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Novos Rumos do Direito Sucessório - Sucessão Digital, Patrimônio Digital, Novos Arranjos Familiares (poliafetividade, trisais, triação anaparentalidade) testamento vital

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Agenda 13/09/2023 às 19:00

NOVOS RUMOS DO DIREITO SUCESSÓRIO – SUCESSÃO DIGITAL, PATRIMONIO DIGITAL, NOVOS ARRANJOS FAMILIARES (POLIAFETIVIDADE – COM TRISAIS E TRIAÇAO) E OUTROS TEMAS.

Resumo: O avanço tecnológico tem fomentado novas discussões no âmbito do direito sucessório com problemas não antes imaginados há vinte anos quando o Código Civil foi promulgado o que se busca analisar neste texto.

JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA, ADVOGADO MAGISTRADO APOSENTADO E PROFESSOR DA FAJ DO GRUPO UNIEDUK DE UNITÁ FACULDADE - COORDENADOR NACIONAL DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL, DIREITO IMOBILIÁRIO E DIREITO CONTRATUAL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE. EMBAIXADOR DO DIREITO À SAÚDE DA AGETS – LIDE.

Como todos sabemos o direito brasileiro se revela avesso à ideia de um patrimônio (conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, suscetíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária como apontado, por exemplo, por Pontes de Miranda – e isso desmistifica a ideia de que patrimônio seja um mero conjunto de bens) sem um titular determinado, o que em se tratando de pessoas existentes (naturais ou jurídicas) se resolve em termos de tradição e transcrição, enquanto meios de aquisição da propriedade inter vivos.

Mas desde há muito, se encontra superado o entendimento dos juristas romanos no sentido de que mors omnia solvit, em tradução literal, “a morte tudo resolve”, numa alusão a que, com o falecimento do de cujus sucessiones agitur (é, vem daí o termo que usamos hoje – de cujus), os problemas estariam acabados, tudo estaria resolvido (aliás, os romanos acolhiam a ideia de morte numa acepção diversa da morte – aceitava-se, por exemplo, o conceito de morte civil[1], embora ainda aceitemos situações de morte presumida)[2].  

Nessa tradição romana1 se pode perceber, por exemplo, a origem dos rituais que empregamos no dia dos mortos, quando são levadas flores aos jazigos dos entes queridos falecidos2 - mas a ideia é que a complexidade negocial e o avanço tecnológico permitem dizer que, por vezes, a morte até possa resolver filosoficamente problemas do morto - mas gera, para os vivos inúmeros problemas jurídicos.

No entanto, as coisas nem sempre se dão desse modo e com a morte do indivíduo, um sem número de problemas pode ser destacado, tendo o legislador criado tantas situações polêmicas (basta ver, por exemplo, discussões acerca da concorrência, ou não do cônjuge com descendentes nos vários regimes matrimoniais ou as dificuldades da sucessão do companheiro com filiação híbrida) que não se tem como incomum encontrar-se autores que defendem a necessidade de um verdadeiro planejamento sucessório prévio enquanto conjunto de medidas para preservação patrimonial e da autonomia da vontade[4].

O avanço da tendencia global de verificar situações de multiparentalidade, sociafetividade, famílias-mosaico, fraternidade socioafetiva (Informativo 453 STJ3) e, até mesmo, a proteção a uniões familiares não binárias (por exemplo, a partir do conceito de poliafetividade) tendem a tornar o direito sucessório muito mais desafiador para operadores do direito do que o se tem visto até então.

Há notícias que o TJRS já vem lançando em 2.023 decisões reconhecendo trisais (o próprio STJ já aventa, desde 2.0224 situações em que seria possível uma triação (uma ideia próxima de uma “meação de três” – e agora talvez se tenham ajustes para além do trisal – quatro ou mais pessoas) – rompendo-se com decisões anteriores que não os reconheciam e com a própria orientação CNJ para que não se lavrassem escrituras de uniões poliafetivas sem que houvesse previsão de lei federal – por conta da iniciativa do Poder Legislativo (reserva legal) em relação a tanto (artigo 22 e consectários CF).

