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A inconstitucionalidade da taxa de diploma

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Agenda 08/11/2007 às 00:00

Sumário:1. Introdução. 2. O ensino superior como serviço público federal. 3. A natureza do diploma. 4. A imunidade constitucional – tributária e administrativa. 5. O diploma como condição para o exercício de direitos constitucionais. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.


1. Introdução

O propósito do presente artigo é demonstrar a inconstitucionalidade da chamada "taxa de diploma".

A referida "taxa" tem sido impugnada em diversos Estados do Brasil, tanto pelo Ministério Público Federal quanto pelos próprios bacharéis que são seus destinatários. Tal questionamento, em geral, tem se focado no exame das normas gerais do ensino superior, editadas pelos órgãos competentes da União. A tese que vem prevalecendo é a de que a despesa com o diploma é uma despesa ordinária da instituição de ensino, sendo já coberta pelo pagamento das mensalidades, não podendo dar ensejo ao pagamento de "taxa", que somente se legitimaria para arcar com despesas extraordinárias, que fogem do âmbito comum da relação de ensino.

Propomos, porém, que a quaestio iuris seja analisada não somente a partir das normas administrativas, ou mesmo das normas legais, mas sim, e principalmente, pelo exame de preceitos constitucionais. Fomos levados a essa direção pela percepção de que diversos direitos fundamentais têm seu gozo embaraçado em razão da ausência de expedição do diploma de bacharel, direitos como os de exercício profissional e o de acesso a cargos públicos, por meio de concurso público.

O primeiro alicerce de nossa visão constitucional está na constatação de que o ensino superior é serviço público federal e de que as instituições privadas, quando exploram essa atividade, são delegadas desse serviço público federal e, como tais, devem ser responsabilizadas, mormente quando estorvam direitos fundamentais do cidadão, atraindo, nesse caso, com muito mais razão, a indeclinável atuação do Ministério Público Federal, por força de expressa previsão na LOMPU (art. 39, III e IV, da LC 75/93). É por onde começaremos nosso estudo.


2. O ensino superior como serviço público federal

Serviço público é noção que pode assumir definição subjetiva, formal ou material [01], definições estas que tomam como parâmetro, respectivamente, a pessoa que presta o serviço, o regime em que este é prestado e o conteúdo que é explorado. Exemplificativamente, sem necessariamente segui-lo, expomos o conceito adotado por C. A. Bandeira de Mello, em definição predominantemente formal: "Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interessados definidos como públicos no sistema normativo" [02].

Em conceito que consideramos subjetivo-formal, H. Lopes Meirelles define serviço público como "todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado" [03].

Como conceito misto (subjetivo-formal-material), podemos citar o adotado por M. S. Z. Di Pietro, que considera como serviço público "toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob o regime jurídico total ou parcialmente público" [04].

Ao lado desses conceitos clássicos, podemos enunciar um conceito constitucional de serviço público, abarcado pelo art. 175 da Lei Máxima, sendo aquele cuja prestação seja imposta pela Constituição ao Estado em sentido amplo, direta ou indiretamente, isto é, por meio de pessoa jurídica de direito público ou por pessoa jurídica de direito privado que goze de concessão, permissão ou autorização para explorá-lo. Nesse sentido, serviço público é espécie de atividade econômica em sentido amplo.

Em qualquer acepção da expressão – subjetiva, formal, material ou constitucional –, o ensino superior deve ser compreendido como serviço público.

Satisfazendo o conceito subjetivo, devemos observar que o ensino é sempre prestado pelo Estado, seja diretamente, seja por seus delegados (que gozam de autorização do Poder Público). É o que está expresso no art. 209, II, do Diploma Constitucional, que impõe a autorização às instituições privadas para que possam exercer a atividade de ensino. Vejamo-lo:

"Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

...

II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público" (grifo nosso).

Logo, o serviço de ensino, quando praticado pela iniciativa privada, é ainda assim prestado indiretamente (por meio de ente delegado) pelo Poder Público, o que satisfaz o conceito subjetivo de serviço público.

A acepção formal também é satisfeita pela percepção de que o serviço de ensino é prestado sob a autorização do Poder Público, o que atrai, inequivocamente, o regime de direito público.

