compreensão do engajamento cívico vejamos a sua ocorrência entre os pequenos. Conforme foi visto anteriormente, o conceito de socialização primária emerge como um referencial básico. Com efeito, as crianças tenderão a se voltar para o caminho da cidadania ativa caso as pessoas que lhes são mais próximas, particularmente seus pais, se mostrarem como cidadãos ativos. É muito relevante então que os mais jovens vejam e acompanhem suas famílias em eventos cívicos, haja vista que o maior preditor da participação infantil é a participação dos genitores bem como dos parentes de primeiro grau.

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     No continente europeu os jovenzinhos realizam junto com seus próximos várias atividades nos locais onde residem tais com limpeza de parques comunitários e plantio de árvores em seu interior; coleta de jogos, brinquedos e roupas não mais usáveis e entrega em locais de doação; realização de passeios com cães confinados em abrigos para animais; colaboração na organização de eventos em casas de repouso e hospitais; envolvimento em conversas sobre temas políticos e ida aos locais de votação e participação nos movimentos de defesa do meio ambiente.

     Vale ressaltar que os europeus são os povos mais preocupados com o engajamento cívico infantil, haja vista que desde há muito tempo elaboraram leis específicas para ele. Uma Recomendação do Comitê de Ministros dos Estados-Membros relativa à cidadania e participação dos jovens na vida pública, dentre várias outras e datada de 2006, estabeleceu os objetivos de  incentivar o intercâmbio e a utilização de boas práticas em matéria de participação dos jovens, a nível local, regional e nacional;  estimular a criação de conselhos independentes de juventude a nível local, regional e nacional; promover o desenvolvimento de parcerias entre organizações de juventude e governos; assegurar um financiamento adequado para a participação dos jovens e incentivar os partidos políticos a abrirem o diálogo com os jovens.

    A tarefa de formação de cidadãos ativos, desde fins do século passado, vem sendo muito valorizada na educação básica. A Carta do Conselho da Europa Sobre Educação Para a Cidadania Democrática e os Direitos Humanos, adotada pelos Estados-Membros da União Europeia, apresenta várias recomendações para ela, dentre as quais se destacam as de que o processo ensino aprendizagem deve respeitar e promover os valores e os princípios da democracia, motivar a responsabilização e a participação ativa dos alunos e promover a coesão social, o diálogo intercultural e a consciência do valor da igualdade e da diversidade. Em sintonia com tais recomendações os educandos se envolvem na atividade administrativa escolar, realizam ingerências no processo didático, concretizam trabalhos voluntários na comunidade e participam dos debates e dos projetos da câmara municipal.

     Nos Estados Unidos da América do Norte as crianças também executam múltiplas atividades que são  próprias de um cidadão ativo, quais sejam, protestar contra práticas e políticas das quais discordam ou consideram injustas, como por exemplo testes em animais; discutir questões e tópicos complexos pertinentes à coletividade; elaborar projetos de melhorias da comunidade tal como sua infraestrutura; participar da governação local; fazer doações familiares; se envolver em campanhas de arrecadação de fundos comunitários; angariar apoio a vítimas de catástrofes naturais.

    De modo parecido aos europeus, os estadunidenses também concedem muita relevância à educação cívica. Um dos mais recentes estudos sobre ela diz respeito ao The 2018 Brown Center Report. Este relatório afirma que a participação cívica proporciona poder político, e sua ampliação é essencial para uma democracia saudável e inclusiva. Mostra que as pontuações nas avaliações cívicas realizadas anualmente permanecem estáveis ou sobem ligeiramente. Revela que quarenta e dois estados mais Washington D.C., exigem pelo menos um curso relacionado à educação cívica como requisito para conclusão dos estudos, sendo que a maioria dos Estados exige dois ou três. Indica que a maioria dos alunos costuma discutir eventos atuais pelo menos uma vez por semana, e um quarto deles participa de altercações e painéis de debates.