Isso altera o quadro da jurisprudência, trazendo talvez uma situação de overruling (superação) dos entendimentos anteriores sobre o tema, em que trisal e triação e que prestigiam a ideia de monogamia como princípio ínsito à ideia de uma união familiar – dentro da tal reserva legal.5

Tal questão longe está de ser entendida como simples – eis que, como já apontava Claude Levy Strauss (em seu clássico As Estruturas Elementares do Parentesco), em conhecido trabalho sobre a antropologia das famílias, já apontava no sentido de que relações poliafetivas são fenômenos típicos de sociedades prósperas (há que se ter recursos para manter estruturas familiares grandes) o que acaba induzindo ao conceito de monogamia por razões econômicas em sociedades não tão abastadas (ora pensem-se nos inúmeros problemas previdenciários que o poliamorismo ou poliafetividade como queiram acabarão gerando).

Ou seja, se tem que o conceito de família tem se alterado de modo intenso e muito rápido – a possibilidade de reconhecimento de parentesco sem consanguinidade (v.g. famílias anaparentais) e modo como a questão tem evoluído em jurisprudência, sem uma base legal sólida (há muito de direito pretoriano envolvido) traz muitos impactos no âmbito do direito sucessório – e assim seguirá até que o legislador normatize a questão de modo mais completo.

Basta que se pense, por exemplo, se a poliafetividade vier a ser aceita, ou qualquer outra forma de união familiar não binária, seja sob qual nome ou pálio venha a ser instituída (por exemplo, a luz da proteção de valores previdenciários não se tem aceito as uniões em sociedades paralelas que divergem da poliafetividade ou poliamorismo – na primeira há vários núcleos familiares com um elemento em comum, por exemplo, caminhoneiros ou representantes comerciais que tenham várias famílias em várias cidades – enquanto que na poliafetividade há um núcleo familiar só com três parceiros ou mais).

Nesses casos imagine-se a complexidade de divórcios, regimes de bens, sucessão – podem ser que os patrimônios se ajustaram em comunhões em períodos diferentes e em regimes diferentes – por exemplo, poderiam ser dois parceiros em comunhão parcial que depois viraram três parceiros que resolveram adotar um regime dotal, e depois se tornam quatro em regime de participação final de aquestos – verificando-se o óbito do terceiro convivente deixando filhos de uma filha mosaico com outra pessoa. Tente-se raciocinar na complexidade desta partilha e em uma situação de colação de bens por exemplo.

E, o quadro de falta de segurança jurídica será ainda maior, diante da possibilidade de que essa união possa ter filhos – em situação, ou não, de multiparentalidade. Em tese alguns filhos poderiam ser registrados com mais de um pai e mais de uma mãe ou ambos – mas outros irmãos talvez dos mesmos pais biológicos não sejam (o que, de antemão já apontaria em problemas sucessórios e na própria ideia de desigualdade de tratamento entre os filhos).

O ideal mesmo seria um planejamento sucessório em questões como estas – o que não seria, de modo algum vedado pela legislação – prevenindo, ao menos dúvidas sucessórias em casos como estes – deixando claras situações como ânimo de constituir família em relação a tais ou quais pessoas, razões de reconhecer parentalidade com alguns ou não.

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E, enquanto o CNJ e o Congresso Nacional vão adiando a questão a respeito de legislar sobre direito civil, a despeito de não se poder, via de regra, lavrar escrituras de uniões poliafetivas diante da reserva legal em matéria de direito civil, coisa diversa se dá em relação à liberdade, por exemplo, de se criar pessoas jurídicas (talvez em modelos de holdings) que possam regularizar a formação e eventual necessidade de dissolução de um patrimônio comum nesse tipo de relação – dentro de parâmetros de pacta sunt servanda.

E, ainda mais, se poderia cogitar, eventualmente, de aspectos como destacar que exista um casal estável, em relacionamento eventual e não duradouro (um contrato de namoro), sem intenção de constituir família, com algum parceiro com quem se comece a interagir (o casal) ainda que venham a morar juntos (namoro qualificado).

Tudo isso pode ser perfectibilizado com atuação de advogados e mesmo de tabeliães para que se tenha fé pública em torno de tais atos jurídicos. E tudo isso apenas e tão somente para suscitar a curiosidade do leitor em relação à sucessão de bens materiais.

Agora passe a pensar fora da caixa como se diz coloquialmente (metáforas são figuras de linguagem do vernáculo) que costumo utilizar em minhas aulas, para imaginar que as relações estão se tornando cada vez mais complexas pelo uso de tecnologia e agora se formam patrimônios digitais (de influenciadores, por exemplo).