A caracterização material de serviço público decorre da realidade positivada no art. 205 da Constituição de nossa República, que enuncia a educação como condição para o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Por fim, o serviço de ensino obviamente preenche o conceito constitucional de serviço público por força do mandamento compreendido no art. 205 da Carta Maior, que estabelece a educação como "direito de todos e dever do Estado e da família".

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Uma vez reconhecido o ensino superior, ainda quando prestado por instituições privadas, como serviço público, sua caracterização como serviço público "federal" decorre do art. 211, §1º, da Constituição em conjugação com o art. 16, II, da Lei 9.394/96. Eis o texto do último dispositivo:

"Art. 16. O sistema federal de ensino compreende:

...

II – as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada" (grifo nosso).

Conclui-se, nessas bases, que o ensino superior, mesmo que prestado pela iniciativa privada, é serviço público federal, essencial [05], constatação esta que nos conduz a uma série doutras ilações que apresentaremos a seguir.


3. A natureza do diploma

A prestação do serviço de ensino superior tem como fim esperado, ordinário, a conclusão do curso e a declaração deste arremate em favor do bacharel. Destaque-se: o fim ordinário – normal – da relação pública que se estabelece entre a instituição de ensino e o aluno é a conclusão do curso superior e a conseqüente expedição de diploma em favor daquele. Vale dizer, não se pode conceber a conclusão do curso e a expedição do diploma como evento acidental da relação de ensino.

Nesse quadro, o diploma surge como documento que comprova o término bem-sucedido do curso superior pelo aluno e seu nascimento como bacharel. Sua função é exatamente esta: declarar o status da relação do cidadão com o serviço público de ensino superior, atestando sua condição de bacharel.

O diploma, dessa forma, deve ser encarado como uma certidão da emancipação cultural do cidadão, emancipação esta que, ao lado da igualdade de oportunidades, da participação e da individualização, "são componentes do direito à educação e à cultura, e dimensões concretas implícitas no princípio da democracia cultural", na lição de J. J. Gomes Canotilho [06].

Em síntese: o diploma é documento que certifica a situação final do estudante perante o serviço público federal de ensino superior, atestando sua condição de bacharel e de emancipado cultural.


4. A imunidade constitucional – tributária e administrativa

Como perspicazmente aponta P. de Barros Carvalho [07], há no rol do art. 5º da Constituição da República imunidade objetiva que pouco é percebida por grande parte da doutrina e da Administração Pública. Trata-se da norma enunciada a partir do inciso XXXIV, b, do mencionado artigo. Eis o dispositivo:

"Art. 5º...

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

...

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal" (grifo nosso).

Há aqui três noções que precisam ser trabalhadas: "certidões", "repartições públicas" e "esclarecimento de situações de interesse pessoal".

Por "certidões" deve-se entender todo o tipo de documento que serve para atestar uma situação ou um status específico. Já por "repartições públicas" deve-se entender, em verdade, o serviço público em sentido institucional. Assim, quando se menciona "certidões em repartições públicas", quer-se, verdadeiramente, fazer referência a qualquer declaração – atestado – prestada pelo Poder Público, ou seus delegados, aos cidadãos, que tenha por objeto a situação destes com dado serviço público em especial. Na mesma linha de raciocínio, "esclarecimento de situações de interesse pessoal" deve ser compreendido como certificação da relação do cidadão com o serviço público ou apresentação de qualquer dado que resulte dessa relação.

A orientação que aqui propomos deve prevalecer pela primazia que nossa ordem constitucional confere ao critério objetivo do serviço público em relação ao critério subjetivo da pessoa que exerce a atividade. Essa eleição é apreendida ao longo do texto constitucional. Assim, por exemplo, no art. 37, § 6º, da Lei Primeira, é do fato de prestar serviços públicos que decorre a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado. Na mesma linha, nos arts. 173 a 175 do Diploma Magno, percebe-se claramente a eleição do critério de exploração de serviço público ou de atividade econômica em sentido estrito como definidor do regime jurídico a que estão sujeitas as pessoas jurídicas da Administração Indireta e as demais colaboradoras com o Poder Público. O mesmo raciocínio é válido para o art. 150, § 2º, da Carta Máxima, que trata de imunidade tributária.