     Outrossim, em nosso país temos algumas experiências de engajamento cívico praticadas pelos menores. Sem dúvida, as mais notórias se encontram nos movimentos sociais. Há aqueles que se voltam para a ocupações de imóveis tais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e o Movimento Nacional de Luta pela Moradia. Por meio deles, em S. Paulo, já ocorreram apropriações no Jardim da União, na Prestes Maia e no Largo Paissandu dentre outras. Nessas invasões as crianças acompanham seus pais, tios e avós, e as consideram como um momento de burburinho pois curtem os espaços conquistados, fazem correrias, emitem uma variedade de sons e realizam diversos tipos de brincadeiras.

     Na área rural tem-se o Movimento dos Sem Terra, o qual existe desde o fim da ditadura civil militar e que visa organizar trabalhadores da zona campestre para conquistar a reforma agrária. Através da realização de marchas seus integrantes ocupam propriedades de terra em situação irregular ou ilegal, instalam acampamentos e desenvolvem agricultura familiar na forma de cooperativas. Junto a ele existe o Movimento dos Sem Terrinha composto pelos mais jovens e que participam ativamente das tarefas de ocupação. Note-se que nos acampamentos existem escolas cujo currículo prevê o aprendizado da teoria e da prática das ocupações. Eles tomam parte também de encontros nacionais destinados à discussão de direitos, agricultura sustentável e alimentação saudável dentre outros temas.

    Afora tais movimentos cabe apontar a atuação de algumas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas que buscam a integração com a sociedade e o envolvimento dos pequenos com a atividade política através do Parlamento Jovem, o Estágio Visita e o Estágio Cidadão. Precisa ser exposta também uma importante experiência que acontece na cidade de Barra Mansa onde um conjunto de meninos e meninas são eleitos por seus pares para integrar um conselho de orçamento participativo infantil voltado à ingerência no Conselho Municipal com vistas a garantir que ele atenda às necessidades e prioridades da população infantil. Desde fins da década de noventa do século passado as crianças participam de debates e assembleias para eleger seus representantes, discutir os objetivos a serem perseguidos, desenvolver projetos e atuar na governança da cidade.

     Observe-se, entretanto, que o preparo de cidadãos ativos no Brasil nunca constituiu uma política educacional, apesar da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases estabelecerem a formação para o exercício da cidadania como uma das finalidades de nosso ensino. Não existiu e continua não existindo propostas oficiais sobre o perfil de cidadão que se pretende formar e consequentemente a definição de estratégias pedagógicas destinadas à sua formação.

     Embora tal descaso seja verídico, constata-se que algumas escolas se encontram desenvolvendo atividades voltadas ao preparo deles. Em Alagoas alunos foram orientados por seus professores a enviar cartas aos vereadores sobre problemas existentes em municípios; no Estado da Paraíba discentes auxiliados por seus mestres organizaram uma campanha contra a dengue; em Tocantins, eles produziram vídeos relativos a melhorias comunitárias; no Maranhão os mesmos elaboraram e divulgaram uma cartilha pertinente a direitos humanos. Em outros locais já ocorreram também parcerias de instituições de ensino com Escolas do Legislativo voltadas para a construção de projetos a serem submetidos à apreciação no plenário de câmaras municipais.

     Derradeiramente cabe enfatizar a importância do engajamento cívico infantil. É válido asseverar que seu exercício constitui uma boa preparação para o surgimento de futuros adultos responsáveis e ativos na coletividade, haja vista o aprendizado das habilidades relativas ao processo democrático. Experiências já demonstraram que crianças dotadas de conhecimento político e inseridas em iniciativas apropriadas revelaram competência para exercer influência local, regional, nacional e internacional. Evidenciaram também a ocorrência do desenvolvimento da confiança, da autoestima e da capacidade de resolver problemas, bem como fizeram emergir circunstâncias sociais favoráveis aos grupos de menor idade.  

     Mais importante ainda é a viabilidade do progressivo aumento dos cidadãos ativos em vários recantos do mundo, os quais, esperançosamente, são vistos como um conjunto bastante apto para ajudar na superação dos problemas da democracia representativa e quiçá capaz de colaborar na feitura de um salto qualitativo na política através da aceleração do processo de preponderância da democracia participativa no âmbito da sociedade.

Sobre o autor
Antônio Carlos Will Ludwig

Professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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