Não são incomuns na jurisprudência referências a patrimônio digital e herança digital, como se tem, verbi gratia, in: TJ-SP - Procedimento Comum Cível 10001098120218260027 SP Data de publicação: 01/06/2021 Aduz autora ser herdeira do patrimônio digital do de cujus, segundo escritura de fl. 44, e que notificou a requerida para ter acesso ao patrimônio, entretanto, embora notificada, não respondeu ao pedido. Portanto, a hipótese é de acolher o pedido da parte autora, para determinar que a empresa ré disponibilize, no prazo de 90 (noventa) dias a transferência de todo o patrimônio digital vinculado ao autor ... Desse modo, distintamente do alegado pela parte ré, a mera prova da escritura de que houve a transmissão do patrimônio digital já seria suficiente para conceder à autora o acesso aos referidos dados, já6.

E esse patrimônio diferenciado (digital) resta protegido mesmo que não se identifique, de plano, um conteúdo econômico direto: TJ-RS - Conflito de competência: CC 50164529220208217000 ERECHIM Data de publicação: 12/05/2020 CONFLITO DE COMPETÊNCIA. HERANÇA DIGITAL. PEDIDO DE ALVARÁ PARA TRANSFERÊNCIA DO CONTROLE DE CONTAS DIGITAIS DE FILHO FALECIDO. MATÉRIA QUE ESTÁ AFETA AO DIREITO SUCESSÓRIO. COMPETE AO JUÍZO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES DECIDIR ACERCA DE EVENTUAL DIREITO DE TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO DIGITAL CUJA TITULARIDADE, PARA QUE SE CONSTITUA EM OBJETO DA LIDE, PRESCINDE DE PRÉVIA AFERIÇÃO DE SEU VALOR ESTRITAMENTE ECONÔMICO. CONFLITO DESACOLHIDO PARA FIXAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES.

Em meus artigos de direito sucessório tenho apresentado vários problemas que surgem com a abertura da sucessão – e, agora, dentro do objeto do presente artigo, tem-se discussões em torno do que se tem concordado em chamar de sucessão digital – questão que envolve ativos digitais e o memorial (legado do de cujus) em suas redes sociais – como digo em aula, o mundo se torna um lugar confuso para se viver.

A grande maioria das pessoas tem perfis em redes sociais, participa e administra grupos de whatsapp (verdadeira profissão de risco haja visto decisões judiciais que condenam tais pessoas por excessos de membros do grupo e por aí vai), tem páginas o youtube, perfil em Linkedin etc.

Parte dessas pessoas chega, até mesmo, a explorar economicamente esses espaços, divulgando ideias e agregando valor a produtos sobre os quais comentam, outras tem notoriedade tal que lhes garante respeito e prestígio no mundo acadêmico, no seio do grupo social, em ambientes políticos etc.

A imagem de uma pessoa pela tecnologia pode ser manipulada digitalmente dando a impressão de que a pessoa ainda estaria viva mesmo após seu passamento (campanha publicitária de conhecida montadora utilizando essa tecnologia como se conhecida cantora ainda estivesse viva – malgrado seja uma situação de evidente puffing7 na acepção de exagero tolerável como vaticinado pelo STJ – incapaz de induzir pessoas em erro – de um modo geral – tem suscitado polemicas em torno desta forma de manipulação e uso de imagens).

Aqui, obviamente, se vai muito além do que uma norma consumerista poderia dispor – se tem aqui o reflexo das disposições de última vontade de uma pessoa em torno de sua imagem – agora que o problema e a tecnologia estão postos as pessoas poderão deixar instruções, testamentos e disposições escritas, mas há o problema do uso das imagens daqueles que já se foram e que não tinham sequer como prever que isso poderia acontecer.

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Alguns fãs da conhecida cantora, já tem instado o Poder Judiciário a analisar questões como dano coletivo pela utilização de tais imagens – o fato é que, como digo em aulas, o mundo se torna um lugar perigoso para se viver e o Poder Judiciário dentro de um certo viés, até mesmo ideológico (juízes em visões pragmáticas e neoconstitucionalistas de quem tanto se tem falado) irão decidir se há exagero ou não em tais falas.

Não se perca de vistas que ainda é corrente entre nós, a ideia popularizada por Pontes de Miranda (a partir da obra de Ennecerus et ali) de que patrimônio seja um conjunto de posições jurídicas, portanto, esses ativos, se mensurados economicamente, seriam patrimônio na acepção técnica do termo. Nessa perspectiva em se tratando dessa nova realidade, de direitos, faculdades e interesses que possam ter repercussão econômica (sem contar que isso levará a que se repense a própria ideia de danos ricochetes) se tem a realidade das heranças digitais.