Enfim, a natureza do serviço prestado – critério objetivo – deve prevalecer sobre a identidade da pessoa que presta – critério subjetivo –, devendo a expressão "repartição pública", assim, ser compreendida como "ente prestador de serviço público".

Há ainda um dado que passou despercebido pelo tributarista antes citado. É que a Constituição não só proíbe a remuneração da certificação de sua situação pessoal em face do serviço público quando prevista em lei – em sentido material –, vale dizer, não só proíbe a instituição de "taxa" em sentido tributário próprio, como também impede a cobrança de "tarifa", "preço público" [08], isto é, de contraprestação pelo serviço público que tenha fonte em negócio jurídico – em vez de lei. Ou seja: a imunidade prevista no art. 5º, XXXIV, b, da Constituição da República é não só tributária (pois impede a criação de tributo: taxa), como também é imunidade administrativa, negocial (pois impede a criação de "tarifa", preço público).

O signo "taxa" aí colhido não pode ser interpretado de modo estritamente literal, devendo ceder o método literal para o teleológico, que prestigia a ratio legis. Assim, se o Poder Constituinte proibiu que lei estabeleça contraprestação pelo atestado de situação pessoal perante o serviço público, a fortiori, também proibiu que a mesma prestação pecuniária seja criada por negócio jurídico, que deve se curvar à própria lei. Tal raciocínio poderia não valer absolutamente se estivéssemos diante de relação jurídica inserida em regime de direito privado, pois que, nesse caso, a autonomia privada tem importância similar à supremacia da lei. Contudo, tratando-se de relação de direito público, incidente necessariamente em razão da presença de serviço público, a lei é fonte de legitimidade e validade extremamente superior à vontade negocial, que se recolhe a segundo plano. É o que impõe a soberania da lei no plano administrativo, de direito público.

Portanto, o art. 5º, XXXIV, b, da Constituição alcança não só as taxas em sentido estrito como também os preços públicos – tarifas.

Considerando que o diploma é documento – "certidão" – que atesta a situação do estudante – cidadão – diante do ensino superior – serviço público –, deve-se reconhecer a impossibilidade de se exigir taxa ou tarifa do bacharel para que receba tal certificação de sua situação pessoal. Vale dizer, a chamada "taxa de diploma" não alcança validade nem quando é instituída em lei (caso em que seria taxa tributária) e muito menos quando tem supedâneo em negócio jurídico (caso em que seria tarifa – preço público).

Só esse fundamento (a incidência do art. 5º, XXXIV, b, CRFB) já é suficiente para determinar a inconstitucionalidade da chamada "taxa para expedição de diploma", seja qual for sua fonte normativa. Ao lado desse fundamento, não obstante, há ainda outros que também apontam a inconstitucionalidade de tal exação.


5. O diploma como condição para o exercício de direitos constitucionais

O diploma, ao certificar a situação do graduado perante o serviço público federal de ensino superior, atestando sua condição de bacharel, acaba por ser requisito para o exercício de diversos direitos do cidadão.

A necessidade do diploma é correlata à importância da educação. Portanto, faz-se mister compreender que a educação, além de ser serviço público, em sua faceta objetiva, é também direito fundamental e direito humano [09], em sua faceta subjetiva. O direito fundamental à educação, por sua vez, ata-se a diversos outros direitos fundamentais (além doutros não-fundamentais). Dentro do âmbito desses direitos fundamentais é que deve ser compreendido o valor do diploma de bacharel.

Como primeiro direito fundamental relacionado ao diploma de curso superior, a liberdade pública de exercício profissional, prevista no art. 5º, XIII, da Constituição da República, requer que sejam "atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Entre essas condições previstas em lei, nas mais diversas profissões, está a conclusão do bacharelado, a qual deverá ser atestada pelo diploma. Dessarte, quando este não é tempestivamente expedido, o gozo do direito ao exercício profissional – direito este fundamental – resta comprometido.

