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Contratos públicos: a ilegalidade do pagamento por química

Agenda 30/09/2024 às 18:30

Pagamento por química é a prática de liquidar despesas não executadas, atestando a execução de serviços ou entrega de bens não executados ou não entregues.

Lei 4.320/64 e a liquidação

A Lei Federal nº 4.320/64, em seus artigos 62 e 63, estabelece regras de liquidação e pagamento de despesas públicas:

Art. 62. O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.

Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

§ 1° Essa verificação tem por fim apurar:

I - a origem e o objeto do que se deve pagar;

II - a importância exata a pagar;

III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.

§ 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:

I - o contrato, ajuste ou acôrdo respectivo;

II - a nota de empenho;

III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.

Percebe-se que a liquidação da despesa é o ato de verificação do direito do credor, apura a origem, o objeto, a importância e a quem pagar. Especialmente sobre a liquidação de fornecimentos ou serviços, o §2º, supracitado, dispõe que formarão base os documentos constitutivos desse direito, como o contrato/acordo, nota de empenho e os comprovantes de entrega de material ou de prestação dos serviços.

Harisson Leite1 amplia a compreensão sobre o processo de liquidação:

“Quando a Administração contrata um serviço ou uma pessoa, ela só poderá efetivar o pagamento ao interessado se ficar comprovado que o mesmo cumpriu o quanto pactuado nos seus exatos termos. Esse ato de verificação é chamado de liquidação.

[...]

Quando, por exemplo, se contrata a aquisição de medicamentos do tipo x, deve-se verificar, no momento do cumprimento do contrato, se os medicamentos entregues são iguais aos licitados (tipo x), a fim de que não haja burla, ou que se contrate um bem e se receba, outro distinto. Aqui há a importante figura do liquidante, pessoa responsável por assinar o processo de liquidação e atestar que recebeu o material exatamente como indicado, ou que conferiu a entrega da obra, nos termos do contrato.”


Decisão do TCU - Acórdão 1488/2023 – Plenário – Rel. Min. Jorge Oliveira

Nesse sentido, de liquidação de despesas oriundas de contratos administrativos, o Tribunal de Contas da União, emanou recente decisão acusando pagamento indevido de serviços não executados, visando o acobertamento de serviços alheios aos contratados:

Responsabilidade. Contrato administrativo. Liquidação da despesa. Pagamento indevido. Sanção. O pagamento por serviços não realizados para dar cobertura à execução de outros serviços ou aquisições sem previsão contratual afronta os arts. 62 e 63 da Lei 4.320/1964 e o art. 36, §§ 1º e 2º, do Decreto 93.872/1986 e constitui irregularidade grave, apta a ensejar sanção aos responsáveis.

Acórdão 1488/2022, Plenário (Auditoria, Relator Ministro Jorge Oliveira) 2

Ou seja, foram liquidadas prestações não executadas, para que, informalmente, fossem executadas outras atividades, não contratadas originalmente.

Essa prática, irregular, já foi teorizada pelo TCU como “pagamento por química” em outros precedentes, como no Acórdão 2140/2021:

1) A prática do 'pagamento por química' implica, em síntese, a utilização de serviços previstos em contrato, porém não executados, para dar cobertura à suposta execução de outros serviços ou, ainda, a supostas aquisições sem amparo contratual, sendo considerada irregularidade grave, porquanto consubstancia:

  • i) afastamento indevido da licitação (art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal);

  • ii) crime de falsidade ideológica (art. 299 do Decreto-Lei 2.848/1940);

  • iii) crime de fraude (art. 96 da Lei 8.666/1993); e

  • iv) pagamento de serviços não executados e não liquidados, em afronta à Lei 4.320/1964.

Percebe-se que, por se tratar manobra articulada, que envolve a declaração de fato falso e a execução de atividades informais, gerando até mesmo dano ao Erário, essa prática pode ensejar em responsabilização criminal dos envolvidos, pois há verdadeira afronta ao rito de liquidação de despesas e pagamentos, previsto nos artigos 62 e 63, da Lei 4.320/64.


Nova Lei de Licitações [NLL] – 14.133/2021

O artigo 5º, caput3, da Lei Federal nº 14.133/2021, prevê o princípio da vinculação ao edital. Sobre a vinculação ao edital, Joel de Menezes Niebuhr4 ensina:

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“Por fim, deixa-se registrado que o edital vincula a licitação pública e, nessa medida, vincula também e com a mesma intensidade tudo o que decorre dela, com destaque para o contrato administrativo. Ora, o contrato depende e é vinculado à licitação.”

Esse tipo de manobra, além de ilegal, acaba desconfigurando todo o processo licitatório e burlando a regra constitucional de licitar, pois serviços não planejados, não concorridos e não estimados são executados diretamente sem a adequada formalização, e serviços não executados são liquidados e pagos, em verdadeira ausência de planejamento, uma vez que todas as compras devem ser projetadas com antecedência, especialmente as processadas pelo regime da Nova Lei de Licitações, que seguem o rigor do novo processo interno, robusto e com peças específicas para verificação da necessidade pública, como o Estudo Técnico Preliminar – ETP, por exemplo. Não faz sentido que a instrução da contratação/compra esteja fundada em objeto específico, as exigências de habilitação pautadas nesse mesmo objeto, a disputa envolver os custos e a execução desse objeto, se durante a execução contratual for admitida entrega/prestação diversa.

Compete à fiscalização agir de modo restrito ao que foi contratado, exercer suas atividades em prol de que sejam cumpridas as obrigações assumidas, e não inovar ou contratar informalmente serviços/produtos.

As alterações contratuais no curso da execução são promovidas através de aditamentos, devendo ser respeitados os limites legais, não havendo margem para transfiguração do objeto (como previsto no art. 126, da NLL)5, e isso reafirma a ilegalidade do “pagamento por química”.


Conclusão

A prática de liquidar despesas não executadas, atestando a execução de serviços ou entrega de bens, em verdade, não executados/entregues, visando entrega/prestação diversa daquela que fora contratada, é ilegal, trata-se de atividade que o Tribunal de Contas da União convencionou nomear como “pagamento por química”.

A necessidade de alteração contratual ou dos termos contratados, sempre, deve observar os limites legais, e os agentes públicos que atuam nas fiscalizações devem observar esses limites, evitando responsabilizações, até mesmo criminais, por atuação informal.

O processo de liquidação das despesas está prescrito na Lei Federal nº 4.320/64, em seus artigos 62 e 63 e deve ser observado.


Notas

1 LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 11 ed. São Paulo: JusPodivm, 2022. p 467

2 Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/NUMACORDAO%253A1488%2520ANOACORDAO%253A2023%2520COLEGIADO%253A%2522Plen%25C3%25A1rio%2522/DTRELEVANCIA%2520desc/0/sinonimos%253Dfalse. Acesso no dia 12 de setembro de 2023.

3 Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

4 NIEBUHR. Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. p 96

5 Art. 126. As alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta Lei não poderão transfigurar o objeto da contratação.

Sobre o autor
Leonardo Vieira de Souza

Advogado e Consultor em Gestão Pública. Pós-graduado em Direito Administrativo, Constitucional, Eleitoral e Gestão Pública com ênfase em Licitações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Leonardo Vieira. Contratos públicos: a ilegalidade do pagamento por química. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7761, 30 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106261. Acesso em: 18 dez. 2024.

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