Sobre a questão se tem que a jurisprudência passa a admitir tais discussões, pontuando a possibilidade de acesso a dados digitais do falecido se houver relevância em sede de proporcionalidade que justifique se preservem dados próprios da intimidade do falecido:

TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv: AI 10000211906755001 MG Data de publicação: 28/01/2022 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido

E que não se tente invocar o CDC pensando-se que o regime jurídico a ser aplicado seria este – eis que essas questões passam a ser de direito sucessório com suas regras próprias, que fazem com que a causa de pedir se oriente por tais princípios específicos. Assim já se decidiu: TJ-SP - Procedimento Comum Cível 10001098120218260027 SP Data de publicação: 01/06/2021.

E o desrespeito a diretrizes próprias condizentes com o modo de se portar do falecido, em alguma medida, pode gerar indenizações por danos morais (violação de imagem que possa afetar herdeiros, por exemplo – pense-se num ativista dos direitos humanos falecido, cujo administrador do espolio digital curta em nome do morto uma página de cunho duvidoso).

Estas questões já estão nos Tribunais. Já se tem como realidade um direito de sucessão digital para a administração de aproveitamento econômico da página ou perfil ou para zelar pelos valores de integridade da pessoa do falecido no mundo digital (nesse último caso, fala-se em memorial8 do falecido), bem como para resolver questões que a tecnologia nos coloca (com a evolução da medicina, por exemplo, cada vez mais pessoas podem ter a vida prolongada ainda que em estado de inconsciência – alguns não querem ser mantidos vivos em estado vegetativo e sem possibilidade de retorno à consciência em data próxima ou média – problemas que antes não existiam – surgindo daí os testamentos vitais9 ou diretivas antecipadas de vontade10).

E esse memorial resta passível de proteção como patrimônio imaterial como herança, sendo passível de ser recuperado pelos herdeiros como se tem admitido em jurisprudência11.

Ainda em sede do que se poderia apontar como sendo uma situação de sucessão digital, já se aponta no sentido de que a pessoa que venha a aderir, por exemplo, a uma rede social (faça-se menção exemplificativa ao facebook por conta do grande número de envolvidos), tem-se que a pessoa se encontra submetida ao crivo de uma série de perguntas para a sua identificação e, logo, após, tem-se que mesma resta como convidada a ler os termos de adesão e apresentar sua concordância em relação a eles.

Ao fazer isso a pessoa já concorda (contrato enquanto negócio jurídico) em seguir as regras da plataforma, cuja matriz se situa no exterior, diga-se de passagem, tendendo a seguir a sua Soft Law, e com isso tem-se a possibilidade de o perfil continuar ativo após a morte do usuário, tanto que não tem sido incomum que sejamos convidados, vez ou outra, a nos lembrarmos do aniversário de morte de uma pessoa, por exemplo.

Isso é feito porque algumas pessoas, ao aderirem à plataforma, já ajustam, o que se poderia dizer, outro negócio jurídico (neste caso unilateral) que seria a instituição de um testamenteiro digital ou legacy contact no caso do facebook (outras plataformas procedem mais ou menos do mesmo modo).

Esse legacy contact – contato para o legado (ideia próxima do que se tem entendido como memorial) seria responsável perante a plataforma (e isso derivou de contrato firmado pelo de cujus quando em vida aceitou os termos do serviço, vinculando seus sucessores) para gerenciar o perfil em caso de falecimento (fixação de post descritivo, fotos de perfil, de capa, lançamento de fatos relevantes da vida da pessoa, fotos e imagens de sua trajetória, aceitar ou recusar pedidos de amizade, ou, até mesmo, solicitar a desativação da conta (o próprio falecido já pode ter solicitado isso em vida) – convém nestes casos, obter a concordância de todos os interessados (herdeiros, parentes, amigos próximos que estejam muito referidos etc), por precaução – o mundo é um lugar perigoso para deixar margens e brechas de interpretação num ambiente de ativismo.

O cantor David Bowie, em vida, antecipou a venda de direitos de exploração de sua imagem e canções, para além de sua morte, o que fez em venda em bolsa (lançou o uso de tais direitos para exploração post mortem em negócio de risco que não se entendeu e nem poderia sê-lo, negócio em pacta corvina12).