Demais disso, ainda quando o ofício almejado pela pessoa não demanda, juridicamente, a conclusão de curso superior, a condição de bacharel alavanca as possibilidades de emprego do trabalhador. Nessa ótica, a situação de bacharel serve de meio material para a efetivação do direito constitucional ao trabalho, previsto no art. 6º, caput, do Texto Maior. Esse fato, que pode ser colhido da realidade social, não passou despercebido pelo Poder Constituinte, que positivou, como finalidade fundamental da educação, a qualificação para o trabalho (art. 205, CRFB). Desse modo, o diploma, quando não confeccionado e entregue ao bacharel em razão do não-pagamento de "taxa", acaba sendo óbice para a concretização do direito constitucional ao trabalho.

Deve-se ainda observar que a educação também é meio de preparo para o exercício da cidadania, como está reconhecido no caput do art. 205 da Lei das Leis. Nesse sentido, a conclusão do bacharelado é relevante não somente para possibilitar o exercício profissional e a obtenção de trabalho lícito, como também para possibilitar maior participação do cidadão nos assuntos da nação, dando-lhe voz e garantindo-lhe audiência. Noutro dizer, a conclusão do curso superior, com o conseqüente alcance da condição de bacharel, proporcionada a emancipação cultural da pessoa, significando, nas palavras de J. J Gomes Canotilho, "progresso social e participação democrática" [10]. O diploma, nesse contexto, deve ser expedido como reconhecimento dessa emancipação, dotando o cidadão de maior participação cívica.

O direito de participação do cidadão no Estado, perante o ingresso em cargos públicos (art. 37, I, CRFB), também pode ser obstruído pela ausência de expedição de diploma, em concursos públicos que exigem dos candidatos o grau de bacharel. Nesses casos, a ausência de pagamento de "taxa" acaba impedindo o bacharel de participar de certames quando, em essência, preenche todos os requisitos previstos em lei.

O direito à prisão especial também é estorvado em razão da ausência da expedição do diploma. De fato, a legislação reconhece ao "diplomado" o direito a condições especiais de cárcere. É o que está previsto no art. 295 do CPP:

"Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:

...

VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; (...)" (grifo nosso).

Por fim, cabe-nos destacar que, no Brasil, há significativa diferença salarial entre os bacharéis e os não-bacharéis. Logo, a ausência de comprovação da condição de bacharel, por meio da omissão na expedição de diploma, pode determinar ausência de ganho salarial por parte dos bacharéis, o que afeta a efetivação de diversos direitos fundamentais prestacionais, como a moradia, o lazer, a saúde e a própria educação. É o que demonstra a reportagem intitulada "Diploma é Passaporte Social", assinada por Cássia Almeida e Fabiana Ribeiro para O Globo, com base em pesquisa do IBGE, em que se relata que o "nível superior faz a despesa familiar (uma aproximação do rendimento) subir 190% se houver apenas uma pessoa formada na casa e até 430%, com dois indivíduos" [11]. A mesma realidade foi comentada por Gilberto Dimenstein, da Folha de São Paulo, que pontua: "O mito de que um curso universitário é ineficaz para aumentar a renda da população no Brasil foi desmentido por novos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002/2003, divulgados ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisa, realizada por amostra em todo o país, revela que a renda familiar tem ganhos significativos conforme a presença na casa de membros com curso superior completo" [12].

Como se pode perceber, diversos direitos constitucionais e legais do cidadão têm seu gozo impedido quando deixa de ser expedido o diploma de bacharel. Diante de tal constatação, não se pode admitir que o delegado de serviço público, que é a instituição de ensino superior, possa se recusar a fornecer o diploma em razão da mera ausência do pagamento de taxa ou tarifa. Deveras, considerando a grandeza dos direitos e dos interesses envolvidos, não se pode reconhecer validade à prática de exigir do cidadão o pagamento de contraprestação para a declaração daquilo que lhe é de direito: o reconhecimento da conclusão com êxito do curso superior e a certificação de sua condição de bacharel.

A constatação da presença desses direitos fundamentais como vinculados à detenção do diploma também serve para prestigiar a interpretação que demanda a incidência, ao caso, da imunidade contida no art. 5º, XXXIV, b, da Constituição da República.

Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. A inconstitucionalidade da taxa de diploma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1590, 8 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10620. Acesso em: 26 nov. 2024.

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