Não há, portanto, a aplicação das regras sucessórias comuns, em que, num primeiro momento falamos em administradores provisórios e depois inventariantes ou num testamenteiro formal que teria direito à sua vintena – seria, no caso, a situação daquele autorizado pelo de cujus a ter acesso junto à plataforma, de suas senhas de acesso para continuar gerindo o perfil mais ou menos de acordo com a vontade presumida do falecido.

Já se aponta no sentido de que não se trata de uma oportunidade para corrigir eventuais erros do passado – por exemplo, a pessoa posta algo de teor duvidoso e seu legacy contact tenta apagar a postagem – não obterá sucesso – se isso ocasionou algum constrangimento para a pessoa do falecido em vida, deveria o mesmo ter ido buscar a aplicação de outros institutos como o acesso ao direito ao esquecimento.

Mas, certamente, surgirão problemas, se este administrador começar a postar coisas de seu próprio gosto, em desrespeito aos paradigmas aceitos como valores do falecido em vida (por exemplo, não seria de bom tom, no caso de um liberal, seu legacy contact começar a pregar marxismo para os contatos, ou, a recíproca é igualmente verdadeira).

Isso, em tese, a depender a extensão em que possa atingir aos herdeiros, gerar demandas judiciais – pensem-se em apologias ao Nazismo ou ao Stalinismo que endossem genocídios ou outros discursos de ódio que passem a ser postados ou curtidos pelo administrador do espólio digital maculando o memorial do falecido e levando a confusões que comprometam seus herdeiros.

Convém que se comece o interessado a se preocupar com estas questões – há perfis antigos, não se aplica o CDC nesses negócios jurídicos – e se tem farta jurisprudência impedindo que parentes ou herdeiros intervenham em dados sigilosos de um usuário morto que não deixou em vida, orientações sobre o destino de seu patrimônio digital.

Não há ainda jurisprudência com cores muito definidas, mas, de um modo geral, a intervenção de herdeiros, quando não se deixou um legacy contact indicado em vida, é excepcional13, somente quanto houver algum interesse excepcional a ser ponderado, eis que a regra é a proteção da intimidade do falecido, o que resta reforçado pelos termos de autorizações entabuladas em vida, quando da adesão das regras de uso da plataforma ou rede. Nesse sentido, são expressivos os arestos:

TJ-MG - Agravo de Instrumento-Cv: AI 10000211906755001 MG Data de publicação: 28/01/2022 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º , a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido.

TJ-SP - Apelação Cível: AC 10748483420208260100 SP 1074848-34.2020.8.26.0100 Data de publicação: 31/08/2021 OBRIGAÇÃO DE FAZER – RECUPERAÇÃO DE PÁGINAS DO FACEBOOK E INSTAGRAM INVADIDAS E ALTERADAS INDEVIDAMENTE – SUCESSORES DE USUÁRIA FALECIDA – LEGITIMIDADE RECONHECIDA – DIREITO À PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA – PROCEDÊNCIA MANTIDA COM CONDENAÇÃO AJUSTADA – RECURSO DOS AUTORES PROVIDO E NÃO PROVIDO O DA REQUERIDA. ... A história de vida da pessoa titular de uma conta em rede social, as recordações, as manifestações de pensamento, as fotografias e demais mídias, além de permitirem rever, por suas próprias características... Na forma atual, a manutenção de páginas de redes sociais das mais diferentes plataformas, se inclui entre os meios de cultuar os mortos... “disposição de última vontade”, com a indicação da pessoa ou pessoas que se tornarão responsáveis pelo acervo que constitui a sua herança.

TJ-SP - Apelação Cível: AC 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100 Data de publicação: 11/03/2021 AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM "MEMORIAL", TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS – INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO NÃO PROVIDO.

Mas há arestos em sentido contrário, e ainda recentes, de modo minoritário, no entanto, em postura mais liberal em favor dos herdeiros:

TJ-PR - Apelação: APL 299174520208160001 Curitiba 0029917-45.2020.8.16.0001 (Acórdão) Data de publicação: 23/03/2022 APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – DESBLOQUEIO DE CONTA DE CELULAR – FALECIMENTO DO USUÁRIO – RESPONSABILIDADE DA FORNECEDORA EM GARANTIR ACESSO À HERDEIRA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (TJPR - 4ª C. Cível - 0029917-45.2020.8.16.0001 - Curitiba - Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU ANTONIO FRANCO FERREIRA DA COSTA NETO - J. 22.03.2022).

A figura do legacy contact é indelegável, ou seja, ele não poderá outorgar procuração ou repassar o encargo a terceiros – há um certo caráter personalíssimo na figura, inclusive para a preservação da vontade do de cujus que nele investiu sua confiança (se o legacy contact falecer, a rede social não aceitará outro – problema a ser resolvido em futura judicialização – eis que pareceria draconiano, por exemplo, se for a vontade do falecido que seu memorial seja administrado por cem anos, que o mesmo fique sem movimentação por que seu administrador digital morreu – há que se resolver as regras pela proporcionalidade e pela aplicação da sua função social, mormente porque a questão envolve aspectos do direito de personalidade do de cujus quando vivo e como matéria de direito existencial, via de regra, o regime a ser empregado seria o das normas cogentes e não das normas dispositivas – objeto de novas reflexões em outros artigos).

Não se deve deixar poder apagar os rastros de uma cyber existência num mundo em que os legados podem ser perpetuados por este meio. Todos devem ter acesso à possibilidade de preservação de um mínimo de sua história, de sua possibilidade de deixar orientações ou visões de vida para as gerações futuras, narrativas de experiência, momentos felizes, erros e acertos, enfim, isso parece ser um mínimo para se atender a prelados de democratização de rede – se nossa ordem democrática não compactua com censuras (salvo no caso de discurso de ódio – os hate speech) não há que se falar em exclusão automática ou supressão existencial de uma pessoa em suas redes. Parece intuitivo que a questão passe pelo crivo da dignidade da pessoa humana e seus reflexos.

 A questão deve ser vista com granu salis, eis que existem sobrenomes ou apelidos de família muito peculiares – a mácula do nome do avô, em condições como tal, pode atingir ou macular as possibilidades do neto com o mesmo sobrenome em conseguir um emprego (tem-se, aí, portanto, mais conceitos jurídicos indeterminados a serem sopesados com objetividade pelos Julgadores em casos concretos).

Portanto, agora, um advogado que oriente seu cliente na redação de um testamento, deve aconselhar o cliente para que disponha no seu testamento a respeito de quem seria seu testador, mas deverá aconselhá-lo para que ingresse em suas redes sociais e já informe os mantenedores sobre quem será seu testamenteiro para evitar discussões acerca de quem será o legacy contact (fundir-se-ia a mesma pessoa nas duas funções, prevenindo-se demandas futuras em torno de um tema, ainda em desenvolvimento e de grandes repercussões no campo do direito de personalidade diante de novas tecnologias – afinal seria de se aplicar aqui o conhecido princípio in favor testamentii em que buscaremos nos aproximar o mais próximo possível da vontade do testador para seu cumprimento) – no testamento já podem ser estabelecidas linhas de ação para os limites claros em relação aos quais se deva preservar o memorial ou mesmo se decidir se a conta será encerrada ou mantida e por aí vai.

Podem ser deixados parâmetros que permitam a interpretação em casos de postagens indevidas ou incompatíveis com a linha de conduta que o falecido pretende que seja seguida em caso de morte, o que facilitaria a solução de conflitos futuros (provavelmente teremos que adaptar algo do nosso procedimento de remoção de inventariante dentro das normas de Soft Law do Facebook para remoções de legacy contact – certamente um dos desafios do novo processo civil que agora convive com a possibilidade, em certa medida, de negócios jurídicos processuais – artigo 190 CPC). Isso seria relevante, inclusive, para nortear parâmetros de concessão de tutelas de urgência antecipada ou cautelar em casos mais graves de desvios.

Tudo isso sem que se discutam implicações, por exemplo, de pessoas que tenham conseguido agregar valor a seus perfis e que possam vender produtos com sua imagem. O mundo é um lugar perigoso para os sucessores de quem morre sem se preparar. Que venham os testamentos.

[1] Nesse sentido interessantes ponderações históricas apontadas por Thomas Marky em célebre obra acerca de direito romano, mencionada nas referências do presente texto, às páginas 35 e seguintes.

[2]Fustel de Colanges. A Cidade Antiga, como mencionado nas referências ao final deste texto.

[3] Com narrativa acerca desta correlação entre propriedade e o seu caráter sagrado no direito romano e seu reflexo nos dias atuais, em obra mencionada nas referências deste texto, o entendimento de Silvia C. B. Opitz e Oswaldo Opitz, às fls. 65.

[4]À guisa de exemplificação, nesse sentido, destaca-se a opinião de Maria Berenice Dias em obra mencionada nas referências deste texto, p. 367.

Sobre o autor
Julio Cesar Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Faculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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